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Do Teatro Performativo e das vanguardas: anotações sobre o Encontro Mundial de Artes Cênicas

Abro algumas anotações sobre duas conferências do 6o Encontro Mundial de Artes Cênicas A cena emergente.

Josethe Féral apresentou uma conferência intitulada “Por uma poética da performatividade”. O conceito de performatividade é colocada no lugar de teatro-pós moderno e teatro pós-dramático.

– Por que performatividade? Féral entede que o conceito de performatividade está no centro do teatro hoje. Ela discutiu o conceito de performance, que subtende duas visões: a) o conceito antropológico, estudado e difundido por Richard Schechner e b) o conceito oriundo do campo da performance art. Féral fará uso das duas fontes para construir a noção de performatividade. No primeiro caso, ela considera que o termo performance toma um sentido muito amplo, ao abarcar, na trilha de Shechner, todos os domínios da área da cultura, desde os ritos, esportes, eventos espetaculares etc. O conceito, então, perderia muito de sua eficácia teórica.

– Féral contextualiza essa linha de pensamento: no desejo político dos anos 80 de reinscrever a arte no cotidiano, combatendo ainda a separção entre cultura popular e cultura erudita. A obra que teria impactado decisivamente o contexto cultural nesta perspectiva é The end of humanism, de Richard Shecnner, publicada em 1982.

– Josette Féral ainda citou outro autor e obra, que não consegui anotar, e que teria focado a performace como pensamento artístico. Renato Cohen, um autor, criador e difusor desse campo no Brasil, seguia justo pelas trilhas de uma performance como linguagem. A performance, nesse sentido, redefiniu, para Féral, os parâmetros da arte e do teatro.

– Portanto, para construir o conceito de performatividade ela utiliza, numa via, a visão antropológica, via Schechner, para quem o ato performativo caraceteriza-se como um jogo ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer) showing (mostrar). E noutra via, as pesquisas e criações da performance art.

– No teatro perfomartivo, não estamos mais na esfera da representação, mas no acontecimento – no real. Tais realizações não podem mais serem julgadas, diz Féral, como sendo verdadeiras ou falsas: elas simplesmente acontecem. Pertecem à ordem da ocorrência (eventness). Coloca-se em cena o processo, realçando o aspecto lúdico do acontecimento, num risco real do performer.

– Josette Féral mostra ainda que a performatividadade tem a ver com os elementos de desconstrução e intertextualidade, de escrita como obra performática (Derrida). Nesta ordem, pode-se ou não, no teatro performativo, que o objetivo seja atingido. Há uma desconstrução dos signos e o espectador descobre o prazer em participar disso. O objetivo da performance não é o de produzir signos, como é o caso do teatro, mas sim de flutuar na ambiguidade das significações.

– No final de sua exposição, ela pergunta se a performatividade, ao se contrapor à representação, não estaria se diferenciando também da teatralidade.

Richard Schechner fez teleconferência intitulada “Cinco vanguardas… ou nenhuma”. Alguns traços por ele realizados me chamam a atenção: a) se ainda podemos falar de vanguardas quando em todos os lugares (festivais, encontros etc.) o que temos são os procedimentos e realizações da performance, das linhas de experimentação em arte; b) a economia global; c) a transformação da arte em evento (vide o 11 de Setembro nos EUA); d) as relações entre arte e ritual. Apesar de não estarem situadas no mesmo dia, a fala de Schechner me coloca muito mais em continuidade e contraponto à de Josette Féral – por isso as apresento juntas.

– A exposição de Schechner sobre a globalização e a performance, assim como a transformação da arte em evento trouxe muitas perguntas. Schechner citou dois comentários de artistas sobre os ataques às torres gêmeas, sem falar no seu comentário pessoal, já que ele assistiu à destruição do seu próprio apartamento. O que ele afirma é que não se tratava, naquele caso, de uma ofensiva puramente militar, mas de uma investida no plano mental, na transformação do evento num espetáculo: no efeito do medo. Schechner cita dois comentários de artistas sobre o ataque às torres gêmeas. Primeiro, o músico Karlheinz Stockhausen, que afirmou sobre o ataque terrorista: “O que aconteceu lá, e agora todos vocês têm de reajustar seus cérebros, é a maior obra de arte que já existiu”

– O segundo, Dario Fo, que disse ser a destruição de vidas produto da mesma lógica, capitalista, que mantém milhares de pessoas em condições sub-humanas no planeta, quando não simplesmente mortas dia após dia. O que chocou a mídia e muitas outras pessoas, diz Schechner, não foi a fala de Dario Fo, mas a de Stockhausen, porque este cita a arte. Equivale um ataque terrorista à categoria de obra de arte? É a pergunta que Richard Schechner deixa no ar.

– Muitas e muitas pessoas no mundo dedicam-se à arte como vida, realizando o sagrado, não buscando recursos ou fama. Lembremos que, no contexto do pensamento de Schechner a performance está ligada às dimensões simbólicas do agir humano, se posso dizer assim. Portanto, como ele mesmo disse na teleconferência, se há os que procuram na arte a chance de se tornarem inseridos no mercado, há os que se dedicam aos aspectos religiosos e cotidianos. Há, aqui, ecos de John Cage, que Allan Kaprow teria se apropriado ao falar de uma arte como vida, diferentemente de uma arte como arte. Se esta última segue na linha de tradição da obra de arte a outra tem por necessidade as pequenas ritualizações cotidianas que formam experiências possíveis experiências estéticas.

John Cage, apropriando-se do Zen Budismo, trouxe esse plano possível: o de que não há nenhuma experiência do sagrado (em religião ou arte) que seja superior à nossa experiência cotidiana.

– Penso que, num mundo globalizado, de um capitalismo que se faz cognitivo e cultural, a performance art e os planos de experimentação passam a fazer parte daquilo que Maurizzio Lazzarato e Antonio Negri chamam de “trabalho imaterial”.

– Além disso, penso que Shechner está falando não somente de uma performance num sentido amplo, que é o antropológico (ritos e modos de ser, fazer e mostrar), mais do que isso, ele abala definitivamente as fronteiras e limites da arte, trazendo-a para o plano da mente e da impossiibilidade de categorização. A arte explode para fora dos seus redutos de desenvolvimento e passa por mutações.

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Anotações sobre recusa, resistências e culturas afirmativas

1. Quando penso nas estratégias de recusa, tomo por caminho a Poesia da Recusa, de Augusto de Campos. O poeta e performer Ricardo Aleixo foi quem deu a dica da leitura. Logo na abertura do livro, Augusto lembra Valéry, dizendo que “o trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por meio de recusas”. A recusa opera em linhas estéticas e éticas. Augusto de Campos lembra que, em poesia, as duas estão entrelaçadas.

Do músico John Cage ao criador teatral e filmaker Carmelo Bene: trilhas de recusa.

2. As micropolíticas tiveram expressão e força em Foucault. Ele distingue, por exemplo, entre os vários regimes de técnicas, dois tipos que são as técnicas de poder e as técnicas de si. Assim, temos:

“as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito; as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos deser; de transformarem-se a fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade.”

3. Foucault coloca também uma nova forma de luta política: não somente aquelas que se estabelecem no âmbito das classes, dos grupos em vias do poder, mas contra as formas de assujeitamento. Por fim, ele antevia uma região em que as técnicas de poder misturam-se às técnicas de si.

Foucault explicita, num texto que discute o sujeito e o poder, as lutas micropolíticas: a) são lutas transversais: não se confinam a países, governos específicos etc. b) não são lutas que visam os efeitos do poder, mas antes criticam o poder não controlado sobre os indivíduos, sobre os corpos etc;c) são lutas imediatas: não questionam a instância distante de poder, mas a que está envolvida diretamente;d) são lutas que questionam o status do indivíduo: o que os restringe quanto às suas escolhas, o que define para si uma identidade, o que os separa dos outros indivíduos, e todas as formas de assujeitamento;e) giram em torno da questão: “quem somos nós?”

4. Porque a política antecede o ser, diz Deleuze. Já estamos, sempre, numa situação política. Porém, a macropolítica não é a detentora do plano de exercício politico. Não cobre os territórios, mas realiza capturas – ou melhor, apropria-se das forças da vida. E não são a fonte de inspiração micropolítica. Porém, não vamos pensar que as políticas que funcionam num plano de representação são más. Estão aí, no plano da vida, exercendo poder. A questão do fortalecimento da participação na esfera macropolítica pode ser uma contribuição micropolítica? Penso que isso é possível, mas não reduz ou delimita a ação dos movimentos micropolíticos.

5. Por outras linhas, proliferam as culturas afirmativas. Não são se opõem às recusas. Culturas afirmativas, aqui, estão no lugar de culturas de resistência. As micro-políticas procuram sair da lamúria e, no mínimo, diriam com o sambista Ismael Silva: tristezas não pagam dividas. Não estamos falando de identidades: A=A que não B. Estamos falando da substituição, nas culturas afirmativas, do “é” pelo “e”. A série projeta-se a caminho, não pára num retrato. As culturas afirmativas não coincidem consigo mesmas, mas com suas transições (Brian Massumi). As micropolíticas tem a ver com o incremento da potência de agir (Spinosa).

6. Quanto às culturas afirmativas, tomo de Antônio Negri uma bela definição, a partir de Spinosa:

“Gostaria de dizer enfim que a redescoberta de Spinoza que devemos a Deleuze e a Matheron nos permite viver “este” mundo, isto é precisamente o mundo do “fim das ideologias” e do “fim da história”, como um mundo a reconstruir. Ela nos mostra que a consistência ontológica dos indivíduos e da multidão permite olhar para frente cada vez que a vida singular, como ato de resistência e de criação, emerge. E se os filósofos não gostam da palavra “amor”, e se os pós-modernos declinam dele seguindo a idéia de um desejo fenecido,nós, que relemos a Ética, nós, o partido dos spinozistas, nós ousamos sem falso pudor falar de amor como amais forte paixão, uma paixão que cria a existência comum e destrói o mundo do poder.”

7. Penso, além disso, nos movimentos e militâncias estético-culturais, de como configuram respostas à questão da economia da vida. De como as novas gerações enfrentam o problema. Penso nas recusas das gerações que trilharam esse caminho. E no massacre que muitas viveram. E, ainda, das novas cooptações, das vanguardas estabilizadas etc.

O fascismo e o stalinismo foram obscuridades que o capital lançou mão em determinado momento. Um novo momento do capital no pós-guerra e a rebelião jovem toma conta das democracias do planeta. Refluxo do capital e cooptação dos melhores sonhos nas décadas seguintes. Estabilizam-se as vanguardas, ou elas insuflam mudanças no modo como o capital se faz acumular, principalmente através da arte e da cultura. Novos movimentos surgem nas lutas anti-globalização, justamente quando acreditava-se que nada novo ocorreria em termos de rebelião jovem.

8. Em outras palavras: a pressão da produtividade econômica sobre as novas gerações. Na década de 60, pela via alternativa e na abertura de possíveis que o capital utilizou como estoque de invenção para os anos de refluxo do dinheiro. Um novo movimento surgirá das filas dos jovens desempregados na Inglaterra: o punk. E o capital se desterritorializa mais e mais. Desmaterializa tudo. Inclusive a arte. Ocorre que o emprego acabou. O filósofo Gilles Deleuze deu a dica: estamos não mais nas sociedades disciplinares (Foucault), mas nas sociedades de controle (de tudo, do fluxo de informações, das atitudes que podem gerar novos processos de acumulação…). Não que aquelas não continuem atuando, mas inserem-se em algo mais complexo: O morcego e a mariposa: ela inventa a queda rodopiante e vertical, fingindo-se de morta, para fugir do predador e ele aprende a queda livre em quebradas de asa para pegar sua presa.

As lutas geracionais recolocam em pauta as questões dos valores simbólicos frente aos valores econômicos. As modalidades pré-fabricadas do desejo procuram definir nossa entrada no mundo em termos de sexualidade, saber de corpo, estética, ética. As estratégias de recusa, de resistência e das vias alternativas procuram responder a esta questão.

9. Não que seja um problema “jovem”. Aliás, alguns fazem crer que se trata disso. È um problema da vida e da renovação de suas forças. As respostas que temos encontrado nas militâncias estético-cultuais estão dizendo que habitar o planeta não é um plano pré-traçado pela junção valores e acumulação de capital. Há mundos possíveis. Recusas, resistências, afirmatividades e alternativas estão mostrando isso.

Referências:

Foucault, M. El sujeito y el poder. Traducción de Santiago Carassale y Angélica Vitale.

__________. As técnicas de si. In: Université du Vermont, outubro, 1982; trad. F. Durant-Bogaert).Hutton (P.H.), Gutman (H.) e Martin (L.H.), ed. Technologies of the Self. A Seminar with Michel Foucault. Anherst: The University of Massachusetts Press, 1988, pp. 16-49. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813, por Wanderson Flor do Nascimento e Karla Neves. Disponível no site do Espaço Michel Foucault.

Negri, Antonio. Uma filosofia da afirmação. In Spinosa e a Filosofia: Leitores de Spinosa.

Campos, Augusto. Poesia da Recusa. Perspectiva: 2006, São Paulo.

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Ativismo e Análise Política Geral Micropolítica Sobrevivência: estratégias

Como ficam as micropolíticas: resistir é capitular?

Slavoj Zizek diz que sim. Num artigo da revista impressa Piauí, número 16, Zizek discute a questão: “o capitalismo deve ser combatido por meio de reivindicações impossíveis ou se deve almejar a conquista do poder do Estado?” O título já contém a resposta: Resistir é capitular.

Zizek, depois de considerar que o capitalismo triunfa no planeta e conquista mentes e corações, alinha as alternativas de esquerda:

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Arte e Cultura Filosofia Geral

Assis Valente: felicidade é brinquedo que não tem…

 

Então, é Natal. Não fosse a cisão que atravessa nossas sociedades (de mercado), seria um ritual ou um costume, ou algo assim. Mas não é disso que se trata. Comemora-se, não se sabe bem o quê… Nem todos os grupos humanos comungam com a ideia de Natal, mas quase todos estão submetidos à civilização ocidental-cristã e suas mutações. Por exemplo: uma comemoração religiosa transformar-se num grande mercado mundial!

As  músicas natalinas tornaram-se um dos subprodutos dessa hegemonia. Porém, nem sempre os requisitos da encomenda, entre eles o de embalar as consciências, foram atendidos. Assis Valente, o pré-socrático do morro, como dizia Jorge Mautner, fez outra coisa, completamente diferente: abriu a nossa ferida. O genial compositor que tentou suicídio três vezes e viveu oprimido pela sua ambiguidade sexual, apaixonado por Elvira Pagã e depois por Carmem Miranda, compôs sua canção natalina, fugindo dos estereótipos:

Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
 
Brincadeira de papel
 
Já faz tempo que eu pedi

Mas o meu Papai Noel não vem 
Com certeza já morreu

Ou então felicidade 
É brinquedo que não tem

Quando eu era menino, eu ouvi isso no rádio e, pela primeira vez, percebi que o Natal não era para todos… O rádio era assim, conectava-nos com um ausente-presente, introduzindo uma voz na paisagem do interior de Minas Gerais. Aquilo mexia comigo. O drama sacudia o universo da vida comum, desequilibrando o céu que nos protegia.

Em outras palavras, Assis Valente expõe nossas delusões,  para fazer uma conexão com o Budismo.

Assis, o Valente, cortou os pulsos e não conseguiu morrer, pulou do Corcovado e ficou enganchado numa árvore. Por fim, numa tarde de 1958, tomou formicida com guaraná, ao lado de crianças que brincavam ali perto, na Praia do Russel, Rio de Janeiro.

Augusto de Campos montou o seguinte paradoxo para falar de Assis Valente e de sua obra: o felicídio da suicidade. A poética nem se ampara num sentimento e nem retrata objetivamente o real, produzindo antes o impensável (na trilha de Deleuze). Se fosse a felicidade do suicídio ou o suicídio da felicidade teríamos dois retratos, um subjetivo e outro social. Ou, dito de outro modo, um niilismo e uma sociologia. Mas o paradoxo faz coexistir, num mesmo plano, os heterogêneos.

O Valente Assis viveu a plenitude do paradoxo. Que não tenha sobrevivido às suas questões, não é um julgamento, mas a constatação de que os seus tempos foram difíceis e muitas vezes há o suplício misturado ao canto. A vitoriosa Carmem Miranda, que se incomodava com a acidez e com a ironia lúdica dos versos de Assis, no momento de sucesso nos EUA, também foi ao chão, dia após dia, explorada pelo próprio marido e produtor.

Nem niilismo romântico e nem objetividade discursiva nos salvará – talvez essa seja uma das mensagens de Assis, o Valente. Aliás, um dos versos mais geniais é puro paradoxo-zen:

“sapateia na poeira sem pena
sem dó
a poeira é aquele que sapateou até virar pó”
.

Mais –

Boas Festas na voz de Carlos Galhardo:

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Zikzira Teatro Físico: Eu vos liberto



Zikzira Teatro Físico traz um novo espetáculo: Eu vos liberto. Montado numa antigo depósito de tecidos, o 104 da Praça da Estação, em Belo Horizonte, o espetáculo abre uma zona sombria e espectral, configurando o cenário decadente de um palácio. A encenação tem por base a tragédia de Euclides, Hipólito, na qual Fedra vive o tormento de uma paixão incestuosa.

Fernanda Lippi e André Semenza, responsáveis pela criação corporal e cênica, respectivamente, continuam com a busca por um teatro físico visceral e, de certo modo, espectral. Acrescentam, para quem viu o filme As Cinzas de Deus e o espetáculo Verissimilitude, a vocalização. Em Verissimilitude, a vocalização se dava em pouquíssimos momentos, em sons inarticulados, que não remontavam a uma significação, deixando-nos num plano de sensações. Agora, o Zikzira Teatro Físico, após suas experiências com as vocalizações a partir das técnicas de Grotowski, arrisca-se no terreno de um oralidade mais explícita quanto à significação do texto.

Retomo alguns pontos. A questão do espectral: vejo que o teatro físico alimenta-se dos estados corpóreos, configurando mais espectros do que personagens dramáticos ou épicos. A figura, tão cara para uma arte narrativa e de conexões lógicas de significação, é des-figurada. Não pelo mergulho psicológico (teatro dramático moderno norte-americano, por exemplo, onde, em Longa Jornada Noite Adentro as personagens se desmancham, mas a representação está firmemente alicerçada em cena), ou mesmo épico-narrativo, com os seus enunciados discursivos diretamente para o público, mas sim porque o estados corporais e os desenhos intensivos tomam a composição cênica. Deleuze fala de uma lógica da sensação, quando aborda a pintura de Francis Bacon. Por ressonância, penso que os espectros do teatro físico, como o Zikzira desenha, aparecem primeiramente como figuras, mas são tomadas por forças desfigurantes. Deleuze diz que “em arte, tanto em pintura quanto em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças”. Ele cita a fórmula de Klee: “não apresentar o visível, mas tornar visível”. E o que o teatro físico e pós-dramático realiza não é a figuração das personas, mas sim as forças invisíveis que atravessam os corpos.

Matteo Bonfitto faz uma distinção entre os actantes máscara, de um lado, e estado e texto, de outro. No primeiro caso, temos uma ação que informa sobre o ontem e o hoje da personagem, numa linha que Matteo Bonfitto chama de temporalização. Há uma relação de causalidade: o que o personagem faz informa sobre seu passado e cria uma tensão em relação ao seu futuro – entra-se, portanto, num plano de coerência e de lógica.

Quando, ao contrário, se entra no actante-texto ou no actante-estado, o agenciamento é outro. Nesse momento, Bonfitto diz que ocorre uma destemporalização da personagem. Aqui, diz Bonfitto, o actante espacializa-se. Ou seja, ele não se encontra consubstanciado num sujeito psicológico. Torna-se impossível encontrar ações que sejam funcionais para o desenvolvimento dramático. Não há mais meios, diz Bonfitto, que possam identificar em tal ser ficcional uma estrutura lógico-temporal. Ocorre uma dispersão do personagem – o encadeamento lógico-causal, próprio do drama, se frustra.

O elenco, com performers de várias nacionalidades (brasileira, chilena e coreana), mergulha nesse mundo espectral e nos remete às forças invisíveis. Estão comprometidos com a linha das sensações que perseguem durante todo o espetáculo. E isso é muito bonito de se ver.

Fernanda Lippi mostra, assim, que continua com sua busca por uma linha pulsional, de uma coreografia energética. Não se trata mais de dança, moderna ou contemporânea, apesar do universo que baila diante de nossos olhos. Essa é uma dança que se dá antes de modo mais intensivo e menos extensivo.

Quanto às vocalizações, em vários momentos sou afetado pela mesma viagem espectral e desfigurante das forças que tomam os corpos. Fernanda Lippi e André Semenza estão introduzindo, cada vez mais, as vocalizações nas criações cênicas do Zikzira. Tais forças sonoras resultam também de impulsos corporais, numa busca que parece partir dos ensinamentos e procedimentos de Grotowski. Eu vos liberto traz, além disso, outros planos vocais, como o cantor lírico sobre uma ponte acima dos atores.

São expressões vocais que viajam mais no plano das sensações do que das significações, o que me evoca a característica espctral do teatro físico que o Zikzira tem configurado.

No entanto, há um componente de representação na vocalização do papel de Hipólito, por exemplo, que me remete a um teatro no qual a figuração da fala é explícita e dada à significação, apesar do delírio que o plano ficcional nos arrasta. Explico: a fala em alguns teatros dramáticos ou épicos são igualmente capazes de produzir afecções poderosas, mas o aspecto representacional está lá, com a figuração (o personagem ficcional com sua história configurando uma persona no teatro dramático ou o mesmo pronunciando um discurso, apresentando um mundo, como ocorre no teatro épico).

Arrisco um pensamento: o texto épico ou dramático contém elementos de significação da ordem da figuração. Neste, as forças invisíveis estão em contato com as forças visíveis (o que é dito como confissão da personagem ou como expressão de um mundo objetivo), mas predomina o plano no qual o texto se impõe aos outros sentidos da cena (e o sentido deriva, afinal, do texto literário). Ora, Eu vos liberto busca outro plano (o das sensações) e, ao mesmo tempo, introduz o texto que traz sua carga de significação. São perguntas que me faço: o lugar do texto falado no teatro físico. O grupo Zikzira, agora introduzindo vocalizações provenientes de um texto épico/dramático, abre essa trilha de investigação.

Referências:

BONFITTO, M. O ator compositor. São Paulo: Editora Perspectiva. 2006
DELEUZE, G. Francis Bacon – Lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.2007

Imagem: André Semenza – divulgação