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Nova cruzada moral e caça às bruxas: o pixo em Belo Horizonte

Imagem do Blog Mene Lick 2o Ato

“Mais quantas gerações de jovens ainda vão escalar paredes como bichos e inventar sua própria língua, para nos dizer que sim, são gente? Fernando de Barros e Silva, Folha de São Paulo

Mudança de orientação em termos de política pública?

Para alcançar a meta de tornar Belo Horizonte uma “cidade sustentável”, a atual Administração Municipal de Belo Horizonte tem, entre suas diversas estratégias, e com o apoio de um promotor do Ministério Público Estadual, o enquadramento de jovens pixadores por crime de “formação de quadrilha”, o que os faz aguardar julgamento em presídio, por tempo indeterminado. Se não é esta a intenção, é o que está de fato acontecendo. Ou o que se pretende que aconteça.

Basta citar o exemplo que vimos denunciando neste blog, o de um grupo de jovens pixadores,  autointitulados Piores de Belô, que foram autuados e presos por 117 dias, até que se iniciasse o julgamento. Por decisão do juiz na primeira audiência, os jovens retornaram aos seus lares para passar Natal e Ano Novo com as famílias, aguardando a continuidade do julgamento em liberdade.

Concluiu-se que os jovens atuavam em “bando”, logo, em “quadrilha”. Daí, mudar o enquadramento para o Artigo 288 do código penal, foi um passo. Torna-se evidente a perversidade desta estratégia, cujo objetivo é realmente o “recrudescimento da repressão”, segundo a expressão utilizada pelas autoridades. Ora, como os adolescentes e jovens vivem em grupos, seja para brincar, jogar, aprender sobre a vida, a utilização do recurso cai como luva na intenção de utilizar a penalidade máxima disponível!

Deve ser lembrado mais uma vez que o pixo sempre  foi considerado “crime ambiental”,  passível de ser punido com reparo do dano, multa e medidas socioeducativas. Entretanto,  o foco “socioeducativo” foi deslocado, ou apagado, na atual gestão da Administração Municipal, que preferiu investir no “recrudescimento da punição”. Discutimos isso no artigo Pixo: política pública ou criminalização? (ver o link em  Referências).

A mudança do foco é notória, já que Belo Horizonte foi governada há 16 anos por coalizões políticas que tendiam para a esquerda, com uma visão social da cidade e de seus problemas. Havia o esforço de pautar a ação do Estado, no caso o governo municipal, pelas linhas de inclusão.

Visão unilateral da gestão pública

Já não é mais o que acontece em Belo Horizonte. O  Arena da Cultura, projeto que durante anos foi um formador de inúmeros jovens das mais diferentes regiões da cidade, sendo debatido nas universidades pela sua importância para dizer o mínimo, encontra-se há mais de dois anos completamente paralisado. O projeto Guernica, voltado para a educação e a promoção do Grafite, encontra-se isolado e desarticulado. O que ficou?

A constatação, em primeiro plano, de que a cidade está ficando “suja”. O problema do pixo tornou-se, desse modo, um alvo importante para a meta de uma “cidade sustentável”. Porém, em vez de tratar do assunto como política pública, numa perspectiva inclusiva e social, envolvendo a noção contemporânea de “rede” (com suas conexões territoriais e existenciais, expressivas e sociais, além dos aspectos educacionais e econômicos), a Administração Municipal faz a opção por uma visão unilateral de “gestão pública”.

Nesse aspecto, não se quer saber nada sobre os processos de subjetivação que o pixo comporta. A não ser aqueles fatores e traços (manifestações nas redes sociais etc.) que possam levar, mais rápido e com mais eficiência, ao encalço de quem o pratica. Esta é a nova “política pública”. Importa que a cidade se mantenha “limpa”. E que o mote “Movimento Respeito por BH” possa agregar opiniões e forças para ação do Estado. Que no caso, pauta-se pelas linhas de exclusão. E tudo isso em nome da uma visão da administração política como “gestão”. Para tanto, há que mobilizar, com estratégias já adquiridas, movimentos de adesão popular, sugerindo um aspecto espontâneo. Por exemplo: estudantes de determinada escola são convocados a pintar paredes pichadas etc. Ninguém pode ser contra isso. São atitudes louváveis. O problema está no contexto em que tais ações aparecem!

Adesão da opinião pública e mobilização cidadã: o que é isso?

Há, aqui, uma ironia sobre o que se entende por mobilização cidadã: aquela que possa servir de propaganda do Estado, ao mesmo tempo em que “aparece” como corpo social autônomo, dele emergindo como resposta “natural” aos problemas da cidade.  Ora, isso é pura instrumentalização política.  E as adesões  de outros setores encontram eco, também por entenderem a questão de um ponto de vista unilateral. Algo do  tipo: se há dano, há que simplesmente extirpar quem o causa.

Em tudo isso, há algo que o fascismo sabe fazer muito bem: valorização exclusiva da cidade oficial, desqualificação, marginalização e, se for o caso, repressão das apropriações emergentes que não coincidem com a visão perpetrada pelo Estado. E, acima de tudo,  glorificação da “pureza” civil. E isso não está acontecendo somente com o Pixo, mas com a Praça da Estação (impedida de expressão cultural e artística que não seja por cercas ridículas), com o movimento Soul Music da cidade, com as ocupações de moradias por sem-tetos etc.

A nova cruzada moral tem por eixo, segundo a Administração Municipal, três ações independentes entre si: “repressão qualificada”, “sensibilização” e “despiche”. Em algumas falas, no lugar de “sensibilização” aparece “educação”. Efetivamente, o que temos é o “recrudescimento da repressão”, acompanhada de adesão de parte da  opinião pública, incluindo as ações de “despiche”.

Deve-se registrar o imenso equívoco de parte de alguns promotores do Ministério Público Estadual, que estão cooperando com  o que chamamos de “criminalização da juventude”. Ora, sabemos que  nem todos os promotores do Ministério Público Estadual concordam com esse “recrudescimento da repressão” (que procura mudar o enquadramento do pixo, de crime ambiental, passível de punição por medidas socioeducativas, para crime de formação de quadrilha) e muitos, na verdade,  o consideram equivocado.

Os equívocos do “recrudescimento da repressão”

Em primeiro lugar, porque a ação é inócua. O que o promotor público e os Administradores Municipais esperam? Que em vista do medo de ficarem meses esperando julgamento, num presídio, ou sendo condenados a anos de prisão, os jovens deixem de pixar a cidade? Será que eles acreditam piamente nisso? Acreditam ainda que uma família, quase sempre mais pobre, da periferia da cidade, pagará a exorbitante taxa de R$50.000,00 pela pixação realizada pelo seu filho? Acreditam que tudo isso se espalhará como um terror pela cidade, evitando que os jovens possam aderir ao pixo?

Ignora-se que a própria cidade é a grande fábrica de jovens que aderem a isso que chamamos de risco no limiar de expressão. Ou seja, o pixo. Os agentes da nova cruzada moral não conseguem ver que o pixo é também uma revolta? Que é uma manifestação corporal e gestual? E que um território não é somente um lugar de disputas, mas de repetição, de eterno retorno, em busca da diferença de si?

O que pode acontecer

Mas suponhamos que a cidade deixe, maravilhosamente, de ser esta fábrica de pixadores. Suponhamos também que a ação repressiva, exemplar (Ah… Maquiavel!), diminua, ou até iniba a ação de novos pixadores. Pelo menos nos prédios públicos e nos lugares mais vistoriados! (Ah… os pobres cidadãos que acreditam ver seus portões e muros sem pixação!). O que aconteceria, então?

A ação pública será pautada por um unilateralismo sem precedentes. Para conseguir a meta de “limpeza” da “cidade sustentável”, o Prefeito de Belo Horizonte, junto com o Ministério Público, terá enviado um contingente sem fim de jovens para os presídios, em convívio com o crime de fato. É isso que denunciamos como processo de “criminalização da juventude” em Belo Horizonte!

Pois, ao contrário do que pensa equivocadamente uma parcela do Ministério Público, o pixo não é um problema cuja causa está no afrouxamento ou na omissão do poder público em termos de “repressão qualificada”. O risco a que os jovens aderem, nos dois sentidos da palavra, está muito além dessa compreensão simplista, baseada no “recrudescimento da repressão”.

Estranhamos que o Ministério Público ignore a tendência, no Brasil e nos países democráticos, de evitar que infrações menores sejam levadas ao convívio extenso com as prisões e os criminosos mais duros e já formados. Como se pode ignorar isso? Ou então, consideram o “crime” da pixação como o mais hediondo crime já cometido! E é nisso, nessa cegueira moral, que nos parecem estar derrapando os promotores que aderiram à cruzada.

Além disso, sabe-se que uma das origens dessa cruzada moral, conforme seus próprios “cruzados” deixam entrever nas suas falas, está nos gastos que o poder público municipal tem desembolsado para limpar a cidade. Vejam: enviar jovens para os presídios, enquadrando-os como “formação de quadrilha”, sai mais barato do que investir em programas sociais!

O Ministério Público Estadual deveria promover, senão exigir, o cumprimento das “Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil”, em vez de incentivar, apoiar e instrumentalizar o “recrudescimento da repressão”. Principalmente quando o que está ocorrendo, em Belo Horizonte, é a total ausência de uma política de Estado inclusiva.

Questão de política pública qualificada

Entre algumas das falas na imprensa, aparece uma autoridade municipal dizendo que, junto à ação tripartite de “repressão qualificada”,  “sensibilização” e  “despiche”, existem ações educativas que procurariam desviar o jovem desse caminho, atraindo-o para a cultura, a arte, a cidadania etc.  Quanta ingenuidade (ou seria manipulação da opinião pública?), acreditar que a criminalização do jovem poderia ser aliada à sua incorporação à sociedade! Somente o fascismo teria isso como cálculo, justo para efeito propagandístico!

E até agora, o que vimos na grande mídia, nas falas das autoridades, é um misto de senso comum, voltado unicamente para a estigmatização e criminalização do jovem que aderiu ao pixo. É possível entender o senso comum, sua raiva, seu sentimento de “reparo ao dano” etc. O que não é admissível é ver jornalistas parciais, sem qualquer análise equidistante e, pior, autoridades que fomentam essa raiva e fazem dela o cimento de suas ações.

Sim, algo está faltando para que a meta de “cidade sustentável” possa ser atingida, pelo menos na sua parte exequível e não propagandística: qualificação em políticas públicas! Ou dito de outro modo: articulação de políticas urbanas, de cultura e de educação. Não com vistas somente à proteção da propriedade, mas também com vistas à promoção da vida e de suas manifestações.

Referências –

– Pixo: criminalização ou política pública? – por Olho-de-Corvo

Manifesto: liberdade aos Piores de Belô – por Conjunto Vazio

– Somos todos Piores de Belô – por Praça Livre BH

O graforisco: pixo, poesia do acaso e política pública – por Olho-de-Corvo

Pixação: questões sobre arte, mercado e práxis – por Conjunto Vazio

– Política e estética do dissenso: o caso da pichação na Bienal de São Paulo – por Olho-de-Corvo

Ministro da Cultura pede a Serra libertação da pichadora da Bienal – por Folha de São Paulo

– Pichadores em BH – Artigo do Vereador Arnaldo Godoy-Bh (contra a política de criminalização).

Prisão aos Pichadores: será que este é o caminho? – Por FredNegro

– Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil – Site do Ministério Público Estadual

– Ministério Público pede prisão preventiva de pichadores em BH – Porta

Estigmatizar os jovens é fugir da responsabilidade – Entrevista com Izabel Aguilar – Portal Comunidade Segura

BH terá delegacia só para combater ação de pichador – Portal Uai

Libertados os Piores de Belô – por Cripta

– Imagen: Blog do Mene Lick 2o Ato – Afrobrasilidades Afins

– Obs. 1) Utilizamos a grafia “pixo” no lugar de “picho’, conforme o uso que os ativistas fazem, diferenciando-se assim do termo oficial, que se tornou pejorativo. 2) Frase de abertura: extraída do Flickr de Cripta Djan

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

4 respostas em “Nova cruzada moral e caça às bruxas: o pixo em Belo Horizonte”

Eu cresci sempre na inocência, pensando que a vida é bela, mas quando descobri que minha mãe é uma drogada, que meu pai era traficante e por isso mataram ele eu perdi o amor pela vida e me tornei um pixador, com a intenção de cair de um prédio e morrer, desde então eu fui me aperfeiçoando e comecei a pixar as janelas do centrão de São Paulo, comecei a pixar prédios, e etc…
Mas hoje tenho 28 anos, e pendurei o meu rolinho, depois de muitas madrugadas pixando a cidade eu vi que a vida é bela para quem sabe vive-la e hoje cuido de minha mãe, amo a minha família, amo a vida e sou feliz.

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