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Trabalho precário. Por Akseli Virtanen

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“Normalmente entendemos por trabalho precário uma situação de trabalho onde nenhuma norma estável pode ser determinada em relação ao vínculo empregatício, à remuneração e ao horário de trabalho. Entretanto, o essencial da precarização não é a falta de normas relativas à relação de emprego – normas consideradas centrais no modelo fordista-keynesiano, que afinal só foram aplicadas durante um breve período, na metade do século XX -, mas a diminuição da relevância do trabalho atrelado a um determinado lugar, tempo e desempenho na produção do valor econômico. O trabalho se desprendeu de lugares, tempos e conteúdos específicos e se transformou numa categoria abstrata. Contudo, esta abstração do trabalho e do nosso compromisso pra com ele é algo real e concreto: ‘trabalho abstrato’ tronou-se uma categoria empírica, diferencial(*). A experiência da abstração do trabalho (o deslocamento em relação à sua concretude) se expressa, por exemplo, na perda de confiança em relação à permanência no emprego ou mesmo com relação à estabilidade em nossas profissões e áreas de trabalho, e temos que nos mover de tarefa em tarefa, de projeto em projeto. Lugares e tempos de trabalhos variam, e mais importante do que apreender algo ligado a um conteúdo específico é hoje ‘aprender a aprender’. Assim, como em qualquer empresa, preciso acompanhar o que acontece à minha volta ao mesmo tempo em que devo evitar uma relação excessiva ou profunda com as coisas que faço ou as pessoas que encontro. O compromisso é um risco, e pode levar ao fracasso pessoal quando as opções precisam ser deixadas em aberto em meio à multiplicidade de possibilidades imprevisíveis. De maneira que é preciso, cinicamente, não ter interesse em nada, sendo mais prudente manter-se um pouco distante e entediado.”

Akseli, Virtanen. O discreto charme do precariado, posfácio a Máquina Kafka – GUATTARI, Félix. Seleção e notas de Stéphane Nadaud. Tradução e prefácio de Peter Pál Pelbart. n-1 edições, São Paulo, 2011.

(*) Para o conceito de ‘real abstrato’ cf. Akseli Vitanen, “Arbitrary Power, or on Organization without Ends” (conferência). Ephemera. Theory & Politcs in organization, 209. The Swedish Dance History, Inpex, Stockholm, 2010.

Crédito da imagem: http://vk.com/alp_rzn

 

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Edições N-1 começa com Kuniichi Uno e Félix Guattari

“O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. ” Gilles Deleuze e Félix Guattari

Com essa citação nas páginas internas de um dos livros, o filósofo e ensaísta Peter Pál Pelbart lança no Brasil  as Edições N-1, que fazem parte do projeto Future Art Base, sediada em Helsinki (Finlândia). Uma plataforma de “pesquisas e desenvolvimento sobre o futuro da arte – a arte de reabrir os possíveis” – como citado no site. 

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Feliz aniversário Gilles Deleuze

Recebi um twitter hoje, assim: NaxosRT @dreamduke: Happy Birthday Gilles Deleuze. Sim, Deleuze nasceu no dia 18 de janeiro de 1925. E morreu no dia 04 de novembro de 1995.

Uma vida que transborda entre uma data e outra. Um dos últimos textos de Deleuze intitula-se, justamente,  Imanência: Uma Vida. O texto é uma preciosidade que sempre retomo. Cito um trecho

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Como ficam as micropolíticas: resistir é capitular?

Slavoj Zizek diz que sim. Num artigo da revista impressa Piauí, número 16, Zizek discute a questão: “o capitalismo deve ser combatido por meio de reivindicações impossíveis ou se deve almejar a conquista do poder do Estado?” O título já contém a resposta: Resistir é capitular.

Zizek, depois de considerar que o capitalismo triunfa no planeta e conquista mentes e corações, alinha as alternativas de esquerda:

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Contrário disso: a capacidade de um corpo ser afectado

No campo do teatro, principalmente, aparece sempre a questão do corpo como um fenômeno de comunicação. Que não passa de um equívoco: ver a cena como algo que é emitido (do ator/atriz) para alguém que observa (o espectador/receptor). Contrário disso, o corpo em termos das forças capazes de produzir afecções – numa visada do pensamento de Gilles Deleuze. Peter Pall Pelbart nos apresenta essa visão:

“… seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher7.

Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes -um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estômago fenomenal, na pura indiferença daquele a quem nada abala…
Como então preservar a capacidade de ser afetado, senão através de uma permeabilidade, uma passividade, até mesmo uma fraqueza? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força, pergunta Nietzsche. Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente8, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, onde está preservada a liberdade de “seres ainda por nascer”… Porém, será possível dar espaço a tais “seres ainda por nascer” num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética autossuficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? Talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente blindado não permitiria. Mas será preciso produzir um corpo morto para que outras forças atravessem o corpo?
José Gil observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma”, para então poder “ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida”. É aí, diz Gil, que esse corpo, que já é um corpo-sem-órgãos, constitui ao seu redor um domínio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade próprias, como se o corpo exalasse e liberasse forças inconscientes que circulam à flor da pele, projetando em torno de si uma espécie de “sombra branca”9. Não posso me furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência da Cia. Teatral Ueinzz, que coordeno em São Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicóticos, posturas “extraviadas”, inumanas, disformes, rodeados de sua “sombra branca”, ou imersos numa “zona de opacidade ofensiva”10.
O corpo aparece aí como sinônimo de uma certa impotência, mas é dessa impotência que ele extrai uma potência superior, nem que seja às custas do corpo empírico.
Pois é às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona. Desde o jejuador até o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes”. Como dizem Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo”11, ainda que ele seja o de um coleóptero. “Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo” do pai, do patrão, de Deus, é uma maneira de fugir a todo um sistema do juízo, da punição, da culpa, da dívida.
Ao invés da dívida infinita em relação à instância transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Há aí, insistem os autores, nesse corpo desfeito e intensivo, tal como aparece em Kafka, uma vitalidade não-orgânica, inumana, e um combate: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importância das posturas do corpo”12.

Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, não consiste em destruir o outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua força. Em suma, o combate como uma “poderosa vitalidade não-orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo de que se apossa”.
Mas o que é essa vitalidade não-orgânica? Em “Imanência: Uma Vida”, último texto escrito por Deleuze, comparece um exemplo – o de Dickens. O canalha Riderhood está prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma “centelha de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele é, centelha com a qual todos à sua volta se compadecem, por mais que o odeiem -eis aí uma vida, puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma “espécie de beatitude”, diz Deleuze”13.

Peter Pál Pelbart –

Referências:

7 – Barbara Stiegler, “Nietzsche et la Biologie”, Paris, PUF, 2001, p. 38.
8 – Witold Gombrowicz, “Contre les Poètes”, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.
9 – José Gil, “Movimento Total”, Lisboa, Relógio d´Água, 2001, p. 153.
10 – http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm
11 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, São Paulo, Ed. 34, p. 149.
12 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, op. cit., p. 149-150.
13 – G. Deleuze, “L´Immanence, Une Vie”, in « Deux Régimes de Fous », Paris, Minuit, 2003.