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O homem sem cavalo

Imagem: Ivan Gabovich

Iluminações avulsas são presentes do instante, frestas que se abrem no repente. Você não as produz, tampouco as controla. Mas pode praticar modalidades de escuta na imanência – naquilo que emerge no campo de uma percepção flutuante.

Os possíveis entre cotidiano e poiesis que desabrocham ou irrompem nos espaços-tempos de uma experiência do entre.  As vezes são suspensões que, antes de nos retirar do mundo, nos permitem adentrá-lo mais ainda – a ponto de abismar nos sentidos. Tais iluminações avulsas – porque não presas a nenhum critério de oposição entre sagrado e profano ou que ainda perfazem totalidades – me trazem cortes e conexões com os processos de criação-composição. Ao modo das conjunções disjuntivas – para pensar com Deleuze.

Que  se instalem, portanto. E que   se saiba cultiva-las.

Trago aqui o encontro que testemunhei: o de um menino com um andarilho da cidade – do diálogo curto que se estabeleceu. Encontro de gigantes, acredite. Um acontecimento – aquilo que se passa entre mundo e linguagem. Que não se deixa apreender pelo regime de significação – não que não produzem sentido. Mas porque há sempre aquela sensação de que já é demasiadamente tarde – mesmo que seja um segundo. Pois que se tenta, pelos hábitos sensório-motores e pelas conexões de significação, totalizar  o acontecimento quando ele, pelo reverso, já escapou.        

Passemos, assim, à história-acontecimento do homem sem cavalo.

Sábado de manhã, andava com meu filho mais novo então com cindo anos de idade. No trajeto, um homem de uma compleição física forte, por volta de uns quarenta anos ou pouco mais, de bigodes negros, com um chapéu branco, botas de plástico também brancas e um saco às costas, vasculhava as lixeira por onde passava.

Aquele homem não se assemelhava ao que já estamos acostumados numa grande cidade como Belo Horizonte: pessoas muito pobres mexendo em latas de lixo. A não ser nisso de procurar, entre as coisas que os outros jogam fora, algo que sirva. Tenho que fazer uma correção: nos últimos anos, cada vez mais vejo pessoas que não são mendigos ou moradores de rua vasculhando lixeiras. Alguns sobrevivem catando latas para revender.

O menino se surpreende com o homem e me chama a atenção dizendo:

– Olha, o vaqueiro!

Parei por um instante, fazendo logo uma interpretação: a ligação do menino com a roça, onde brinca nas férias. Além de ser uma imagem ingênua, baseada nos traços que aquele homem exigia: as botas brancas de plástico e o chapéu. Sim, nada precisa acontecer, pois o hábito explicativo nos salva de qualquer incômodo latente, impedindo o novo de vir à tona. Então, considerando aquilo um somente um pouco curioso, seguimos em frente.

Voltamos a andar.

O homem logo nos alcançou, numa linha que oscilava entre a paralela e a transversal em relação ao nosso trajeto. Por um tempo que dura, caminhamos lado a lado em silêncio: o menino de mão dada comigo, o homem de chapéu que parecia com o de um vaqueiro. Havia um ritmo coincidente quase. Um corte abriu um veio naquela manhã, fazendo fluir as sensações de nosso percurso, em meio à margem da calçada, em que eu e meu filho estávamos e o asfalto, onde o homem vagava próximo ao tráfego dos carros. Agora, éramos três a caminhar.

E num repente, não sem quase soltar da minha mão, o menino dirige-se ao caminhante que fazia a estranheza avizinhar-se de nosso percurso:

– Moço, cadê o seu cavalo?

O homem parou e olhou para nós. Um tempo se deu. Depois fitou o menino num tempo de muitas estações. Concebi que ele diria qualquer dessas coisas que dizemos às crianças imaginativas: “ora, o meu cavalo…” E sorriria, e talvez ainda perguntasse se ele gostava de cavalos, essas coisas que a conversa coloquial estabelece.

Mas não foi isso. Sua resposta foi uma pergunta:

– O meu cavalo?

Novo silêncio. E ficamos os três parados. Pude ver os olhos daquele homem cheios de um brilho molhado. E não é que ali estava um homem sem cavalo? Não me peça para explicar isso.

Aquela quietude e impasse durou um tempo.

O homem toma outra direção sem dizer alguma palavra ou fazer qualquer gesto conhecido ou dado a conhecer, e esse pequeno rasto na manhã de sábado é mais uma vez remendado pelos hábitos. ar. Entretanto, reverberava ainda em mim o acontecimento do encontro entre o menino e o homem sem cavalo.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

2 respostas em “O homem sem cavalo”

Luiz,
Há tempos acompanho seu blog e me emociono com sua poesia misturada com arte e realidade…além de poder de alguma forma lembrar mesmo que indiretamente de algumas passagens de minha infância.
Grande abraço!!!
Ricardo Amâncio dos Santos

Querido Ricardo, fico imensamente feliz de receber sua visita aqui. Sim, essa mistura de arte e realidade pode nos abrir outras percepções. No caso em questão, me interessa sim perceber no cotidiano essas iluminações avulsas… Pano para muitas conversas, não é? Saudades.

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