Potências da abstração

Jean-Luc Godard, em A nossa música, apresenta um texto maravilhoso que nos remete às forças e potências da abstração em arte. No reverso do que muitos pensam, a abstração pode ser simultaneamente concreta, isto é, uma expressão de linhas sensíveis.

O que me fascinou no texto em tela, sem falar na imensa beleza desse filme, é que ele nos convida a pensar em termos de sentido e não de significação. Tomo isso não só para os encontros vivos, mas também e principalmente em relação às poéticas performáticas. Estas justamente surgiram como rupturas no logocentrismo que domina a linguagem e a vida, inventando meios de resistência e de sentido. As pessoas falam comumente em “comunicação” e também em “representação”, como se disso tratasse a arte. Godard subverte tais ditames no cinema com a maestria, o lirismo e a audácia que lhe são característicos.

Na cena de A nossa música, vemos uma adolescente com roupas contemporâneas folhear um livro de arte, enquanto a voz em off diz:

“É uma camponesa da época do Segundo Império que disse ter visto a virgem.
Perguntam como ela é e Bernadete diz: –Não sei dizer. A madre superiora
e o bispo mostram a ela reproduções de grandes pinturas religiosas: a Virgem de
Rafael, de Murilo e por aí vai. Bernadete diz para todas: – Não, não é ela!
De repente surge uma Virgem de Cambray, um ícone. Bernadete se
ajoelha e diz: –É ela, Monsenhor!
Sem movimento, sem profundidade, nehuma ilusão. O sagrado.”

Referências
Nossa músicaFicha TécnicaTítulo Original: Notre Musique Gênero: DramaTempo de Duração: 80 minutosAno de Lançamento (França): 2004Estúdio: Les Films Alain Sarde / Canal+ / TSR / Vega Film AG / Avventura Films / Peripheria / France 3 Cinéma Distribuição: Wellspring Media Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard Produção: Alain Sarde e Ruth Waldburger Música: Julien HirschDireção de Arte: Anne-Marie MiévilleEdição: Jean-Luc Godard.
Nossa música – revista Contracampo de cinema
Nossa música – Godard. Documentário e ficção no cinema moderno.

Não se trata de comunicação: a arte do teatro

O teatro vem sendo acostumado a acreditar que muito de sua arte se resume a uma comunicação entre palco e público. Defendo aqui que não se trata de comunicação. Mas isso não quer dizer que a encenação se fecha num espaço hermético, que ignora as pessoas etc. Penso antes que há um choque primordial (no sentido parabólico) entre dois seres. Brindo vocês com uma tradução que faço dessa citação do encenador polonês Tadeusz Kantor, que fala desse choque/encontro, que compõe com forças que não podem ser reduzidas a qualquer codificação (mantenho a sua formatação original):

“É necessário re-colocar o significado essencial do relacionamento: ESPECTADOR e ATOR. É NECESSÁRIO REDESCOBRIR A FORÇA PRIMORDIAL DO CHOQUE TOMANDO POSSE DO MOMENTO QUANDO O HOMEM ANTAGÔNICO (O ESPECTADOR) POSICIONOU-SE PELA PRIMEIRA VEZ DIANTE DE UM HOMEM (O ATOR) DEPRECIAVELMENTE SIMILAR A NÓS, AO MESMO TEMPO INFINITAMENTE ESTRANGEIRO, ALÉM DE UMA INTRANSPONÍVEL BARREIRA.” (1)

(1) KANTOR, Tadeusz. A journey through other spaces: essays and manifestos, 1944-1960. Edited and Translated by Michal Kobialka. With a Critical Study of Tadeusz Kantor´s Theatre by Michal Kobialka. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1993