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O graforisco: pixo, poesia do acaso e política pública

” (…) na transversal da cidade PALAVRAS-OBJETOS-COISAS que são também as EMOÇÕES OBJETOS/ABJETAS estampadas nos muros, casas, muretas. para quem quiser e/ou mesmo não quiser ver. (…) sair na calada da noite – PIXAR-PIXANDO – como se a rebelião estivesse no fato de buscarmos um outro sentido das palavras.” Cristina Fonseca, in A Poesia do Acaso – na transversal da cidade.

A escritora, poeta e videoartista, Cristina Fonseca, publicou A Poesia do Acaso em 1981. De lá para cá, o livro conserva o momento e o contexto de sua criação e, ao mesmo tempo, permanece atual, principalmente nessa discussão sobre o estatuto do pixo nas grandes cidades.

Uma discussão urgente, tendo em vista que, em Belo Horizonte, as autoridades municipais decidiram que os jovens pixadores devem ser enquadrados não mais na lei de “crime ambiental”, mais branda, mas como “formação de quadrilha”. Como denunciamos num artigo anterior (Pixo: criminalização ou política pública?), os jovens aguardam julgamento por tempo indeterminado, misturados com criminosos de toda espécie.  

Os responsáveis pela formulação e execução de políticas públicas deveriam, no mínimo, formar um grupo transdisciplinar para abordagem da questão. O pixo como problema social, existencial e cultural.

Que objeto é este, o pixo? Quais são seus percursos líricos, transgressivos, econômicos e antropológicos? Como lidar com o fenômeno? Porque, cada vez mais, os jovens da periferia aderem a esse grafo-risco? Por que a política de tentar fazer do graffiti o futuro do pixo tem falhado?

Estas são algumas perguntas que as autoridades municipais deveriam se colocar. E não simplesmente criminalizar a juventude por atos que não deixam de ser expressivos e, em alguns casos, coletivos. Se de um lado esperam coibir novas ações contra o patrimônio edificado, por outro lado estarão inserindo os jovens nas linhas da criminalidade, ao trancafiá-los em presídios e cadeias. Além disso, a criminalização apenas reforça o preconceito.

Nada mais importante, portanto, do que a leitura de obras que trazem outras luzes sobre a questão. Cristina Fonseca captou um momento singular: a emergência de uma nova poesia riscando os muros e paredes da cidade de São Paulo. A Poesia do Acaso é um livro-objeto, uma celebração do instante-fragmento, flagrado nas passagens e espaços urbanos. Um olhar sobre esses grafo-riscos que, mais tarde, invadiriam quase a totalidade da paisagem.

A obra de Cristina Fonseca apresenta textos ágeis e poéticos, além de imagens, perpassando Maio de 68 e Nova York em 1972, para desaguar na década de 80 em São Paulo. Um híbrido de documento e criação literária. Traz uma entrevista com Décio Pignatari, que aborda os contextos culturais desse espaço entre poesia concreta, poesia verbal e o sprayação.

Imagem de Virgínia Fonseca - do livro A Poesia do Acaso

Há uma diferenciação entre graffiti e pixo? Não esta, que o senso comum acaba por aproximar de uma condenação: a de que o ato de pichação (então, com “ch”) seria vandalismo puro. O pixo (então com “x”) teria ainda um fator de denúncia e de recusa à assimilação? Um movimento de territorialização dos espaços urbanos?

Pixo e Silk em BH: imagem do Editor

Volto-me, entretanto à questão do graforisco.  O livro de Cristina Fonseca traz um texto ímpar e muito esclarecedor, de Jean Baudrillard:

“Trata-se de uma ofensiva tão ‘selvagem’ quanto as revoltas, mas de outro tipo, uma ofensiva que mudou de conteúdo e de terreno. Estamos em face de um novo tipo de intervenção na cidade, não mais como lugar do poder econômico e político, mas sim como espaço/tempo do poder terrorista dos media, dos signos e da cultura dominante”. (…)

“(…) a revolta nessas condições (de escrever nomes sobre o metrô), está inicialmente em dizer: ‘eu existo, eu sou tal, eu habito aqui e agora’.”

Mas Baudrillard diz que o sprayação não se restringe a uma questão de identidade, o que seria apenas uma forma de “combater o anonimato reivindicando um nome”. Para ele não se trata nesses grafo-riscos de conjurar nomes, mas sim pseudônimos. E diz que o spray , ao “voltar à indeterminação contra o sistema – transforma a INDETERMINAÇÃO em EXTERMINAÇÃO”.

O pixo tem que ser discutido e não simplesmente criminalizado da forma mais dura e abjeta. Os responsáveis pelas políticas públicas devem buscar soluções mais inteligentes e, pensando nas consequências de curto e longo prazo, atuar na formação dos cidadãos.  O pixo, como todo dissenso, coloca desafios.

Referências –

FONSECA, Cristina. A poesia do acaso – na transversal da cidade. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1981

Manifesto: liberdade aos Piores de Belô – por Conjunto Vazio

– Somos todos Piores de Belô – por Praça Livre BH

– Política e estética do dissenso: o caso da pichação na Bienal de São Paulo – por Olho-de-Corvo

– Pixação: questões sobre arte, mercado e práxis – por Conjunto Vazio

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

2 respostas em “O graforisco: pixo, poesia do acaso e política pública”

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