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O sorriso iluminado de um condutor de ônibus

Quando piso no primeiro degrau do ônibus, deparo-me com a frase “seja bem-vindo”. Curti aquilo e cumprimentei o motorista: – Bom dia! E ele me devolve outro “bom dia” com um sorriso impressionante, muito raro de se ver nas paisagens que habitamos, nas quais o mau-humor, quando não a ironia corrosiva, tem sido um afeto dominante.

Ocorre que, ao passar por aquele senhor de cabelos brancos e sorriso iluminado, veio-me a lembrança do Cigano, o motorista que contagiava a nós, garotos da década de 60. Cigano era um jovem por volta dos seus vinte anos, com imensas costeletas, a camisa um pouco aberta e uma colar tipo corrente no pescoço.

Cigano dirigia um trólebus, imenso e vagaroso ônibus elétrico, entupido de meninos que voltavam das escolas públicas, no final da tarde, em Belo Horizonte. E nós gostávamos de uma batucada e uma cantoria. Todos os motoristas mantinham a horda infantil sob controle, quando não sob ameaças de mandar descer e vir a pé. Cigano era diferente: nós subíamos a Rua do Ouro cantando e batucando, sem parar. Porém, aquele motorista não se atormentava, sorrindo sempre, não demonstrando qualquer sinal de desaprovação ou estresse. Era jovial, era feliz! Ele era o nosso ídolo, ele era O Cigano!

E quando descíamos do trólebus , parávamos para a despedida: -Tchau Cigano! E ele respondia com um largo sorriso, olhando nos nossos olhos, abrindo o braço direito com um gesto do polegar para cima. Positivo, sempre. Aquilo era um festa!

De volta ao meu embarque no ônibus, passei na roleta impressionado com o sorriso daquele motorista de cabeça branca, lá com os seus sessenta e poucos anos. E perguntei ao trocador, digo, agente de bordo: – Ele por acaso não tem o apelido de “cigano”? E o moço responde taxativo, me corrigindo: – Ele é O Cigano!

Como assim? Voltei-me para o Cigano e contei a ele das minhas lembranças. E ele se abriu contente, confirmando tudo. Mas, veja só você que me acompanha: o que faz um homem continuar jovial ao longo de sua vida, no meio de tantas coisas que submetem os corpos e os sobrecarregam de afetos tristes? Ele, que já está mais velho, e ainda continua a ser motorista, num trânsito cada vez pior, não teria que estar desgastado, talvez infeliz pela condição, digamos assim, de não ter alçado a outra realidade financeira melhorada? Não é isso o que difunde e cimenta o senso comum?

Pensamentos que vieram muito depois. Passei a viagem em suspensão, deixando as lembranças e outras sensações fazerem seus percursos.

Desci do ônibus e me despedi. E ele respondeu acenando com o polegar para cima, abrindo um sorriso iluminado. O sorriso do Cigano. Um sorriso búdico.

(*) Publicado originalmente no Overmundo, aqui com pequenas modificações.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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