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Pensamento e arte

Quais são as relações que podemos estabelecer entre o pensamento conceitual e o pensamento artístico?

Justamente, citando Deleuze e Guattari, “pensar é pensar por conceitos, ou, então, por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor que o outro, ou mais plenamente, mais completamente ‘pensado'” (O que é Filosofia).

Se a arte pensa pelos seus próprios meios, o que buscamos no pensamento conceitual? Que potências surgem desse encontro?

Lyotard coloca-nos numa trilha de potência: se para os semiólogos, dizia ele, o pensamento tem sua força na significação, para ele servia antes para colocá-lo em movimento.

Lembro-me de uma conversa com Antônio Araújo, encenador do Teatro da Vertigem, quando ele me dizia que um conceito poderia ser uma fonte de inspiração. Ou, então, uma ferramenta. Como, por exemplo, o conceito de agenciamento maquínico (Deleuze e Guattari), que faz conexões com o seu pensamento-encenação. Os dois termos – pensamento da encenação e pensamento conceitual – não se correspondem biunivocamente. No entanto, há aqui convergências, confluências e contaminações outras: a produção de um novo espaço, que está entre a cena e o conceito – não sendo nem um nem outro. Marcelo Kraiser, nas suas aulas sobre Deleuze, lembra que conceitos não se aplicam, sendo antes uma caixa de ferramentas, como Foucault propunha.

Já entre os usos de baixa potência, encontra-se a idéia de que o conceito fundamentaria a criação artística ou mesmo uma pesquisa sobre seus procedimentos e técnicas. A arte não necessita de fundamentos de outra disciplina criativa. Se já não é uma puxada de tapete nos fundamentos, sejam eles quais forem…

Deleuze, numa conferência para estudantes de cinema em 1987, intitulada O ato de criação, lembra que a tarefa do filósofo é a de inventar conceitos. E que esta não seria a tarefa de artistas. Não que eles não pudessem fazê-lo, mas sim que criar em arte é outra coisa. Cineastas, no caso, teriam por tarefa a invenção de blocos de duração/movimento. Se temos, por exemplo, como plano de trabalho, o Teatro Performativo (e toda a gama de espaços entre dança e teatro), poderíamos pensar em termos de uma lógica de sensações, produzindo blocos de duração/corporeidade e performatividade.

Diverso disso, encontra-se a noção de metáfora, que funcionaria como um modo “aproximativo” do conceitual e que poderia, entre outras coisas, “revelar” o pensamento artístico em outro meio. Há um equívoco nisso (sobre os procedimentos artísticos e os termos utilizados para efetivá-los): quando Zeami, mestre do Nô, dizia que a função do ator é abrir a flor na audiência, ele não faz uso de metáforas, mas realiza um ato, na esfera da literalidade. Obviamente que flor tem múltiplos sentidos – e não alusões metafóricas. Uma vez eu vi um ator japonês realizar uma demonstração com um gesto belíssimo: “veja esta flor/tão bonita/que pena, vai morrer”. O que Zeami queria, literalmente, é incitar o ator a abrir uma flor na audiência. Às vezes, as expressões verbais funcionam em contextos muito específicos que, uma vez transpostos, não só se modificam, mas passam a possuir vida própria, servindo para outras inspirações.

Deleuze e Guattari, em Mil Platôs n. 04, referem-se à questão da metáfora e da literalidade, a partir do uso da palavra “como”:

“Interpretar a palavra ‘como’ à maneira de uma metáfora, ou propor uma analogia estrutural de relações (homem-ferro= cachorro-osso), é não compreender nada do devir. A palavra ‘como’ faz parte dessas palavras que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento em que as remetemos a hecceidades, a partir do momento em que fazemos delas expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes.”

E citam, ainda, o ator De Niro, que num filme andava “como” um caranguejo, não entendendo isso em termos de imitação, tratando-se antes de compor com a imagem.

Volto à questão: a produção de imagens, expressões ou noções que configurariam um pensamento estético ou uma taxonomia de criação, ou, ainda, uma série de procedimentos técnicos, como é o caso da flor de Zeami. Não são conceitos e tampouco funções. Como estão no plano da linguagem, têm as características do meio que atravessam e sofrem um desvio… Por isso Brian Massumi sugere que os artistas façam seus manifestos poéticos, por meio de paradoxos, mantendo vivia a relação com os desvios criativos.

Uma coisa não funcionaria: apropriar-se de pensamentos outros para sufocá-los, retirar suas potências, deixá-los esmaecidos… Ou ainda, numa mistura sem consistência. Afinal, como dizem os autores do Critical Art Ensemble (Distúrbio Eletrônico): “confinar uma minhoca, uma lesma e uma galinha em uma mesma caixa nãos as tornam membros da mesma espécie” (São Paulo: Conrad do Brasil, 2001, Tradução de Leila de Souza Mendes).

Referências:

DELEUZE, Gilles. O ato de criação.

Especial para a “Trafic”, tradução de José Marcos Macedo, publicado na Folha de S. Paulo de 27/06/1999.

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Bergson por Deleuze: a cada instante, o movimento já não é

Imagem: zoomyboy.com

“A cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto e a sombra de seu produto. O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é que não é e o movimento é que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados. Bergson nos mostra isso em seu livro mais difícil: não é o presente que é e o passado que não é mais, mas o presente é útil, o ser é o passado, o ser era (“Matéria e Memória”) – veremos que essa tese funda o imprevisível e o contingente, ao invés de suprimi-los. Bergson substituiu a distinção de dois mundos pela distinção de dois movimentos, de dois sentidos de um único e mesmo movimento, o espírito e a matéria, de dois tempos na mesma duração, o passado e o presente, que ele soube conceber como coexistentes justamente porque eles estavam na mesma duração, um sob o outro e não um depois do outro. Trata-se de nos levar, ao mesmo tempo, a compreender a distinção necessária como diferença de tempo, e também a compreender tempos diferentes, o presente e o passado, como contemporâneos um do outro, e formando o mesmo mundo.”

Referências

– DELEUZE, Gilles –  “Bergson: 1859-1941”.
Tradução de Lia Guarino – NRT [Tradução originalmente publicada como anexo em Gilles Deleuze,Bergsonismo, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, SP, Ed. 34, 1999, pp. 95-123].

– Bento Prado Jr, analisa Deleuze – entrevista a Cássio Carlos, FSP, 02.06.96
– O Bergsonismo de Gilles Deleuze – Sandro Kobol Fornazari
– Dossiê Gilles Deleuze e Félix Guattari – inclui o texto acima completo no link “Bergson – 1956”
– Deleuze tirou a poeira das idéias de Bergson – Peter Pál Pelbart

Corpo sem Órgãos (1): um texto de Esther Díaz

“El deseo es entonces una producción social. La producción deseante se organiza mediante un juego de represiones y permisiones. Tal juego carga energía libidinal en la sociedad. La carga de deseo es “molar” en las grandes formaciones sociales y “molecular” en lo microfísico inconsciente. Lo molar es deseo consciente, representación de objetos de deseo, y se origina a partir de los flujos inconscientes del deseo o cuerpo sin órganos.

El cuerpo sin órganos es el inconsciente en su plenitud, esto es, el inconsciente de los individuos, de las sociedades y de la historia. Se trata del deseo en estado puro, que aún no ha sido codificado, que carece de representación o de “objeto de deseo”. Es el límite de todo organismo; porque cuando ya se es organismo, la pulsión inconsciente está codificada, aunque el cuerpo sin órganos siga delimitando el plano de organización de los individuos. El cuerpo sin órganos no es erógeno, porque “erógeno” o “sexual” ya son codificaciones. Como antecedente conceptual el cuerpo sin órganos de Deleuze y Guattari tiene como antecedente histórico la voluntad de poder nietzscheana y –cambiando lo que hay que cambiar- la sustancia de Spinoza. El cuerpo sin órganos es un inconsciente no personalizado que palpita en cualquier forma viva.

La matriz de toda carga de energía libidinal social es el delirio. Delirio, aquí, no se entiende como categoría psicológica individual, sino como categoría histórico social. El delirio se desplaza entre dos polos, uno tiende a homogeneizar el deseo de las grandes poblaciones desde los centros de poder y el otro trata de huir de esa masificación deseante codificada, siguiendo alguna posible línea de fuga del deseo (molecular). El delirio es el movimiento de los flujos del deseo. Puede ser paranoico, esquizofrénico o perverso. Pero tampoco estas categorías refieren a entidades psicológicas individuales, ni tienen connotación de “enfermedad” (por lo menos, no de enfermedad subjetiva), se trata de distintas modalidades del deseo que se manifiestan en lo social.”

Esther Díaz – Gilles Deleuse: Pós-capitalismo y deseo –

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Filosofia

Deleuze: linguagem como desequilíbrio

“Em filosofia é como um romance: deve-se perguntar ‘o que vai acontecer’, ‘o que é que se passou?’, somente os personagens são conceitos, e os meios, as paisagens, são espaços-tempos. Escreve-se para dar a vida, para libertar a vida lá onde está apriosionada, para traçar linhas de fuga. Pra isto é preciso que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogêneo: o estilo aqui rompido das diferenças de potenciais entre as quais qualquer coisa pode passar, se passar, surgir um clarão que saia da própria linguagem, e que nos faça ver e pensar o que permaceria nas sombras…”

Entrevista a Raymund Bellour e François Ewald –
Publicado na Revista Magazine Littéraire – n. 257. set. 1988. Traduzido do francês por Ana Sacchetti. Extraído de ESCOBAR, Carlos Henrique (organizador), Dossiê Deleuze, Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991.

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Artes Cênicas

Teatro Pós-dramático: por um programa de desfiguração/despersonalização

Muito se pergunta sobre a função-personagem e a função-fábula na encenação contemporânea.  Levo a questão para pensar a prática de um teatro físico, com características performativaspós-dramáticas. Tenho buscado, para tanto, o que chamo de um programa de desfiguração e de despersonalização.

O que vem a ser isso?

Trata-se de um tema que vem se colocando na cena contemporânea, concernente às funções personagem e fábula.  E, invariavelmente, nas oficinas de treinamento em e como criação, assim como nos processos criativos,  tais questões vêm se apresentando. Assim como nas minhas leituras de diversas criações contemporâneas.

Não teríamos mais fábulas? Sempre produzimos uma narrativa. Mas, em muitas das encenações contemporâneas, a narrativa muitas vezes, é construída pelo público. Nem sempre como uma “história”, mas quase sempre de modo fragmentado, cada um de nós tentando configurar uma totalidade, que no entanto permanecerá sempre inacabada. Uma lógica das sensações predominando sobre uma lógica das significações.

Tenho me interessado pelas interfaces Teatro Físico e Teatro Performativo ou Pós-Dramático. Mas, o que vem a ser o Teatro Físico.  Lúcia Romano, no seu belo livro, Teatro do corpo manifesto: teatro físico, apresenta um excelente histórico e desenvolve conceitos muito interessantes, tanto do pont0 de vista dos estudos teóricos quanto do desejo de criação. Trata-se de uma produção eclética, que se abriga sob o nome de Physical Theater, como foi nomeado na Inglaterra. Romano diz que o nome quer dar ênfase à materialidade do eventocênico (p. 16). Para a autora  physical poderia ser entendido na tradução como “conectado ou relativo ao corpo”. Lúcia Romano opta por definir a fisicalidade como corporeidade, pois  trata-se de uma narrativa que se dá através de “nexos corpóreos”. Vale lembrar que o termo também surge com os artistas do grupo londrino DV-8, que estavam insatisfeitos com a dança abstrata e buscavam algo que fosse mais concreto. Surge, assim, um teatro que, por sua vez, tem por base o corpo manifesto.

Nessa perspectiva, de um Teatro Físico, dialogando com o campo da Performance Art, como definir a função-personagem e a função-fábula?

Para o esboço do que chamo de um programa de despersonalização/desfiguração para um Teatro Físico, faço as seguintes anotações:

1. Pensar negativamente é pensar o que falta ao outro. Ou o que ele não é. Isso comumente ajuda, mas torna o pensamento preso a um referente. Temos que avançar e dizer a que viemos. Qual o meio no qual se faz experimentar um teatro performativo e pós-dramático? Não basta dizer que é um teatro sem personagens e sem drama. Até porque a dimensão ficcional pode atuar, porém, em outros termos.

2. E é sempre bom insistir: tal programa não nos salva nem nos redime do fracasso. Além disso, não é um teatro melhor que os outros. O que ele busca é responder às questões que o acometem: o corpo não mais como um suporte mas como o discurso cênico, o borramento das fronteiras entre as artes, a contaminação mútua das linguagens artísticas, a necessidade de se orientar na vida de um modo a incorporar a fragmentação, o descentramento e a simultaneidade etc.

3. Compor com as forças da desfiguração. Deleuze, em Francis Bacon – lógica da sensação, discorre sobre tais potências que nos fazem passar da Figuração para a desfiguração: “quando a sensação visual confronta a força invisível que a condiciona”. Assim, Bacon não quer pintar a figura do horror, mas sim produzir a figuração do grito. O grito como a captação de uma força invisível, diz Deleuze sobre Bacon.

4. Fazer a distinção entre figura de figuração. As Figuras são forças visíveis. Deleuze diz que a função das Figuras é a de tornar visíveis as forças invisíveis. São aparições. Mas as Figuras são, comumente, presas à figuração, narração, ilustração. Deleuze mostra que “o figurativo (a representação) implica, com efeito, a relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar…” E a narrativa funciona como o correlato da ilustração: “uma história que se insinua ou tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado”.

5. Desfiguração: programa em que “o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível”.

6. Há seres. Há figuras. Insisto muito nisso. Daí a diferença do teatro físico com a dança conceitual (contemporânea) e mesmo a dança moderna. Há seres e relações. No sentido de forças, violências, atravessamentos. De um lado, são ações poéticas e de outro relações a-significantes (que modificam expectativas e significados). São seres larvares.

7. O teatro clássico moderno constrói fábulas sobre personagens em conflito. No Teatro Físico trata-se de forças que atuam sobre corpos. Não há um “eu”. Não há núcleos de subjetividade em conflito intersubjetivo ou com o mundo. Há epifânias do performer e da cena. Vide o teatro de Robert Wilson.

8. Para esse plano interessa muito o movimento contemporâneo da dança, principalmente quando gera processos desterritorializantes. Também, quando ultrapassa o movimento extensivo para adentrar nas tormentas do movimento intensivo. Ou seja, dos estados corporais.

9. Matteo Bonfitto , em O ator compositor (Ed. Perspectiva, 2005) , fala de três actantes: a) máscara; b) texto e c) estado. O actante máscara remete à persona (psicológica) e ao tipo. O actante texto é uma característica de Heinner Müller: como poderia, a partir de Medeia Material, falar de um núcleo de personas em desenvolvimento? Há seres textuais, digamos assim. E o terceiro, o actante estado, diz justamente das pulsões corporais.

10. O universo dos seres é aquele que transita entre a fábula e sua dissipação, instaurando o que Bonfitto chama deactante estado, produzindo figuras com potências desfigurativas. Ou, ainda, que conduz à espacialização desses seres. Você pode identificar, isto mesmo, classificar numa identidade, um determinado ser: uma caracterização cênica. No entanto, esta última logo varia e subtrai tudo o que poderia trazer uma história com lógica causal, organizada do passado ao futuro e vice-versa (drama).

11. Fazer o território da fábula fugir.

Referências:

Imagem de Esquina dos Aflitos – cena curta apresentada no Festival Internacional de Teatro de BH e no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto, em 2002. Direção: Luiz Carlos Garrocho. Roteiro de Luiz Carlos Garrocho e Ricardo Alves Júnior. Elenco: Clarice Peluso (foto), Juliana Barreto, Cristiano Moreira, Paulo Azevedo. Figurino de Maria Inês Starling Mol.