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Kazuo Ohno: uma homenagem

"Dancing in Kushiro Marsh" IV (1994), by Eikoh Hosoe.

Kazuo Ohno encantou-se no dia 01.06.2010.  Tive a oportunidade de assistir a uma performance de Ohno em 1992, em Belo Horizonte. Eu não possuía qualquer informação prévia sobre o  butô.  Com um longo vestido que se arrastava pelo chão, um giro de Ohno no espaço demorava um tempo enorme. E esse movimento quase parado abria paisagens, janelas e visões a cada momento. Impressionante: a extensão é intensiva. Um corpo que esculpe o tempo e produz uma duração.

Tomo a liberdade de traçar, a partir das imagens de Ohno, linhas a-paralelas. Ou seja, sem encontrar correspondências biunívocas. Busco, para tanto, algumas idéias do filósofo José Gil (2). Ele fala de atmosferas, nuvens corporais, pequenas percepções:

“Como diz Leibniz, as pequenas percepções são ‘essas impressões dos corpos vizinhos que envolvem o infinito’. Elas compõem nuvens ou ‘poeiras’ (expressão de Leibniz). Preferimos chamar essas poeiras de atmosferas. Pois as pequenas percepções fornecem impressões confusas mas globais, em constante movimento. E, antes de compor macropercepções – antes que as miríades de pigmentos de amarelo e verde se misturem para constituir o verde -, há uma espécie de tendência anunciada e pressentida no turbilhão das pequenas percepções: isso é a atmosfera.”

José Gil diz que é “uma força”. Possui intensidade e direção, um “vetor, um quantum intensivo, um tônus”. Um corpo vibrátil.

Forças vadias, posso dizer.  E há que se perceber esse movimento fora das roupagens do “inefável”,  da idéia de uma “alma do butô”, como se deu por capturar em moldes fixos no Ocidente.  São tarjas colocadas sobre Ohno, que buscava na singularidade a sua criação. Christine Greiner mostra em Butô – pensamento em evolução (3), como se deu a difusão de todo um entendimento equivocado.

O filho de Ohno, Yoshito Ohno, falou uma vez, no Encontro Mundial de Artes Cênicas (Ecum) mostrou esse equívoco. Disse que o butô era um caminhar lento e  faminto  na neve. E ele dizia que, na época de Hijikata, a neve era alta, ia até os joelhos. Por isso os corpos eram densos e afundavam… Hoje, completou com ironia, a neve nem chega ao tornozelo dos que dançam o butô… E mostrou isso no próprio corpo.

O butô como problema de replicação e transformação. Principalmente quando prolifera, já distante do contexto e de um corpo morto. É o que observa Christine Greiner. Corre o risco de tornar-se uma interpretação figurativa.

Ohno extraiu forças invisíveis que se fizeram visíveis.  E fez isso no contexto único e singular dos seus enfrentamentos.  São questões da arte, que não se fazem capturar por moldes, modelos ou receitas.  Matérias não-formadas transformando-se sob processos de individuação e pura singularidade. Coisas de um mestre, um grande artista.

Termino com José Gil, que pergunta sobre o estatuto da visibilidade e da indivisibilidade:

“Então, o que uma obra de arte apresenta de visível? Nem a ausência do visível, nem mesmo sua não-inscrição. (…) esse lugar não é o negativo de um território visível, determinável, mas o espaço positivo ‘desenhado’ por forças e do qual elas emanam.”

São a-paralelismos (tomados de Deleuze), pelos quais procuro expressar minha admiração pela arte de Kazuo Ohno. E para trazer, também, algumas questões que essa arte, como toda arte que brota das feridas, coloca.

Viver a vida ao modo da arte e ser atravessado por forças impessoais. Kazuo Ohno viveu isso.

Never gone and never came (1).

Vídeos:

httpv://www.youtube.com/watch?v=Jildd4L6_UM&feature=related

httpv://www.youtube.com/watch?v=2gqukIxf8oM

httpv://www.youtube.com/watch?v=i3hAJSoF3lo&feature=related

Referências

(1) Expressão referida ao Buda histórico Shakyamuni (563 a.C), o Tatagata.

(2). GIL, José. As pequenas percepções. In LINS, Daniel (org.) Razão Nômade. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2005.

(3).  GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. Escrituras: São Paulo, 1998.

–  Kazuo Ohno Dance Studio

Dossier Kazuo Ohno – Revista Obscena de Artes Performativas

Kazuo Ohno and Butho – por Jack Egan

– Kazuo Ohno: o dançarino do invisível. Entrevista a Irion Nolasco. Site do Grupo Tempo.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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