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Teatro Pós-dramático: por um programa de desfiguração/despersonalização

Muito se pergunta sobre a função-personagem e a função-fábula na encenação contemporânea.  Levo a questão para pensar a prática de um teatro físico, com características performativaspós-dramáticas. Tenho buscado, para tanto, o que chamo de um programa de desfiguração e de despersonalização.

O que vem a ser isso?

Trata-se de um tema que vem se colocando na cena contemporânea, concernente às funções personagem e fábula.  E, invariavelmente, nas oficinas de treinamento em e como criação, assim como nos processos criativos,  tais questões vêm se apresentando. Assim como nas minhas leituras de diversas criações contemporâneas.

Não teríamos mais fábulas? Sempre produzimos uma narrativa. Mas, em muitas das encenações contemporâneas, a narrativa muitas vezes, é construída pelo público. Nem sempre como uma “história”, mas quase sempre de modo fragmentado, cada um de nós tentando configurar uma totalidade, que no entanto permanecerá sempre inacabada. Uma lógica das sensações predominando sobre uma lógica das significações.

Tenho me interessado pelas interfaces Teatro Físico e Teatro Performativo ou Pós-Dramático. Mas, o que vem a ser o Teatro Físico.  Lúcia Romano, no seu belo livro, Teatro do corpo manifesto: teatro físico, apresenta um excelente histórico e desenvolve conceitos muito interessantes, tanto do pont0 de vista dos estudos teóricos quanto do desejo de criação. Trata-se de uma produção eclética, que se abriga sob o nome de Physical Theater, como foi nomeado na Inglaterra. Romano diz que o nome quer dar ênfase à materialidade do eventocênico (p. 16). Para a autora  physical poderia ser entendido na tradução como “conectado ou relativo ao corpo”. Lúcia Romano opta por definir a fisicalidade como corporeidade, pois  trata-se de uma narrativa que se dá através de “nexos corpóreos”. Vale lembrar que o termo também surge com os artistas do grupo londrino DV-8, que estavam insatisfeitos com a dança abstrata e buscavam algo que fosse mais concreto. Surge, assim, um teatro que, por sua vez, tem por base o corpo manifesto.

Nessa perspectiva, de um Teatro Físico, dialogando com o campo da Performance Art, como definir a função-personagem e a função-fábula?

Para o esboço do que chamo de um programa de despersonalização/desfiguração para um Teatro Físico, faço as seguintes anotações:

1. Pensar negativamente é pensar o que falta ao outro. Ou o que ele não é. Isso comumente ajuda, mas torna o pensamento preso a um referente. Temos que avançar e dizer a que viemos. Qual o meio no qual se faz experimentar um teatro performativo e pós-dramático? Não basta dizer que é um teatro sem personagens e sem drama. Até porque a dimensão ficcional pode atuar, porém, em outros termos.

2. E é sempre bom insistir: tal programa não nos salva nem nos redime do fracasso. Além disso, não é um teatro melhor que os outros. O que ele busca é responder às questões que o acometem: o corpo não mais como um suporte mas como o discurso cênico, o borramento das fronteiras entre as artes, a contaminação mútua das linguagens artísticas, a necessidade de se orientar na vida de um modo a incorporar a fragmentação, o descentramento e a simultaneidade etc.

3. Compor com as forças da desfiguração. Deleuze, em Francis Bacon – lógica da sensação, discorre sobre tais potências que nos fazem passar da Figuração para a desfiguração: “quando a sensação visual confronta a força invisível que a condiciona”. Assim, Bacon não quer pintar a figura do horror, mas sim produzir a figuração do grito. O grito como a captação de uma força invisível, diz Deleuze sobre Bacon.

4. Fazer a distinção entre figura de figuração. As Figuras são forças visíveis. Deleuze diz que a função das Figuras é a de tornar visíveis as forças invisíveis. São aparições. Mas as Figuras são, comumente, presas à figuração, narração, ilustração. Deleuze mostra que “o figurativo (a representação) implica, com efeito, a relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar…” E a narrativa funciona como o correlato da ilustração: “uma história que se insinua ou tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado”.

5. Desfiguração: programa em que “o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível”.

6. Há seres. Há figuras. Insisto muito nisso. Daí a diferença do teatro físico com a dança conceitual (contemporânea) e mesmo a dança moderna. Há seres e relações. No sentido de forças, violências, atravessamentos. De um lado, são ações poéticas e de outro relações a-significantes (que modificam expectativas e significados). São seres larvares.

7. O teatro clássico moderno constrói fábulas sobre personagens em conflito. No Teatro Físico trata-se de forças que atuam sobre corpos. Não há um “eu”. Não há núcleos de subjetividade em conflito intersubjetivo ou com o mundo. Há epifânias do performer e da cena. Vide o teatro de Robert Wilson.

8. Para esse plano interessa muito o movimento contemporâneo da dança, principalmente quando gera processos desterritorializantes. Também, quando ultrapassa o movimento extensivo para adentrar nas tormentas do movimento intensivo. Ou seja, dos estados corporais.

9. Matteo Bonfitto , em O ator compositor (Ed. Perspectiva, 2005) , fala de três actantes: a) máscara; b) texto e c) estado. O actante máscara remete à persona (psicológica) e ao tipo. O actante texto é uma característica de Heinner Müller: como poderia, a partir de Medeia Material, falar de um núcleo de personas em desenvolvimento? Há seres textuais, digamos assim. E o terceiro, o actante estado, diz justamente das pulsões corporais.

10. O universo dos seres é aquele que transita entre a fábula e sua dissipação, instaurando o que Bonfitto chama deactante estado, produzindo figuras com potências desfigurativas. Ou, ainda, que conduz à espacialização desses seres. Você pode identificar, isto mesmo, classificar numa identidade, um determinado ser: uma caracterização cênica. No entanto, esta última logo varia e subtrai tudo o que poderia trazer uma história com lógica causal, organizada do passado ao futuro e vice-versa (drama).

11. Fazer o território da fábula fugir.

Referências:

Imagem de Esquina dos Aflitos – cena curta apresentada no Festival Internacional de Teatro de BH e no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto, em 2002. Direção: Luiz Carlos Garrocho. Roteiro de Luiz Carlos Garrocho e Ricardo Alves Júnior. Elenco: Clarice Peluso (foto), Juliana Barreto, Cristiano Moreira, Paulo Azevedo. Figurino de Maria Inês Starling Mol.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

7 respostas em “Teatro Pós-dramático: por um programa de desfiguração/despersonalização”

Luís, muito esclarecedor seu texto em diversos pontos. Porém, quero discutir a questão da existência de seres e figuras (“Há seres. Há figuras”). Lendo o Lehmann eu juro que nunca entendi que tais configurações eram imprescindíveis… Você poderia fazer-me a gentileza de me clarear essa questão? E, lendo agora, me parece haver uma… incompatibilidade talvez entre essas existências e o que você descreve no ítem 7 do texto (inexistência de núcleos de subjetividades em conflito intersubjetivo…). A própria idéia da desfiguração me parece tão… moderna, sabe?
Gostaria muito meso de ouvi-te falar mais sobre esse ponto, ou melhor, essa “região” da questão.
Respeitosamente.

Thaizeze,

São conexões que ando fazendo entre a análise de Lehmann do pós-dramático e a Lógica da Sensação, de Deleuze, na sua visão sobre a pintura de Francis Bacon.

Estabeleço conexões, também, entre um teatro que não parte de um actante tipo persona. Uma personagem dramática, coloquemos assim. Não são certezas, são traços que arrisco a pensar.

O item 7. fala do drama moderno. Nele, há o desenvolvimento via conflito. Veja Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Wiliians, para dar somente um exemplo. Uma coerência vai sendo construída sobre uma persona. Mesmo que na história ela desabe…

Os teatros performativos (Ferall) ou pós-dramático (Lehmann), e neles incluo os teatros físicos, não configuram tais personas. Concorda?

Então, vejo que nesses teatros há forças de desfiguração. Isso teria que ser examinado mais de perto, com mais fôlego, é verdade. Mas penso que é um caminho interessante.

Deleuze distingue (em Bacon) Figura de Figuração. A primeira e pura visibilidade e contorno definidos, a segunda sofre processos desfigurantes…

Os corpos têm o poder da desfiguração, penso assim. Quando não cumprem funções – vide a esquizofrenia… Forças que podem levar para atos não figurativos.

Uma esquizofrênica que anda nua dentro de casa, menstruada, abre uma ordem do intolerável. Não estamos mais no plano neurótico, das significações…

Quanto aos seres. Isso é o que me interessa, ultimamente, na criação cênica. O que me separa da performance art pura, de um lado, e da dança conceitual ou mesmo moderna, de outro. Chamo de “seres” para não confundir com “personagens”. Eles não têm história e a cena não apresenta o desenvolvimento de suas vidas. São forças que figuram, mas que sofrem processos de desfiguração… Estou pensando nisso… Trata-se mesmo de uma tentativa de caracterização (um homem entra fumando em cena com uma lança atravessada no peito, saindo pelas costas). Coloca um vinil e escuta em tempo real. Tal Figura pode estar ao lado de outra, uma mulher vestida de negro que corta seus cabelos… E que canta…

Cada caso, cada criação, é um mundo. Não dá para generalizar.

Assim, penso mesmo que tais seres não são subjetividades… São aparições, fantasmas famintos, coisas assim…

Não sei se respondi. Talvez não. Parece-me que tais questões continuam a andar por aí… E precisaremos estudar melhor isso…

Abraços

Luiz

OLá Luiz!
Meu nome é Daiane Dordete e sou atriz e mestranda em teatro pela Udesc/SC. Gostaria muito de obter seu email para podermos conversar…Vejo que você se interessa muito e pesquisa o tema do teatro pós dramático ou pós moderno, tema este que compõe minha pesquisa para a dissertação. Você poderia me responder por email? daiane_dordete@hotmail.com.
Abraço,e desde já obrigada pela atenção!
Daiane.

OLá Luiz!
Gostaria muito de obter seu email para podermos conversar melhor…Meu nome é Daiane Dordete e sou atriz e mestranda em teatro pela Udesc/SC. Vi que te interessas muito pelo tema teatro pós-dramático, ou pós-moderno, tema que conduz minha pesquisa para dissertação…Você poderia me responder por email? daiane_dordete@hotmail.com
ABraço e desde já agradeço.
Daiane.

Entendi, Luiz.
Eu estava dotando os seus “seres” de mais… Subjetividade, talvez, do que você propõe.

Essa possibilidade intermediária (“seres” estando entre “personagens” e a presentidade pura da dança contemporânea) nunca tinha me ocorrido com tanta clareza…

Isso seria a definição de persona?

Thaizi,

Matteo Bonfitto em O Ator Compositor (Perspectiva, 2005), apresenta o que ele chama de actantes: a)actante máscara; b) actante texto e c) actante estado.

Actante seria o que atua. No caso, parece-me que ele fala daquele ou daqueles que movem a ação cênica. O actante máscara se dividiria em tipo e persona. Tipo: o soldado que aparecem em Mãe Coragem de Brecht, ou em tantos outros textos. Persona: a Mãe Coragem e tantos outros personagens – mais ou menos delineados psicologica ou socialmente, mas que carregam uma história pessoal. O actante texto refere-se a textos teatrais que não possuem personagens nos enunciados. Textos de Heiner Muller, por exemplo. Máquina Hamlet, o que Hamlet diz não faz parte da constituição de um sujeito. É um enunciado… E no caso da actante estado, são pulsões, forças corporais que movem o jogo. Nesses casos, não temos um tipo (o soldado, o operário, o malandro…), e nem mesmo uma personagem psicológica (os personagens de Longa Jornada Noite Adentro… vivendo seus conflitos, expondo seus anseios e entregando-se às suas derrotas…).

Concordo com você: no campo da dança isso não é uma questão. E nem no campo da Performance Art. Então, temos um teatro contaminado por isso, pós-performance art, numa zona de indiscernbilidade muitas vezes com a dança…

No DV-8, em alguns casos desse grupo de teatro físico, temos uma caracterização… O cara que se insinua no bar de homens em Enter Aquies. Suas ações não trazem uma história pessoal… Não sabemos de onde vem… No entanto, a caracterização joga com um aspecto bem definido: ele se insinua como o estrangeiro no jogo daqueles homens… Mas, apesar de haver uma fábula (uma história), aqueles corpos parecem estar em suspenso – vivem um momento de suas vidas. E é o corpo, os estados daqueles corpos que empurram a fábula adiante e não revelações psicológicas…

Quanto à desfiguração, precisamos tomar cuidado para não criar novas exclusões. Ivana Bentes num texto iluminado sobre arte contemporânea discute isso. Veja em:http://www.canalcontemporaneo.art.br/blog/archives/000243.html
As forças da desfiguração podem ocorrer, defende ela, dentro da figuração.

Abraços

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