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Hans-Thies Lehmann: Escritura Política no Texto Teatral

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Arte, teatro e política: novos conceitos, novos encontros

Hans-Thies Lehmann, autor de O Teatro Pós-Dramático lançou em São Paulo (06.11.09), no Instituto Cultural Itaú, o seu novo livro: Escritura Política no Texto Teatral (Perspectiva). O lançamento ocorreu no evento Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo. Lehmann participou ainda de mais dois debates, um com o teórico e curador de arte, Nicolas Bourriaud e outro com o filósofo político Paulo Arantes, abrindo também, com uma conferência, a V Reunião Científica da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Abrace). Em todos os encontros Lehmann traçou conexões entre política e teatro, de tal modo que a própria concepção do que vem a ser um trabalho de arte começa a se transformar.

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Everyone has a dream: Tiago Gambogi e Margaret Swallow

Foto de Guto Muniz

Tiago Gambogi e Maggi Shallow estão apresentando o novo espetáculo, ‘EXTRAORDINARY’ – Everyone has a dream – um teatro físico que é um misto de dança, texto, ação poética e música. Veja mais sobre o novo trabalho do seu grupo sediado em Londres, f.a.b. The Dtonators, no My Space.

Conheci Tiago Gambogi no Curso Técnico de Ator  da Fundação Clóvis Salgado, quando ele foi meu aluno por uns poucos meses. Ali, pude perceber a estranha sensibilidade de Tiago. Realizávamos alguns jogos com objetos, de modo não realista. Ele acionava sua imaginação e criava situações inusitadas e sensíveis, exigindo dos seus parceiros de jogo uma atualização constante. Qual era o segredo? Ele brincava, se envolvia, acreditava nos estímulos que gerava no espaço. Era generoso e não se furtava ao que acontecia na cena.

Tiago queria mais. E  logo partiu para outra, pois a formação de ator era determinada, naquela época, pelos  ingredientes clássicos e interpretativos. O que não lhe fazia a cabeça. Resolveu, então, desembarcar no Oficcina Multimédia, um grupo de pesquisas teatrais performativas. De lá tomou rumos mais radicais, estudando dança e performance, até criar seu próprio grupo, com a parceira Margaret Swallow. Vez por outra temos a oportunidade de assistir, aqui no Brasil e em Belo Horizonte, seus trabalhos. O último, Made in Brasil, tem um texto neste blog: Uma conexão Londres-BH.

Todo mundo tem um sonho.

Do teatro dramático e do teatro performativo I

Pequenos Milagres/Grupo Galpão – Foto Joâo Marcos Rosa

A análise de Lehmann sobre o pós-dramático traz em si um problema: a idéia subjacente ao título de uma superação. No entanto, não é esse, o foco dos estudos de Lehmann. Ele discute, entre outras coisas, a crise da noção de tempo histórico, subjacente ao drama. Aponta, portanto, para as respostas produzidas pelos artistas cênicos. Ocorre que Lehmann expõe as rupturas com o universo engendrado pela junção teatro e drama. Neste aspecto, até mesmo o teatro épico estaria ainda preso à forma dramática, apesar de ter vislumbrado e contribuído para outras teatralidades.

I. Superação do drama?

A condição pós-dramática vem no âmbito dos estudos realizados por Peter Szondi relativos ao drama moderno. Tem a ver, também, com os textos de Heinner Muller, que não mais podem ser entendidos como subjacentes ao universo do teatro dramático.

O problema dessa abordagem é que ela tem como ponto de partida a evolução e crise do drama moderno, nas trilhas de Szondi. Como se o epicentro de um outro teatro (para não dizer novo) surgisse somente em função desse universo.

Fernando Villar, por exemplo, relaciona as criações cênicas que radicalizam procedimentos que ultrapassam as fronteiras do drama muito mais ao âmbito da performance art, mas não exclusivamente às artes plásticas (a teatralidade que despontaria aí), mas também às experiências teatrais da Rússia revolucionária (Meyerhold, formalismo e construtivismo), ao movimento dadaísta, ao Happening etc. Por isso, Villar fala mais de um teatro pós-performance art. Não no sentido de superação, mas que vem contaminado pela performance.

Já o conceito de teatro performativo, formulado por Josette Féral, apesar de não se apresentar, pelo menos no que é do meu conhecimento, numa publicação mais ampla, aponta para uma outra taxonomia. Obviamente, são planos diferentes – cada um desses autores resolvendo ou tentanto resolver problemas específicos: num, a fratura do drama, noutro, a radicalidade performática, localizada no ato performativo.

Digo isso porque há começa a surgir em torno do conceito de pós-dramático um equívoco: de conceito passa a virar uma “coisa”. Além disso, ocorre o risco de meramente produzirmos um filtro classificatório. Não existe a “coisa” que seria um teatro pós-dramático, a ser classificado num conjunto, mas sim um conceito que abordaria as forças e potências que, entre outros elementos, fazem eclodir o real na relação atores e espectadores. Aliás, Deleuze é mestre em taxonomias criativas. Não parte de uma sucessão disso depois daquilo, como se o que viesse depois fosse melhor. Até porque seu pensamento é geográfico e não histórico – opera por camadas, extratificações, topologias etc. Quando discute a imagem-movimento e a imagem-tempo, desenvolve dois conceitos que nos fazem entender modos de operar com as narrativas no cinema. Há diferença e é isso, afinal, o que provoca o pensamento. Lehmann, por sua vez, não se enveredou pelo pós-modernismo. Ao contrário disso, ele abordou, com lentes poderosas, o fenômeno de um teatro que não mais possui vínculo interno com o drama. Sintoniza, assim, com o seu tempo e contribui com suas análises para o entendimento de uma vasta e audaciosa produção cênica que não cabe ser classificada de pós-moderna. O problema reside na difusão de uma opinião que busca o must do momento. É sempre algo assim: a última novidade.

O pensamento criativo passa oblíquo sobre isso. Até porque as coisas não se encaixam nessas classificações. A criação cênica, quando instaura poéticas, é singular – opera resistências com as armas de que dispõem e inventam.

Pequenos Milagres, do Grupo Galpão trilha o teatro dramático. E com uma competência maravilhosa. Não é algo anterior às inovações do que seria um teatro pós-dramático. Porém, competências, em arte, como em filosofia e ciência, são singularidades. Ninguém as confere e não serve de modelo para ninguém – se quiser, como inspiração, problema, impulso para a criação. Deleuze, no texto O ato de criação, avisa, entretanto, para tomarmos cuidado com o “sonhos dos outros”, para não ser capturado. Você não cria, você mingua. Fabrique seu sonho.

No caso de Pequenos Milagres, vemos as influências que vão do melodrama (uma vertente brasileira e popular que o Galpão, em alguns momentos, assim como outros criadores, como Eid Ribeiro, souberam utilizar nos seus próprios planos inventivos) ao drama moderno, incluindo procedimentos de composição cênica contemporânea. Temos enquadramentos do cinema, proporcionando imagens muito bonitas. Não se pode ver tal espetáculo querendo ver outro, comparando com outra coisa.

Numa das cenas, o ator manipula uma cama de ferro, produzindo um som – a trilha – sublinhando sonoramente o seu diálogo com a mulher. A ação do ator, no caso, tem a ver com a dimensão da teatralidade – das ferramentas que a encenação convoca. Os atores movimentam o cenário no sentido de produzir, também, enquadramentos, recortes etc. Não são funções dos personagens, mas da cena. Nesse sentido, não mais vinculam ao drama, apesar de estarem à serviço do desenvolvimento dramático. São elementos que apontam para uma materialidade cênica presente, por exemplo, no teatro performativo (ou pós-dramático, se quiserem).

Toda a beleza das misturas impuras, como bem lembra Marcelo Kraiser, a partir de Barthes. Ainda bem.

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Teatro Pós-dramático: por um programa de desfiguração/despersonalização

Muito se pergunta sobre a função-personagem e a função-fábula na encenação contemporânea.  Levo a questão para pensar a prática de um teatro físico, com características performativaspós-dramáticas. Tenho buscado, para tanto, o que chamo de um programa de desfiguração e de despersonalização.

O que vem a ser isso?

Trata-se de um tema que vem se colocando na cena contemporânea, concernente às funções personagem e fábula.  E, invariavelmente, nas oficinas de treinamento em e como criação, assim como nos processos criativos,  tais questões vêm se apresentando. Assim como nas minhas leituras de diversas criações contemporâneas.

Não teríamos mais fábulas? Sempre produzimos uma narrativa. Mas, em muitas das encenações contemporâneas, a narrativa muitas vezes, é construída pelo público. Nem sempre como uma “história”, mas quase sempre de modo fragmentado, cada um de nós tentando configurar uma totalidade, que no entanto permanecerá sempre inacabada. Uma lógica das sensações predominando sobre uma lógica das significações.

Tenho me interessado pelas interfaces Teatro Físico e Teatro Performativo ou Pós-Dramático. Mas, o que vem a ser o Teatro Físico.  Lúcia Romano, no seu belo livro, Teatro do corpo manifesto: teatro físico, apresenta um excelente histórico e desenvolve conceitos muito interessantes, tanto do pont0 de vista dos estudos teóricos quanto do desejo de criação. Trata-se de uma produção eclética, que se abriga sob o nome de Physical Theater, como foi nomeado na Inglaterra. Romano diz que o nome quer dar ênfase à materialidade do eventocênico (p. 16). Para a autora  physical poderia ser entendido na tradução como “conectado ou relativo ao corpo”. Lúcia Romano opta por definir a fisicalidade como corporeidade, pois  trata-se de uma narrativa que se dá através de “nexos corpóreos”. Vale lembrar que o termo também surge com os artistas do grupo londrino DV-8, que estavam insatisfeitos com a dança abstrata e buscavam algo que fosse mais concreto. Surge, assim, um teatro que, por sua vez, tem por base o corpo manifesto.

Nessa perspectiva, de um Teatro Físico, dialogando com o campo da Performance Art, como definir a função-personagem e a função-fábula?

Para o esboço do que chamo de um programa de despersonalização/desfiguração para um Teatro Físico, faço as seguintes anotações:

1. Pensar negativamente é pensar o que falta ao outro. Ou o que ele não é. Isso comumente ajuda, mas torna o pensamento preso a um referente. Temos que avançar e dizer a que viemos. Qual o meio no qual se faz experimentar um teatro performativo e pós-dramático? Não basta dizer que é um teatro sem personagens e sem drama. Até porque a dimensão ficcional pode atuar, porém, em outros termos.

2. E é sempre bom insistir: tal programa não nos salva nem nos redime do fracasso. Além disso, não é um teatro melhor que os outros. O que ele busca é responder às questões que o acometem: o corpo não mais como um suporte mas como o discurso cênico, o borramento das fronteiras entre as artes, a contaminação mútua das linguagens artísticas, a necessidade de se orientar na vida de um modo a incorporar a fragmentação, o descentramento e a simultaneidade etc.

3. Compor com as forças da desfiguração. Deleuze, em Francis Bacon – lógica da sensação, discorre sobre tais potências que nos fazem passar da Figuração para a desfiguração: “quando a sensação visual confronta a força invisível que a condiciona”. Assim, Bacon não quer pintar a figura do horror, mas sim produzir a figuração do grito. O grito como a captação de uma força invisível, diz Deleuze sobre Bacon.

4. Fazer a distinção entre figura de figuração. As Figuras são forças visíveis. Deleuze diz que a função das Figuras é a de tornar visíveis as forças invisíveis. São aparições. Mas as Figuras são, comumente, presas à figuração, narração, ilustração. Deleuze mostra que “o figurativo (a representação) implica, com efeito, a relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar…” E a narrativa funciona como o correlato da ilustração: “uma história que se insinua ou tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado”.

5. Desfiguração: programa em que “o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível”.

6. Há seres. Há figuras. Insisto muito nisso. Daí a diferença do teatro físico com a dança conceitual (contemporânea) e mesmo a dança moderna. Há seres e relações. No sentido de forças, violências, atravessamentos. De um lado, são ações poéticas e de outro relações a-significantes (que modificam expectativas e significados). São seres larvares.

7. O teatro clássico moderno constrói fábulas sobre personagens em conflito. No Teatro Físico trata-se de forças que atuam sobre corpos. Não há um “eu”. Não há núcleos de subjetividade em conflito intersubjetivo ou com o mundo. Há epifânias do performer e da cena. Vide o teatro de Robert Wilson.

8. Para esse plano interessa muito o movimento contemporâneo da dança, principalmente quando gera processos desterritorializantes. Também, quando ultrapassa o movimento extensivo para adentrar nas tormentas do movimento intensivo. Ou seja, dos estados corporais.

9. Matteo Bonfitto , em O ator compositor (Ed. Perspectiva, 2005) , fala de três actantes: a) máscara; b) texto e c) estado. O actante máscara remete à persona (psicológica) e ao tipo. O actante texto é uma característica de Heinner Müller: como poderia, a partir de Medeia Material, falar de um núcleo de personas em desenvolvimento? Há seres textuais, digamos assim. E o terceiro, o actante estado, diz justamente das pulsões corporais.

10. O universo dos seres é aquele que transita entre a fábula e sua dissipação, instaurando o que Bonfitto chama deactante estado, produzindo figuras com potências desfigurativas. Ou, ainda, que conduz à espacialização desses seres. Você pode identificar, isto mesmo, classificar numa identidade, um determinado ser: uma caracterização cênica. No entanto, esta última logo varia e subtrai tudo o que poderia trazer uma história com lógica causal, organizada do passado ao futuro e vice-versa (drama).

11. Fazer o território da fábula fugir.

Referências:

Imagem de Esquina dos Aflitos – cena curta apresentada no Festival Internacional de Teatro de BH e no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto, em 2002. Direção: Luiz Carlos Garrocho. Roteiro de Luiz Carlos Garrocho e Ricardo Alves Júnior. Elenco: Clarice Peluso (foto), Juliana Barreto, Cristiano Moreira, Paulo Azevedo. Figurino de Maria Inês Starling Mol.

Cortiços: Cia Luna Lunera

A Cia Luna Lunera (BH) montou Cortiços, baseado na obra de Aloísio Azevedo. O grupo convidou o coreógrafo e bailarino Tuca Pinheiro, que fez a direção e coordenação dramatúrgica. O espetáculo faz parte do projeto Observatório de Criação.

Cortiços explora um caminho corporal da abordagem cênica, utilizando também de elementos visuais, como centenas de garrafas com líquidos coloridos, que também fazem parte do discurso. O cenário é um piso de madeira cercado de garrafas, com uma tina ao fundo e sobre a qual cai interminavelmente água, uma escada aberta e, fora dessa configuração, uma quadro negro móvel.

Mas o que vem do teatro? Configuram-se personas, inevitavelmente. E surge uma fábula. Porém, tanto as primeiras quanto a segunda não conduzem a cena num vínculo dramático, mas antes são exploradas áreas fronteiriças, que apontam para o universo do teatro pós-dramático, seguindo as análises de Lehmann. Entre a consecução da personagem com o lugar instilam-se outros espaços, outras referências e discursos, incluindo metadiscursos. Uma das atrizes, por exemplo, utiliza o quadro para marcar as ocorrências e embates dos atores, definindo as escolhas processuais, discursando sobre o processo e colocando dúvidas. Assim, entendo que o teatro não é o lugar opera vinculos entre personagem e lugar. Esta é apenas uma de suas possibilidades: o teatro dramático. Cortiços navega nas fronteiras do sentido, recortando o texto a partir de alguns elementos (o casal, o proprietário, a negra), os espaços etc. A seleção musical dos sambas e a sonoridade mais abstrata configuram, além disso, uma condução do fluxo material e expressivo – um nome mais apropriado para o que chamamos comumente de texto cênico (que não é o texto literário e nem o texto dramatúrgico).

O movimento corporal, por sua vez, tanto comenta a cena quanto produz estados intensivos que realimentam as personas e desfazem, ao mesmo tempo, os vínculos do teatro dramático. Isso ocorre principalmente porque introduz planos heterogêneos à ação dramática. Esta permanece, ora submergindo ora reaparecendo, como se o grupo bebesse nessa fonte já bastante conhecida e, ainda assim, arriscasse a caminhar pelo deserto mais luminoso e árido, onde não há mais personas, mas somente corpos e forças atuando sobre corpos.