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Do CrazyHorse 18 ao exercício micropolítico

Imagem vista do CrazyHorse 18, antes de executar jornalistas da Reuters

Um helicóptero Apache dos EUA, intitulado CrazyHorse 18 (Cavalo Doido 18) ataca um comboio de insurgentes no Iraque. Dois homens conseguem sobreviver, correm e se rendem, largando as armas. O helicóptero mantém os homens sob mira, e os tripulantes ligam para a base e pedem orientações. O rádio dá o retorno: “Nosso advogado diz que eles não podem se render para uma aeronave. Ainda são alvos válidos’’. Então, os tripulantes disparam aquela metralhadora que perfura até blindados.

Esta notícia, retirada do FolhaPress (23.10.2010), é parte de um dos inúmeros relatos dos documentos da Guerra do Iraque, revelados pelo site Wikiliaks.org. A denúncia é importante e está colocando o Império em cheque: uma guerra estúpida, levada a cabo pelo presidente Bush e seu comparsa Tony Blair. Porém, quero chamar a atenção para outro aspecto: a forma-função do Estado e sua lógica totalizante e implacável. CrazyHorse18 esteve, antes, envolvido na morte de dois jornalistas nessa guerra, entre outros ataques fatais a civis (veja o link para o vídeo, mostrando o helicóptero abrindo fogo sobre os civis, em Mais Referências).

Não se trata de um “desvio” do Estado, como pode ser entendido, mas sim de uma lógica inerente ao Estado. A autonomia delirante da expressão (“não podem se render para uma aeronave” – “ainda são alvos válidos”) explicita essa dinâmica. E essa expressão não é somente algo localizado, mas o movimento contínuo que expõe as forças de totalização.

É preciso fazer disso uma “linha de fuga” e ao mesmo tempo a possibilidade de “encontrar uma arma” (Deleuze e Guattari). Traço, portanto, uma experimentação micropolítica (e quem sabe uma poética), a partir dessa expressão delirante, diante da qual não cabe nem mesmo a rendição, somente o aniquilamento. Isso não é uma metáfora, mas sim um exercício, com seus possíveis desdobramentos. O CrazyHorse 18 não é apenas o nome de um helicóptero Apache utilizado na Guerra do Iraque. Não é somente uma máquina técnica, mas um agenciamento maquínico.

Passo, então, às minhas anotações e citações de pequenos trechos de Império, de Antônio Negri e Michael Hardt, e Mil Platôs (vol. 5) de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que podem estabelecer conexões com o CrazyHOrse 18 e toda suas máquinas de linguagem, jurisprudência e aniquilação.

1. Em Império, Toni Negri e Michael Hardt escrevem sobre o novo paradigma de dominação imperialista. O que mais nos remete ao caso do CrazyHorse 18, do aniquilamento dos rendidos, e ao contexto das novas guerras, é interesse renovado, pelo Império, na idéia de “Guerra Justa” (bellum justum). Porém, o que muda no novo uso  é o fato de que a guerra deixa de ser somente uma idéia justa (idéia antiga que foi renegada pela modernidade), passando a ser justificável em si mesma. Negri e Hardt expõem um novo paradigma totalizante, na qual há uma “contínua demanda de autoridade” (o advogado na base militar, por exemplo).

“O novo paradigma é, ao mesmo tempo, sistema e hierarquia, construção centralizada de normas e produção de legitimidade de grande alcance, espalhada sobre o espaço mundial.”

“Todas as crises e todas as desavenças fazem avançar, efetivamente, o processo de integração, e demandam uma maior autoridade central.”

“A capacidade de formar um sistema é, com efeito, pressuposta pelo processo real de sua formação. Além disso, o processo de sua formação e os sujeitos que agem nele são atraídos com antecedência para o positivamente definido vórtex do centro, e essa atração torna-se irresistível, não apenas em nome da capacidade que tem o centro de exercer a força, mas também em nome do poder formal que reside no centro, para traçar e sistematizar a totalidade.”

2. Deleuze e Guattari (Mil Platôs, vol. 5) mostram que o Estado define-se não por um tudo ou um nada (por haver ou não um Estado), mas sim pela interioridade e exterioridade. Pelo que está fora ou dentro. Não há uma universalidade do Estado: ele é movimento de concentração e interiorização,  possuindo, além disso, seus dispositivos de captura.

“… o Estado ele mesmo sempre esteve em relação com um fora, e não é pensável independentemente dessa relação. (…) O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente.”

“Não é em termos de independência, mas de coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação, que é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as máquinas de guerra de metamorfose e os aparelhos identitários de Estado, os bandos e os reinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas descreve sua exterioridade naquilo que escapa aos Estados ou se erige contra os Estados”.

A expressão delirante – “eles não podem se render para uma aeronave” e “ainda são alvos válidos”, provoca o pensamento. As linhas apresentadas trazem todo um agenciamento maquínico do qual o Estado e os indivíduos tornam-se modulações. A “validade” como arma e interiorização (pois exclui como não válida a rendição, que fica de fora).

Essa não é somente uma lógica de guerra, de uma máquina de guerra capturada pelo Estado, mas sim todo um modo de funcionamento ao qual os sujeitos não aderem simplesmente, mas no qual se formam como tais.

Uma possível crítica do Estado veria nele não a “neutralidade” burocrática, mas o agenciamento e formação de subjetividades. Qual a resistência possível a essa lógica totalizante de interiorização, captura e  estancamento dos fluxos livres?

Há uma linha do fora e dos fluxos nômades. Não de modo estático, mas sempre em variação. E não sejamos ingênuos e nem desperdicemos vidas e singularidades: o confronto é aniquilador, e em alguns casos não se pode nem mesmo render! Portanto, a equação – e é sempre uma equação de poder – tem de ser resolvida de outro modo. Como um koan zen: somente através de uma experiência singular, sem modelos prontos.

O CrazyHorse 18, essa máquina-dispositivo-jurídico, conectada aos corpos que a tripulam, vasculha o campo em busca das exterioridades ao Estado. Todo cuidado é pouco: podemos nos tornar “alvos válidos”.

Mais Referências

Iraque war logs: Apaceh crew killed insurgentes who tried to surrender. By The Guardian

– Vídeo do Crazy Horse 18 abrindo fogo sobre jornalistas e crianças

– Crazy Horse and  collateral damage. By Michael Moore – Incluí vídeo.

Telegraph: ‘Crazy Horse 18’ implicated in other Iraq attacks beyond shooting of Reuters staff – by Journalism.ko.uk

– Iraque teve 109 mil mortes, revela Site – Folhapress

– Wikileaks.org

– The Secret War – Iraque War Logs – por Frontline

– DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol.2 Tradução de Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

– ____________; _____________. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa – São Paulo: Editora 34, 1997.

– NEGRI, Antônio e HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

2 respostas em “Do CrazyHorse 18 ao exercício micropolítico”

Garrocho, estas linhas me fizeram pensar por aqui…

GUERRA É PAZ, nos escreveu George Orwell em sua obra-prima, o livro 1984. O paradoxo está armado, e quem disse que isso é sempre é bom. Os paradoxos não são bons nem ruins, encontram-se aquém e além das formas, tendo mais relação com as forças, pois instauram e mantém tensões. Ainda nos fazem acreditar que a guerra é a mantenedora da paz. A guerra defende o estado. O estado é a forma-paz. Mas de que paz está se falando? Paz enquanto estado idealizado, cristalizado, um produto imaginado a ser, distribuído e comercializado (mesmo a contra-gosto)?

GUERRA É ABSURDO, nos alertou Albert Camus, e agora, mais do que nunca, um absurdo retroalimentável, pois que se justifica a si mesmo, ainda que seja impossível de se justificar. Se há um contexto em que temos uma quantidade vasta de regras a serem seguidas, semelhante a um jogo, este contexto é a guerra. E paradoxalmente, é no tabuleiro, digo no contexto de uma guerra que todas estas regras são postas em cheque, no geral, aniquiladas. “Não se deve atirar em um pára-quedista durante o salto. Trata-se de uma covardia, um alvo inválido.” Pois a primeira coisa que um soldado faz ao avistar um pára-quedista se aproximando pelos ares é atirar freneticamente. As regras tomam forma através das normas. A guerra e suas formas, o que está em jogo são suas representações: Você mata e morre pela pátria, pelo país, pela raça, pela ideologia, pela justiça, pelo dinheiro, pelo petróleo, pela liberdade, em suma, pela PAZ. Palavras enfileiradas e há sempre uma causa, mesmo para se justificar o impossível de se justificar.

GUERRA É VIDEOGAME desde as primeiras “atividades” bélicas do “Bush-Pai”, a chamada primeira Guerra do Golfo, aquela pela libertação do Kuwait… (Ku)wait a while, what in the hell? A suposta libertação de um regime e a captura noutro. O céu entre-cortado por feixes de laser. Tiros luminosos, mísseis teleguiados, guerra do joystick, a arma é uma manete e seus botões que promovem disparos e modulam a distância armamentos de todo porte. Uma guerra em novos meios, midiatizada em transmissão ao vivo – Os fins justificam os meios? – Pausa para um anúncio de nossos patrocinadores. A família em volta da TV, assistindo à novela da guerra, antes da novela.

Vamos agora com Pierre Clastres, que em seu livro A Sociedade contra o Estado, nos aponta as noções de dominação e subordinação que se sustentam no embate de forças ostentado pela Razão Ocidental. A pergunta deste antropólogo e que permanece por ser respondida é: A sociedade civil pode prescindir da figura do Estado? Uma espécie de estar contra o Estado e a favor da Sociedade. Empiricamente, ao investigar tribos indígenas na América do Sul, Clastres e outros antropólogos conseguiram identificar as possibilidades vivas desta configuração social do fora. Do fora do Estado. Clastres ouviu do xamã: “As coisas em sua totalidade são Uma. E para nós que não desejamos isso, elas são más.” O UM é o Estado e seu poder coercitivo, identitário, cristalizado, a morte da multiplicidade, o domínio de uma máquina abstrata e seus feixes de luz. Para este xamã, o contrário do UM é DOIS. O DOIS é o UM e seu OUTRO, já uma multiplicidade, tal como na junção homens-deuses, deuses-homens, que se dá através do desdobramento animal homens-jaguares, devir-animal. Se os homens-deuses devêm homens-jaguares, tratar-se-ia dos homens-deuses-jaguares, em que DOIS são MULTIPLICIDADE e seus blocos de devires.

Eainda há Virilio e Baudrillard, para pensarmos as maquinarias de guerra… posso voltar ao debate depois com eles.

Pensei também que este seu texto inspira uma intervenção, performance-instalação… acho que é uma temática que convida o corpo a entrear em cena. Que tal? Abraços.

[WORDPRESS HASHCASH] The poster sent us ‘0 which is not a hashcash value.

Rogério,

Você criou conexões muito interessantes. E deixa umas boas pistas para estudo e criação. Sim, a diferença é essa: em meio ao bombardeio (de imagens e de armas), às capturas que operam por modulações (e por isso nos surpreendem), a presença do Estado e sua fuga, temos a criação. Quase insólita, não é? Mas nem por isso menos potente.
Fica o desafio lançado. Acho que vale a pena (a sentença?) realizar essa performance. Ficamos ligados. E acho que o Paulo Rocha do Conjunto Vazio pode ser um grande aliado, estrategista e combatente. E como você sempre lembra: vamos por uma linha de fuga em busca de uma arma!
Abraços

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