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Iluminações avulsas Urbano

Porosidades de uma poética do urbano

O novo site do Poro – intervenções e ações efêmeras – está um primor. Não só devido à elegância do visual, mas também às funcionalidades – nele você encontra tudo sobre os traçados e repertórios da dupla de artistas que o formam. Além de referências que desdobram e conectam esse plano de porosidades poéticas que a dupla de artistas, Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada! desenvolve desde 2002.

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Iluminações avulsas Poesia

A sede das areias quentes

Os braços são esponjas.
O coração.
A veia torta.
A nau enfim descoberta,
Nos olhos se faz sinistra presença.
Que tempo e nó serão esses?
A porta estava aberta e o sofrimento entrou.
Injeção letal
Pendurando na parede seu vestido
Líquido vítreo.
Quem escreve a sentença?
Eu?
Você?
As sombras ou as sobras?
As cotidianas migalhas de sonhos esmagados?
Aves que migram,
Cascos e borrascas,
Anjos e tintas magras,
Escrevam um bilhete para quem amo.
Digam que o amor sobrevive a tudo.
A quase tudo.
Não demorem,
Por um segundo se perde o segundo.
Num voo ralando suas plumas num chão de corte,
Na mão da sorte,
A estrela,
No começo da estrada, 
Está partida
E me pede que a guie.
Visões são sentimentos pagando pensão ao destino.
Vá, escreva logo este bilhete!
Não deixe que demore.
Os ventos ligeiros levarão esta mensagem
Ruflando através da noite.
Mas podem as palavras alguma coisa?
Marília e Dirceu?
Miragens são grades que dão para um mar seco.
Como pode a palavra ser língua
Enquanto míngua o amor nas trincheiras
Do dia a dia?


		
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Crônica Iluminações avulsas Urbano

O sorriso iluminado de um condutor de ônibus

Quando piso no primeiro degrau do ônibus, deparo-me com a frase “seja bem-vindo”. Curti aquilo e cumprimentei o motorista: – Bom dia! E ele me devolve outro “bom dia” com um sorriso impressionante, muito raro de se ver nas paisagens que habitamos, nas quais o mau-humor, quando não a ironia corrosiva, tem sido um afeto dominante.

Ocorre que, ao passar por aquele senhor de cabelos brancos e sorriso iluminado, veio-me a lembrança do Cigano, o motorista que contagiava a nós, garotos da década de 60. Cigano era um jovem por volta dos seus vinte anos, com imensas costeletas, a camisa um pouco aberta e uma colar tipo corrente no pescoço.

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Geral Iluminações avulsas Urbano

É só mais um dia que vai

A parte da frente do ônibus, anterior à roleta e onde fica o motorista, começa a encher sem parar. Ali se juntam algumas pessoas idosas que não têm o cartão de passe livre e devem descer pela porta da frente, e mais alguns e algumas jovens que provavelmente não pretendem pagar passagem. Tarde de um final de recesso escolar. Os corpos e as sensações flutuam dentro do coletivo de transporte.

A moça de musculatura forte, quase certo que por natureza ou trabalho, está de short e senta no colo de uma outra, também de short. A roupa é mínima. O olhar dessa que se senta no colo da outra é vago e parece não estar ali, naquele ônibus, naquele momento. Olha à frente e para o lado através da janela como se nada existisse, ao mesmo tempo em que está atenta, de algum modo, ao seu entorno. Diria que ela, se provocada, encara e bate – uma suposição apenas. Parecem personagens de algum filme futurista que entraram ali. Por outro viés, esse que escreve é um personagem do passado e não entende nada do que está se passando nesse mundo que lhe advém. Um modo de ver e sentir deslocado é salutar e potente quando não é um julgamento. Pois permite o estranhamento de si e de tudo em volta.

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Geral Iluminações avulsas Literatura Zonas Experimentais [ZnEx]

O homem sem cavalo

Imagem: Ivan Gabovich

Iluminações avulsas são presentes do instante, frestas que se abrem no repente. Você não as produz, tampouco as controla. Mas pode praticar modalidades de escuta na imanência – naquilo que emerge no campo de uma percepção flutuante.

Os possíveis entre cotidiano e poiesis que desabrocham ou irrompem nos espaços-tempos de uma experiência do entre.  As vezes são suspensões que, antes de nos retirar do mundo, nos permitem adentrá-lo mais ainda – a ponto de abismar nos sentidos. Tais iluminações avulsas – porque não presas a nenhum critério de oposição entre sagrado e profano ou que ainda perfazem totalidades – me trazem cortes e conexões com os processos de criação-composição. Ao modo das conjunções disjuntivas – para pensar com Deleuze.

Que  se instalem, portanto. E que   se saiba cultiva-las.

Trago aqui o encontro que testemunhei: o de um menino com um andarilho da cidade – do diálogo curto que se estabeleceu. Encontro de gigantes, acredite. Um acontecimento – aquilo que se passa entre mundo e linguagem. Que não se deixa apreender pelo regime de significação – não que não produzem sentido. Mas porque há sempre aquela sensação de que já é demasiadamente tarde – mesmo que seja um segundo. Pois que se tenta, pelos hábitos sensório-motores e pelas conexões de significação, totalizar  o acontecimento quando ele, pelo reverso, já escapou.