Do teatro dramático e do teatro performativo I

Pequenos Milagres/Grupo Galpão – Foto Joâo Marcos Rosa

A análise de Lehmann sobre o pós-dramático traz em si um problema: a idéia subjacente ao título de uma superação. No entanto, não é esse, o foco dos estudos de Lehmann. Ele discute, entre outras coisas, a crise da noção de tempo histórico, subjacente ao drama. Aponta, portanto, para as respostas produzidas pelos artistas cênicos. Ocorre que Lehmann expõe as rupturas com o universo engendrado pela junção teatro e drama. Neste aspecto, até mesmo o teatro épico estaria ainda preso à forma dramática, apesar de ter vislumbrado e contribuído para outras teatralidades.

I. Superação do drama?

A condição pós-dramática vem no âmbito dos estudos realizados por Peter Szondi relativos ao drama moderno. Tem a ver, também, com os textos de Heinner Muller, que não mais podem ser entendidos como subjacentes ao universo do teatro dramático.

O problema dessa abordagem é que ela tem como ponto de partida a evolução e crise do drama moderno, nas trilhas de Szondi. Como se o epicentro de um outro teatro (para não dizer novo) surgisse somente em função desse universo.

Fernando Villar, por exemplo, relaciona as criações cênicas que radicalizam procedimentos que ultrapassam as fronteiras do drama muito mais ao âmbito da performance art, mas não exclusivamente às artes plásticas (a teatralidade que despontaria aí), mas também às experiências teatrais da Rússia revolucionária (Meyerhold, formalismo e construtivismo), ao movimento dadaísta, ao Happening etc. Por isso, Villar fala mais de um teatro pós-performance art. Não no sentido de superação, mas que vem contaminado pela performance.

Já o conceito de teatro performativo, formulado por Josette Féral, apesar de não se apresentar, pelo menos no que é do meu conhecimento, numa publicação mais ampla, aponta para uma outra taxonomia. Obviamente, são planos diferentes – cada um desses autores resolvendo ou tentanto resolver problemas específicos: num, a fratura do drama, noutro, a radicalidade performática, localizada no ato performativo.

Digo isso porque há começa a surgir em torno do conceito de pós-dramático um equívoco: de conceito passa a virar uma “coisa”. Além disso, ocorre o risco de meramente produzirmos um filtro classificatório. Não existe a “coisa” que seria um teatro pós-dramático, a ser classificado num conjunto, mas sim um conceito que abordaria as forças e potências que, entre outros elementos, fazem eclodir o real na relação atores e espectadores. Aliás, Deleuze é mestre em taxonomias criativas. Não parte de uma sucessão disso depois daquilo, como se o que viesse depois fosse melhor. Até porque seu pensamento é geográfico e não histórico – opera por camadas, extratificações, topologias etc. Quando discute a imagem-movimento e a imagem-tempo, desenvolve dois conceitos que nos fazem entender modos de operar com as narrativas no cinema. Há diferença e é isso, afinal, o que provoca o pensamento. Lehmann, por sua vez, não se enveredou pelo pós-modernismo. Ao contrário disso, ele abordou, com lentes poderosas, o fenômeno de um teatro que não mais possui vínculo interno com o drama. Sintoniza, assim, com o seu tempo e contribui com suas análises para o entendimento de uma vasta e audaciosa produção cênica que não cabe ser classificada de pós-moderna. O problema reside na difusão de uma opinião que busca o must do momento. É sempre algo assim: a última novidade.

O pensamento criativo passa oblíquo sobre isso. Até porque as coisas não se encaixam nessas classificações. A criação cênica, quando instaura poéticas, é singular – opera resistências com as armas de que dispõem e inventam.

Pequenos Milagres, do Grupo Galpão trilha o teatro dramático. E com uma competência maravilhosa. Não é algo anterior às inovações do que seria um teatro pós-dramático. Porém, competências, em arte, como em filosofia e ciência, são singularidades. Ninguém as confere e não serve de modelo para ninguém – se quiser, como inspiração, problema, impulso para a criação. Deleuze, no texto O ato de criação, avisa, entretanto, para tomarmos cuidado com o “sonhos dos outros”, para não ser capturado. Você não cria, você mingua. Fabrique seu sonho.

No caso de Pequenos Milagres, vemos as influências que vão do melodrama (uma vertente brasileira e popular que o Galpão, em alguns momentos, assim como outros criadores, como Eid Ribeiro, souberam utilizar nos seus próprios planos inventivos) ao drama moderno, incluindo procedimentos de composição cênica contemporânea. Temos enquadramentos do cinema, proporcionando imagens muito bonitas. Não se pode ver tal espetáculo querendo ver outro, comparando com outra coisa.

Numa das cenas, o ator manipula uma cama de ferro, produzindo um som – a trilha – sublinhando sonoramente o seu diálogo com a mulher. A ação do ator, no caso, tem a ver com a dimensão da teatralidade – das ferramentas que a encenação convoca. Os atores movimentam o cenário no sentido de produzir, também, enquadramentos, recortes etc. Não são funções dos personagens, mas da cena. Nesse sentido, não mais vinculam ao drama, apesar de estarem à serviço do desenvolvimento dramático. São elementos que apontam para uma materialidade cênica presente, por exemplo, no teatro performativo (ou pós-dramático, se quiserem).

Toda a beleza das misturas impuras, como bem lembra Marcelo Kraiser, a partir de Barthes. Ainda bem.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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