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Ativismo e Análise Política Geral

Fire! Fire! Fire! O revide da multidão conectada

Quando vi a conta do Twitter intitulada Operation Payback disparar Fire! fire! Fire! weapons! – direcionando todos ao endereço de uma grande empresa de cartões de crédito, fiquei tomado de uma emoção surpreendente. Estava observando, ao vivo, o revide dos “piratas vingadores”, segundo a expressão de Umberto Eco. A operação “dar o troco”, surgida num coletivo de ativistas online autointilulados Anonymous, definiu-se como um repúdio ao cerco que o Departamento de Estado dos EUA, juntamente com outros governos, fizeram ao site WikiLeaks. Dedicado ao jornalismo livre e investigativo, o site havia publicado documentos secretos, reveladores de como os poderes estão se relacionando com os seus cidadãos.

É importante lembrar que a Operação Payback não teve por objetivo a destruição da infraestrutura das empresas atacadas. Eles derrubaram símbolos, ou seja, apenas tiraram as páginas do ar. A meta é levantar o cerco ao WikiLeaks e chamar a atenção para o problema.

Como é possível que, em pleno século XXI, quando qualquer oposição e resistência ao capitalismo e aos poderes parecem inócuas, pode surgir uma modalidade de resistência, baseada na internet, que se utiliza da força produtiva liberada por esse mesmo capitalismo?

Todavia, qualquer entusiasmo pede prudência. Sob a pena de recair numa ingenuidade elementar, devemos nos cuidar de ver se não estamos simplesmente endossando visões do tipo “a internet é uma revolução” etc. O artigo de Malcom Gladwell, A revolução não será tuitada (Folha de SP, 12.12.2010), procura expor essa ilusão de um ativismo baseado nas redes sociais. O autor mostra que os movimentos efetivos, como a luta pelos direitos civis nos EUA, na década de 60, envolveram, principalmente, fatores como fortes laços e vínculos entre os participantes, estrutura hierárquica e centralizada das ações. Tudo isso, argumenta, está ausente das redes sociais baseadas na internet.

Entretanto, não acredito que  Operação Payback seja simplesmente um modelo de ativismo via rede, que teria a pretensão de substituir os ativismos presenciais. Até porque protestos ao vivo contra o cerco ao WikiLeaks e à prisão de Assange, fundador do site,  foram organizados em diversas cidades do mundo. Não se pode, também, enquadrar a ação como um produto das redes sociais. O ataque aos sites das empresas que atenderem à pressão do Departamento de Estado dos EUA  insere-se noutra lógica: os sites em questão constituem alvos que se encontram na rede. E a presente disputa ocorre mesmo na internet.

Como dizem os Anonymous num de seus manifestos:

“We support the free flow of information. Anonymous is actively campaigning for this goal everywhere in all forms. This necessitates the freedom of expression for: The Internet, for journalism and journalists, and citizens of the world. Though we recognize you may disagree, we believe that Anonymous is campaigning for you so that your voice may never be silenced.”

Portanto, não se deve ver nisso um substituto da ação presencial, da capacidade de colocar pessoas em risco pessoal, num confronto com poderes estabelecidos ou em ocupações pacíficas. Um dos focos essenciais e de aplicação da ação dos Anonymous é a defesa da internet livre.

Além disso, como diz Brian Massumi, leitor crítico de Deleuze, as potências estão do lado do analógico e não do digital. E não é a mera ferramenta tecnológica que irá constituir um novo ativismo. Aliás, lembrando Deleuze e Guattari, o elemento técnico depende totalmente do agenciamento maquínico de que faz parte.

Anonymous

Mas, o que vem a ser uma “multidão conectada”? Numa passagem do livro Multidão – guerra e democracia na era do Império, Negri e Hardt mostram o surgimento de um “novo ciclo global de lutas” (exemplificado pelas manifestações da globalização em Seatle e Gênova), definido como

“uma mobilização do comum que assume a forma de uma rede aberta e disseminada, na qual não existe um centro exercendo controle e todos os nodos expressam-se livremente.”

O que os autores salientam no conceito de multidão, é que os movimentos surgidos nessa modalidade não são apenas protestos, mas formas positivas e criativas, voltadas também para a “produção e extensão do comum no interior dos próprios movimentos.” Além disso, afirmam ser a democracia o fator gerador da multidão e, inversamente, a própria multidão como produtora de “um sujeito social” e de “uma lógica de organização social.”

Por isso, a comparação de Malcolm Gladwell, embora importante para desmistificar as redes sociais baseadas na internet, não funciona plenamente no caso da Operação Payback e tampouco sobre a definição do que vem a ser esse novo ativismo. Nas trilhas de Negri e Hardt, os ativismos modernos são completamente diferentes dos ativismos pós-modernos. Estes últimos constituem uma produção “monstruosa”, irreconhecível do ponto de vista dos “corpos sociais tradicionais”. Essa nova “carne social”, que é a multidão, produz o comum que, por sua vez, também a produz. Para os autores, um movimento expansivo e em espiral.

O comum, segundo Negri e Hardt, é aquilo que ultrapassa as esferas do “público” e do “privado”. Não é o espaço interiorizado e tampouco está, em oposição a este, sob o controle do Estado.

Talvez, a Operação Payback seja apenas uma onda, uma singularidade a desaparecer logo em seguida. Mas ela mostrou que a internet é meio para o fluxo livre de contrainformação, de resistência, de desobediência civil, de conexão não hierárquica.

Nesse sentido, defender o WikiLeaks não é defender o WikiLeaks. É defender aquilo que o Império (os Estados nacionais e suas empresas globais, acionados pelo Departamento de Estado dos EUA), pretende acabar: o fluxo livre de informação, compartilhamento e interação na internet. Ou seja, a criação e produção do comum.

Sim, para os governos (e as empresas que nos querem apenas consumidores), a internet deve ser controlada! Eis o grito de alerta do Império, acionando Estados e empresas. E não tenhamos dúvidas: eles, os advogados do Estado (e são muitos os que se auto-infligiam esse chip de poder no próprio corpo, senão no próprio cérebro) estarão trabalhando sistematicamente para isso. Pois há quem morra de amores pelo poder!

Voltando ao ativismo online, a conta da Operação Payback no Twitter foi logo suspensa. Mas antes disso acontecer, nós pudemos ver, ao vivo, em tempo real, o ataque ao site e constatar, minutos depois a sua queda. Não a queda da empresa ou de qualquer outro braço do Império. Pudemos assistir, antes disso, a uma demonstração de força: apesar de tudo, o Império ainda não conseguiu controlar totalmente a internet.

Alguns consideram que qualquer tentativa de controlar o fluxo livre da internet redundará em fracasso. A derrubada do site do WikiLeaks pelo Departamento de Estado dos EUA, ou sob sua pressão, é um exemplo: num minuto surgiram outros sites espelhos que se espalharam pelo mundo!

Não somos apenas consumidores. Talvez essa seja a grande mensagem deixada pela Operação Payback.

Mais referências

– Operation Payback:  manifest from Anonymous

– Why I’m Posting Bail Money for Julian Assange – by Michael More

–  WikiLeaks latest and Julian Assange’s court appeal: live updates – The Guardian

– Anonymous – Wikipédia

– Eletronic civil disobediense

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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