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Política e estética do dissenso: o caso da pichação na Bienal de São Paulo

A Bienal de São Paulo/2010 incluirá a ação de pichadores na mostra. O convite foi feito ao mesmo grupo que, ao invadir a Bienal de 2010, foi preso, sendo que uma das integrantes ficou trancafiada por quase dois meses. Na época (Bienal de 2008), os curadores reagiram violenta e ruidosamente ante o atentado à arte e ao patrimônio público, deixando na mão das instituições judiciárias kafkanianas a sorte da jovem que havia pichado a Bienal. A nova curadoria, sob a coordenação de Moacir dos Anjos, opera uma reviravolta conceitual e política: o que foi condenado brutalmente sob as luzes do consenso estético-político (defendido a unhas e dentes pela curadoria anterior), volta para se manifestar,  agora sob a ótica do dissenso.

Dois aspectos não participaram do consenso de então: a prisão brutal e a própria ambiguidade de uma Bienal que se mostrava incapaz de ocupar um espaço, o segundo andar, deixando-o vazio, num convite implícito ou explícito para qualquer manifestação. No entanto, a “lei” e seu braço armado, a polícia, foram acionados para se ocuparem de uma ação que, num evento artístico, foi considerada fora das regras, do consenso estético-político, apesar da ambiguidade da Bienal em relação ao vazio, que para alguns autores, artistas e intelectuais, era um vazio político e estético de concepção.

Um texto assinado por vários autores, no Canal Contemporâneo, mostrou as contradições da 28a Bienal quanto à sua própria prática cultural. O texto mostra como o “vazio” foi uma resposta esvaziada em si mesma para as dificuldades financeiras enfrentadas pela curadoria do evento, ressaltando também uma incompetência para lidar com as tensões geradas pela falta de proposta. Comentários, protestos, críticas e propostas de ocupação e ou de manifestação começaram a ganhar espaço na sociedade, pela internet, pelos jornais e outros. A questão ganhou forças e desejos de apropriação:

“Nesse contexto, seria de se esperar que o vazio produzisse um espaço público de manifestação. O que seria convergente também com todo o processo experimental da arte desde o século 19, e que a partir daí perpassa a arte moderna e contemporânea. Seria, portanto, também de se esperar que não fosse estranho à matéria de que trata a Bienal, isto é, manifestações artísticas contemporâneas, e à tradição ainda recente de rompimento das fronteiras entre arte e vida, e de participação na constituição mesma da obra artística. Manter esse espaço vazio à força estabeleceu, portanto, uma contradição com o sentido público desse espaço e com o sentido público da expressão cultural atual, invocado de modo tão superficial pela Bienal: ‘Em Vivo Contato’.”

A curadoria passou a encarar de modo defensivo e, ao mesmo tempo, com uma dose de “paranóia institucional” (afinal, lembremos Deleuze e Guattari, não só os corpos individuais deliram, mas também os outros corpos, inclusive os institucionais…), as ameaças de ocupação e intervenção no espaço “vazio” que eles projetaram para permanecer indelével, numa espécie de contra-vontade afirmada e reafirmada. Deu no que deu. Se governos, burocratas e gestores públicos muitas vezes não entendem a dinâmica de uma “eficácia simbólica” (como dizem os antropólogos), ao menos gestores de cultura e de arte deveriam entender. Mas, como aqueles, deliraram juntos, não pelas linhas de fuga, mas numa crispação autoritária e vingativa. A defesa do Estado pelo “estado das coisas”: polícia acionada, prisão decretada, justificativas horrendas.

A 29a Bienal inverteu o jogo, trazendo para o debate público a diferença e o dissenso. O que a nova curadoria pretende não é realizar um ato de desagravo (mesmo que este se faça implícito ou que, afinal, se efetive), mas sim expor as separações, as não coerências, trazendo para a arte a questão política. Sem discursos, sem retórica, mas com a contradição exposta, como afirma Moacir dos Anjos:

“Seria demagogia se estivéssemos simplesmente convidando pixadores da mesma forma que tantos outros artistas estão sendo convidados. Mas nós sabemos que essa igualdade não existe, e eles evidentemente também sabem. O que nos interessa é justamente tentar entender essas diferenças, e os limites e as possibilidades dessa aproximação. E é isso que também acho que interessa aos pixadores. Ninguém está tentando escamotear nada. Tudo está sendo feito às claras. A aposta é na explicitação de questões, não no oferecimento de respostas fáceis. E como as questões precisam ser melhor formuladas tanto por nós, pertencentes ao chamado ‘campo da arte’, quanto pelos pixadores, nosso empenho é demonstrar que a Bienal de São Paulo pode ser plataforma privilegiada para a formulação dessas questões. Se conseguirmos ao menos isso, acho que já teremos dado uma contribuição relevante para o início de um debate mais amplo e consequente sobre o assunto.”

E mais:

“O que realmente queremos incluir na presente edição da Bienal é a pixação, ou simplesmente o pixo, com ‘x’ mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em São Paulo das pichações político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do quão ‘limpa’ ela queira apresentar-se. E queremos incluí-lo porque achamos que o pixo borra e questiona os limites usuais que separam o que é arte e o que é política. E essa é uma questão que interessa muito ao projeto curatorial da 29ª Bienal.”

Numa entrevista, Jacques Rancière questiona a noção de política como “lógica do consenso” (Habermas):

“o que tento mostrar é que a lógica da política não é essa, é a lógica do dissenso, daquele que não faz parte da discussão, de criar normas que não existem. Os sujeitos da política se inventam inventando as normas da discussão.”

Tudo isso produz aberturas, pela incongruência e pela diferença intrínseca. Uma nova aprendizagem pode se dar, pela violência do vivido em sua força bruta e simbólica, desgarrando nossa libido de certas aderências aos poderes, sejam eles ancorados em leis jurídicas ou em outras codificações que circulam por aí. Oportunidade ímpar de exercitar uma prática de contrapoder.

Vejo, porém, que parte da mídia não está entendendo, acredito, a questão da pichação na Bienal. Alguns colunistas creditam à curadoria da 29a Bienal a tentativa de elevar a pichação à categoria de arte. Se bem entendi a argumentação da curadoria, não se trata disso. O que estão fazendo é colocar em curso o dissenso estético e político. E trazem o problema para o debate. Principalmente quando as pessoas pedem ações mais incisivas, por parte das autoridades, em relação aos pichadores. Quem consegue simpatizar-se com a ação de pichadores sobre casas, prédios e monumentos de nossas cidades?

Como a ação ocorreu no contexto de uma “Bienal do Vazio” que age com os poderes de polícia e de jurisprudência contra uma manifestação, que foi uma resposta à própria ambiguidade do evento, a sua “volta” não significa mera aprovação ou “igualdade”, como diz o curador. Mesmo assim, a entrada desses jovens no espaço da Bienal, traz propicia a discussão não só o ocorrido na 28a Bienal, mas também insere uma expressão incômoda para o restante dos agentes públicos e da cidade.

Vamos acompanhar os desdobramentos. Nesse campo, nada é certo. E isso é que é o novo, sem ser novidade.

Mais referências –

Pixação: questões sobre arte, mercado e práxis – Conjunto Vazio

Para Bienal “pixo” pode ser arte e política – Folha de S. Paulo

– “Pixo” na Bienal de São Paulo provoca racha nas artes – Folha de S. Paulo

– Caso Caroline Pivetta da Mota na 28a Bienal de São Paulo – Canal Contemporâneo

Curadores da 29a Bienal de São Paulo discutem rumos da mostra – Fórum Permanente

– Imagem: Jornal Estado de São Paulo ( segundo a Revista Noize)

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

9 respostas em “Política e estética do dissenso: o caso da pichação na Bienal de São Paulo”

Gisele,

Agradeço por você ter enviado o link de seu texto, no blog Tecituras sobre as Bienais de São Paulo, incluindo a questão da pichação. E parabéns pelo material que o blog nos oferece.

Abraços

Conjunto Vazio,

Li o texto que vocês escreveram sobre o tema. Muito bom o que vocês escrevem, e me faz pensar sobre a questão da pixação (agora, com “x”).

Deixei, lá, um comentário.

Em tempo: linkei o artigo nas referências do post. Agradeço a sugestão.

Abraços

Mano Garrocho blogueiro,
vi o convite como tolice, modos de elite em se fazer bonitinha. Tolice enfeitada.
Vão separar um lugar legal pra eles pixarem?
Agora, se o pixadores derem de pixar onde quiserem, inclusive por riba das obras de arte-arte lá exibidas, terão mantido sua linha de ação que é foder sobre o que já está fodido, e ninguém vai poder botar polícia neles.
abraço, mano.

Salve, Walmir!

Este risco existe sim. Mas olhe só: vi um comentário no blog Conjunto Vazio, feito por um dos ativista-pixadores, o Cripta, dizendo que vão surpreender!
Você mostra que as opções já estão previamente marcadas: ou pixam em cima do que já está, ou em lugar separado – e isso não vai ser uma ação de “ilegalidade”, como defendem.
Andei discutindo, também, um pouco sobre o assunto no blog do Conjunto Vazio. Mais para tentar entender por onde que passa tudo isso. Suspeito que um plano de consistência para o debate ainda não tenha se colocado.
Vez por outra visto seu blog combativo: http://walmir.carvalho.zip.net/ – o novo título, “Hospital para Palavras Doentes”, promete.
Abraços

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