Arte e Ativismo


Não estou falando de representação política em arte. Estou falando de arte como ativismo político. A idéia de que a arte deve refletir seu tempo é triste, no mínimo.

Vi, há tempos, num dos jornais de TV, a imagem de um garoto palestino atravessando um local vigiado por soldados israelenses e, num gesto rápido com um spray, manchar de vermelho o tanque de guerra, que tinha um tom amarelado. Os soldados disparavam suas máquinas de matar para o alto, tentanto dissuadí-lo, mas ele não parava, até conseguir o mínimo de efeito. Depois do ato, ou melhor, no meio do ato, é submetido.

Isso é arte? Algumas pessoas acreditam que não. Aquele garoto fazia um protesto e não uma obra de arte, estão convencidos. Obiamente, que uma ação como a do garoto não tem créditos. Como vender? Além disso, como categorizar? Porém, esse pensamento não consegue imaginar que a arte pode ser atitude e não obra, como me alertou, num café, Flávia Pinto. Ora, o garoto poderia lançar uma pedra, uma coquetel molotov, sei lá, mas correu riscos para tingir de vermelho.

Quem quiser ver mais imagens como o grafite acima, pode procurar no site do grafiteiro Bansky ( www.banksy.co.uk ).

Há também no site do Rizoma um texto de Ricardo Rosas, intitulado (Ins)urgências, de onde tirei a imagem, que atravessa o tema: http://www.rizoma.net/interna.php?id=210&secao=artefato . No mesmo site, André Mesquita aborda o hibridismo entre arte e política num texto intitulado Arte-ativismo: interferência, coletivismo e transversalidade – http://www.rizoma.net/interna.php?id=300&secao=artefato .

Não percam também o debate com Geert Lovink, um dos co-fundadores da lista de discussão Nettime, sobre as relações entre arte, ativismo e mídia tática: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2668,1.shl . Vale a pena também conferir o site do Grupo Escombros (La Plata): http://www.grupoescombros.com.ar/00-galeriafotos.htm , que desenvolve uma militância política e estética, sempre em obras (escombros) nas ruas, através de performances, instalações, manifestos poéticos etc. E o Living Theatre, que marcou os anos 60, continua no combate: http://www.livingtheatre.org/ .

De Michele Ferreira, atriz:

Querido Garrocho, gosto da prosposta, instigante, nos faz realmente pensar na cena contemporânea e na sua inquietante busca de uma nova abordagem e de uma nova relação com o público e, qual o papel e o “discurso da cena”que nós atores somos levados (e obrigados) a provocar…
Provocação…. Talvez seja essa palavra que traduza o seu blog.
Idéia Aprovada! (rs)
Um abraço
Michelle

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De artistas cortesãos e artistas supliciados

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadores, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, por sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski criou as noções de ator cortesão e ator santo. O primeiro seduz mas não se entrega. Já o o ator santo seria aquele que, na relação com o espectador e com suas próprias sensações, entrega-se num ato ao mesmo tempo sagrado e profano. Ele se desnuda ao atuar. Porém, ele não o faz para uma audiência, mas sim diante de uma audiência. E cita Artaud, lembrando que o ator é um supliciado na fogueira, de onde emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente – (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros, mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diante de uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parece que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros… Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar… O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”

Uma das forças do teatro moderno: criar uma solidão no meio de uma multidão. O diretor russo, Stanislavski, foi um dos que buscou no ator essa conexão consigo mesmo. Entretanto, uma linha de aderência social capturou essa força e a domesticou como quarta parede: a ilusão cênica.

Richard Wagner já havia afundado a platéia na escuridão, rompendo com os acenos da sociabilidade de salão, reascendendo no palco o mito. Mas o movimento de isolamento a que se submetem atores e espectadores, necessário à fabricação do imaginário, torna-se, por sua vez, um modo de consumo: a contemplação. Entretanto, em La Luna de Bernardo Bertolucci, dois adolescentes fazem sexo atrás das poltronas da platéia enquanto no palco executa-se uma ópera de Verdi: as pulsões dos corpos reivindicam seus direitos e abrem outros espaços imaginários.

Grotowski e muitos outros trouxeram os corpos para o contato mais próximo, já que as demarcações entre criadores e público tornaram-se uma nova convenção social. Novas armas para romper com os hábitos sociais. Diferente disso, a cena invade a platéia e a platéia invade a cena. Novos relacionamentos entre criadores e público.

E o ator, como se localiza nisso? Grotowski criou as noções de ator cortesão e ator santo. O primeiro seduz mas não se entrega. Já o o ator santo seria aquele que, na relação com o espectador e com suas próprias sensações, entrega-se num ato ao mesmo tempo sagrado e profano. Ele se desnuda ao atuar. Porém, ele não o faz para uma audiência, mas sim diante de uma audiência. E cita Artaud, lembrando que o ator é um supliciado na fogueira, de onde emite estranhos sinais.

Um vocalista e guitarrista de uma banda de rock me surpreendeu e me fez repensar esse lugar do ator no palco. O acontecido se deu no Teatro Marília, em Belo Horizone, no projeto Quarta Sônica – rock independente – (com curadoria do poeta e músico Gil Cevi), com a banda Wry (os caras são brasileiros, mas vivem em Londres). Mas, então, o que se espera de um vocalista/guitarrista de uma banda de rock? Que ele toque para ou diante de uma platéia. Armas da sedução, do artista cortesão ou de revelação, do artista supliciado? Mario Bross, o vocalista e guitarrista, atravessa pelo meio, ao meu ver, tais oposições: ele aproxima-se ao máximo, parece que olha para alguém e se oferece tocando fundo na alma. Não faz nada de grotesco ou de exagero, não empunha gestos que excitam ou incendeiam a platéia. Não realiza truques: ele se oferece, só isso. Apenas vai lá, frágil e diabólico, e toca pertinho da boca de cena. E logo recua, dá as costas, vai para o fundo.

Rogério de Freitas, citando Blanchot, diz:“é a distância que permite um encontro”. Fala ainda da diferença entre turistas e estrangeiros… Penso que Rogério fala do ato de ver, de passar… O performer (músico, cantor, bailarino, ator) se relaciona com a espectador como se fosse turista ou estrangeiro? Isso conecta com o que diretor e fundador do Teatro Antropológico, Eugenio Barba, diz do performer: este estrangeiro que dança diante de mim.

Richard Foreman, o genial encenador, criador de um teatro não-narrativo, pós-dramático, diz em Unbalancing Acts (Theatre Communication Group: New York, 1992) que o ator de suas performances não deve querer ser amado pela platéia. Deve, em tudo o que faz, ofertar em segredo para uma única pessoa presente no espaço, como se somente aquela pessoa pudesse perceber:

“I want to see a performer who makes me feel I see what is happening inside his soul, but at the same time gives me the feeling that I may be the only one in the audience perceptive enough to pick up on it.”[1]

Tudo isso me traz a imagem de Jéssica Azevedo, abrindo um grito mudo no meio da rua, fragilizando-se na cena de Fudidos, trabalho que realizei com Ricardo Júnior na Rua Guaicurus (região da baixa prostituição de Belo Horizonte), com os alunos e alunas da Escola de Artes Cênica/Belas Artes/UFMG, em 2004. Falo de Jéssica porque trabalhamos já alguns anos juntos, mas cada um dos artistas, ali, se fazia possuir pelos seus desenhos corporais como passagem para o campo das intensidades. Estou falando de uma campo sensorial, que pode atingir os sentidos e não de códigos de comunicação teatral.

Richard Foreman lembra que o rigor (diria, a crueldade) do exercício cênico que abdica de todo a sedução é, estranhamente, erótico. São traços de um teatro que não se vincula ao drama e que não passa pela comunicação, mas pelos estados perceptivos que podem se abrir e pela capacidade de sofrer e causar afecções.

[1] Tradução: “Eu quero ver um performer que me faz sentir o que está acontecendo dentro de seu espírito, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que somente uma pessoa na audiência percebe suficientemente para captar isso.”

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Contrário disso: a capacidade de um corpo ser afectado

No campo do teatro, principalmente, aparece sempre a questão do corpo como um fenômeno de comunicação. Que não passa de um equívoco: ver a cena como algo que é emitido (do ator/atriz) para alguém que observa (o espectador/receptor). Contrário disso, o corpo em termos das forças capazes de produzir afecções – numa visada do pensamento de Gilles Deleuze. Peter Pall Pelbart nos apresenta essa visão:

“… seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher7.

Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes -um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estômago fenomenal, na pura indiferença daquele a quem nada abala…
Como então preservar a capacidade de ser afetado, senão através de uma permeabilidade, uma passividade, até mesmo uma fraqueza? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força, pergunta Nietzsche. Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente8, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, onde está preservada a liberdade de “seres ainda por nascer”… Porém, será possível dar espaço a tais “seres ainda por nascer” num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética autossuficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? Talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente blindado não permitiria. Mas será preciso produzir um corpo morto para que outras forças atravessem o corpo?
José Gil observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma”, para então poder “ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida”. É aí, diz Gil, que esse corpo, que já é um corpo-sem-órgãos, constitui ao seu redor um domínio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade próprias, como se o corpo exalasse e liberasse forças inconscientes que circulam à flor da pele, projetando em torno de si uma espécie de “sombra branca”9. Não posso me furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência da Cia. Teatral Ueinzz, que coordeno em São Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicóticos, posturas “extraviadas”, inumanas, disformes, rodeados de sua “sombra branca”, ou imersos numa “zona de opacidade ofensiva”10.
O corpo aparece aí como sinônimo de uma certa impotência, mas é dessa impotência que ele extrai uma potência superior, nem que seja às custas do corpo empírico.
Pois é às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona. Desde o jejuador até o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes”. Como dizem Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo”11, ainda que ele seja o de um coleóptero. “Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo” do pai, do patrão, de Deus, é uma maneira de fugir a todo um sistema do juízo, da punição, da culpa, da dívida.
Ao invés da dívida infinita em relação à instância transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Há aí, insistem os autores, nesse corpo desfeito e intensivo, tal como aparece em Kafka, uma vitalidade não-orgânica, inumana, e um combate: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importância das posturas do corpo”12.

Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, não consiste em destruir o outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua força. Em suma, o combate como uma “poderosa vitalidade não-orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo de que se apossa”.
Mas o que é essa vitalidade não-orgânica? Em “Imanência: Uma Vida”, último texto escrito por Deleuze, comparece um exemplo – o de Dickens. O canalha Riderhood está prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma “centelha de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele é, centelha com a qual todos à sua volta se compadecem, por mais que o odeiem -eis aí uma vida, puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma “espécie de beatitude”, diz Deleuze”13.

Peter Pál Pelbart –

Referências:

7 – Barbara Stiegler, “Nietzsche et la Biologie”, Paris, PUF, 2001, p. 38.
8 – Witold Gombrowicz, “Contre les Poètes”, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.
9 – José Gil, “Movimento Total”, Lisboa, Relógio d´Água, 2001, p. 153.
10 – http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm
11 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, São Paulo, Ed. 34, p. 149.
12 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, op. cit., p. 149-150.
13 – G. Deleuze, “L´Immanence, Une Vie”, in « Deux Régimes de Fous », Paris, Minuit, 2003.

Não se trata de comunicação: a arte do teatro

O teatro vem sendo acostumado a acreditar que muito de sua arte se resume a uma comunicação entre palco e público. Defendo aqui que não se trata de comunicação. Mas isso não quer dizer que a encenação se fecha num espaço hermético, que ignora as pessoas etc. Penso antes que há um choque primordial (no sentido parabólico) entre dois seres. Brindo vocês com uma tradução que faço dessa citação do encenador polonês Tadeusz Kantor, que fala desse choque/encontro, que compõe com forças que não podem ser reduzidas a qualquer codificação (mantenho a sua formatação original):

“É necessário re-colocar o significado essencial do relacionamento: ESPECTADOR e ATOR. É NECESSÁRIO REDESCOBRIR A FORÇA PRIMORDIAL DO CHOQUE TOMANDO POSSE DO MOMENTO QUANDO O HOMEM ANTAGÔNICO (O ESPECTADOR) POSICIONOU-SE PELA PRIMEIRA VEZ DIANTE DE UM HOMEM (O ATOR) DEPRECIAVELMENTE SIMILAR A NÓS, AO MESMO TEMPO INFINITAMENTE ESTRANGEIRO, ALÉM DE UMA INTRANSPONÍVEL BARREIRA.” (1)

(1) KANTOR, Tadeusz. A journey through other spaces: essays and manifestos, 1944-1960. Edited and Translated by Michal Kobialka. With a Critical Study of Tadeusz Kantor´s Theatre by Michal Kobialka. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1993