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Filosofia Geral

Feliz aniversário Gilles Deleuze

Recebi um twitter hoje, assim: NaxosRT @dreamduke: Happy Birthday Gilles Deleuze. Sim, Deleuze nasceu no dia 18 de janeiro de 1925. E morreu no dia 04 de novembro de 1995.

Uma vida que transborda entre uma data e outra. Um dos últimos textos de Deleuze intitula-se, justamente,  Imanência: Uma Vida. O texto é uma preciosidade que sempre retomo. Cito um trecho

“Não deveria ser preciso conter uma vida no simples momento em que a vida individual confronta  com a morte universal. Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele  sujeito vivo atravessa e que esses objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o  acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet-Holenia põe o acontecimento em um entre-tempo que pode devorar regimentos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’a vida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles se comunicam entre si de uma maneira completamente diferente da dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular pode passar sem qualquer individualidade ou sem qualquer outro concomitante que a individualize. (…)

Os indefinidos de uma vida perdem toda indeterminação na medida em que eles preenchem um plano de imanência ou, o que vem a dar estritamente no mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (a vida individual, ao contrário, continua inseparável das determinações empíricas). O indefinido como tal não assinala uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa a não ser na medida em que é a determinação do singular.” (Leia o texto na íntegra: Imanência: uma vida)

Cito, também, trechos de um ensaio de Peter Päl Pelbart, intitulado Deleuze e a pós-modernidade, que vem justamente a calhar nesse momento em que tudo parece se diluir numa velocidade estonteante. Pelbart mostra como Deleuze nunca se considerou um pós-moderno e porque, apesar de ser incluído várias vezes no rool dos pensadores desse naipe, ter ficado à margem do debate. Se Deleuze é uma “carta fora do baralho”, diz Pelbart, é porque “ele inventou suas cartas, outras regras, um novo jogo.”

Pelbart retoma as comparações que Deleuze e Guattari fazem entre o xadrez e o go. O primeiro é um jogo de Estado, com suas peças codificadas e possuindo propriedades que lhe são intrínsecas. Com o go, se daria algo distinto: apenas grãos, sem propriedades que lhe possam ser inerentes, pois “tudo depende da situação, do meio, da exterioridade, de suas relações com nebulosas, constelações.”

No aniversário de Gilles Deleuze, nada como esta comparação para entender a novidade (e a diferença) de seu pensamento:

“Seria preciso ler a filosofia de Deleuze à luz dessas observações. Seus conceitos como peças de go espalhadas no tabuleiro contemporâneo. Aparentemente sem enfrentamento, no limite sem batalha. E no entanto, nos seus efeitos, capazes de aniquiliar uma constelação conceitual ou pragmática. Mas de modo esquisito: não tratando de distribuir o espaço fechado da contemporaneidade nem guerreando no interior de suas polaridades reconhecidas ou reconhecíveis (Deleuze tinha aversão pelo debate, e, aliás, por todo o ethos da discussão ou mesmo da comunicação), mas distribuindo-se num espaço liso que ele mesmo cria, preservando a possibilidade de surgir em qualquer ponto, sem sequer ser reconhecido, ás vezes travestido ou invisível.”

Peter Päll Pelbart mostra que Gilles Deleuze estará fora, portanto, das “representações gerais” do que se convencionou chamar de pós-modernidade. E mais:

“Pois em Deleuze não se ouvirá lamúrias nem professias sobre o fim do sujeito ou da história, da metafísica ou da filosofia, das metanarrativas ou da totalidade, do social ou do político, da ideologia ou da revolução, do real ou mesmo das artes (‘Jamais me preocupou a superação da metafísica ou a morte da filosofia, e quanto a renúncia ao Todo, ao Um, ao sujeito, nunca fiz disso um drama…”). E no entanto já é um outro espaço, uma outra paisagem, uma outra velocidade, um outro mundo.”

Em Deluze, continua Pelbart, não encontramos

“Nenhum pathos em relação à origem ou ao destino, nenhum ódio pelo mundo, nenhum ressentimento ou negatividade, mas tampouco complacência alguma em relação à baixeza do presente – sobretudo uma abertura extrema à multiplicidade contemporânea, aos processos que ela libera, aos devires que ela engendra.”

Parte da obra Vida Capital – , o ensaio sobre Deleuze apresenta como antídoto à melancólica visão da perda de tempo, a visão afirmativa da pluralidade do tempo. Por isso, diz Pelbart, “desde a perspectiva de um rizoma temporal, a própria idéia de um um ‘pós’ perde a sua relevância…”

Como nos outros ensaios do livro, Pelbart apresenta um exercício de pensamento criativo e generoso.  São textos para serem lidos e relidos.

E  parafraseando Benjamim, o autor diz que, se Deleuze ficou à margem dos temas pós-modernos, o legado de seu pensamento “permite escovar a pós-modernidade a contrapelo”.

Mas qual o sentido desse legado para as gerações vindouras? Pelbart responde:

“… poderíamos retomar a pichação feita num monumento em homenagem a Deleuze: ‘Gilles, tu nous manques, mais on se débrouille’ (Gilles, você faz falta, mas a gente se vira).”

Referências –

PELBART, Peter Päl. Vida Capital: ensaios de biopolítica. Iluminuras: São Paulo, 2003.

DELEUZE, Gilles. Pure Imamanence: essays on A Life. Introduction by John Rakchman. Translation by Anne Boyman.  Zone Books: New York, 2005. Obs. O livro contém ainda dois outros ensaios, além do que leva no título: um sobre Nietzsche e outro sobre Hume.

Gilles Deleuze – Wikipédia: (em francês – em inglês) –

Dossiê Gilles Deleuze

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

4 respostas em “Feliz aniversário Gilles Deleuze”

nada melhor que nosso reencontro para exemplificar essa pluralidade de tempo por nós vivida, unificada nas memórias de um território-tempo comum, multiplicadas em sentimentos-rizomas que rebrotam em vida em redes… que bom respirar mais esse encontro…

E o fato de você ter feito o comentário no post do aniversário de Deleuze, já nos diz desse tempo em potência, desse passado dentro do presente… Quantas histórias, Paula! A jovem-bióloga-mãe que foi morar num barco na Amazônia, que ministrou aulas para as professoras da selva, a pesquisadora e militante das causas ecológicas, rizomáticas, dos encontros e afetos liberadores. Que voltou para Niterói e continuou, na Fundação Oswaldo Cruz, a aprofundar seus caminhos… Então, você tem um bocado de coisas para contar, não é?

Deixo aqui a dica para quem quiser conhecer um pouco do trabalho na Fiocruz, o link para o seu artigo “Jogando se aprende ciência?”

Abraços

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