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Contrário disso: a capacidade de um corpo ser afectado

No campo do teatro, principalmente, aparece sempre a questão do corpo como um fenômeno de comunicação. Que não passa de um equívoco: ver a cena como algo que é emitido (do ator/atriz) para alguém que observa (o espectador/receptor). Contrário disso, o corpo em termos das forças capazes de produzir afecções – numa visada do pensamento de Gilles Deleuze. Peter Pall Pelbart nos apresenta essa visão:

“… seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher7.

Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes -um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas não por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estômago fenomenal, na pura indiferença daquele a quem nada abala…
Como então preservar a capacidade de ser afetado, senão através de uma permeabilidade, uma passividade, até mesmo uma fraqueza? Mas como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força, pergunta Nietzsche. Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente8, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, onde está preservada a liberdade de “seres ainda por nascer”… Porém, será possível dar espaço a tais “seres ainda por nascer” num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética autossuficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? Talvez por isso tantos personagens literários, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente blindado não permitiria. Mas será preciso produzir um corpo morto para que outras forças atravessem o corpo?
José Gil observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, como o diz Cunningham. Um corpo “que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma”, para então poder “ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida”. É aí, diz Gil, que esse corpo, que já é um corpo-sem-órgãos, constitui ao seu redor um domínio intensivo, uma nuvem virtual, uma espécie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade próprias, como se o corpo exalasse e liberasse forças inconscientes que circulam à flor da pele, projetando em torno de si uma espécie de “sombra branca”9. Não posso me furtar à tentação, nem que seja de apenas mencionar, a experiência da Cia. Teatral Ueinzz, que coordeno em São Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicóticos, posturas “extraviadas”, inumanas, disformes, rodeados de sua “sombra branca”, ou imersos numa “zona de opacidade ofensiva”10.
O corpo aparece aí como sinônimo de uma certa impotência, mas é dessa impotência que ele extrai uma potência superior, nem que seja às custas do corpo empírico.
Pois é às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona. Desde o jejuador até o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes”. Como dizem Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo”11, ainda que ele seja o de um coleóptero. “Criar para si um corpo sem órgãos, encontrar seu corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo” do pai, do patrão, de Deus, é uma maneira de fugir a todo um sistema do juízo, da punição, da culpa, da dívida.
Ao invés da dívida infinita em relação à instância transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. Há aí, insistem os autores, nesse corpo desfeito e intensivo, tal como aparece em Kafka, uma vitalidade não-orgânica, inumana, e um combate: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importância das posturas do corpo”12.

Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, não consiste em destruir o outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua força. Em suma, o combate como uma “poderosa vitalidade não-orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo de que se apossa”.
Mas o que é essa vitalidade não-orgânica? Em “Imanência: Uma Vida”, último texto escrito por Deleuze, comparece um exemplo – o de Dickens. O canalha Riderhood está prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma “centelha de vida dentro dele” que parece poder ser separada do canalha que ele é, centelha com a qual todos à sua volta se compadecem, por mais que o odeiem -eis aí uma vida, puro acontecimento, em suspensão, impessoal, singular, neutro, para além do bem e do mal, uma “espécie de beatitude”, diz Deleuze”13.

Peter Pál Pelbart –

Referências:

7 – Barbara Stiegler, “Nietzsche et la Biologie”, Paris, PUF, 2001, p. 38.
8 – Witold Gombrowicz, “Contre les Poètes”, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.
9 – José Gil, “Movimento Total”, Lisboa, Relógio d´Água, 2001, p. 153.
10 – http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm
11 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, São Paulo, Ed. 34, p. 149.
12 – G. Deleuze, “Crítica e Clínica”, op. cit., p. 149-150.
13 – G. Deleuze, “L´Immanence, Une Vie”, in « Deux Régimes de Fous », Paris, Minuit, 2003.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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