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Festival de Performance de Belo Horizonte

beuys
Performer Joseph Beuys (1921-1986): o que interessa não é o narcisismo, mas a ferida narcísica

Começa hoje e vai até o dia 21.08, o Festival de Performance de BH. A cidade nem acabou de assimilar a Mip2, e já temos o bloco de Denise Pedron, Ricardo Garcia e Cia instaurando espaços e tempos. E tome encontros, oficinas, além das próprias performances!

Uma cultura performática vai se disseminando, desse modo, pela cidade. Um novo projeto focalizando a performance art é mais uma janela aberta. Mais oportunidades de participação e mais enfoques sobre o tema. Belo Horizonte, afinal, já tem mais de 3 milhões de habitantes e muitas urbes em variações sem fim.

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Do Teatro Performativo e das vanguardas: anotações sobre o Encontro Mundial de Artes Cênicas

Abro algumas anotações sobre duas conferências do 6o Encontro Mundial de Artes Cênicas A cena emergente.

Josethe Féral apresentou uma conferência intitulada “Por uma poética da performatividade”. O conceito de performatividade é colocada no lugar de teatro-pós moderno e teatro pós-dramático.

– Por que performatividade? Féral entede que o conceito de performatividade está no centro do teatro hoje. Ela discutiu o conceito de performance, que subtende duas visões: a) o conceito antropológico, estudado e difundido por Richard Schechner e b) o conceito oriundo do campo da performance art. Féral fará uso das duas fontes para construir a noção de performatividade. No primeiro caso, ela considera que o termo performance toma um sentido muito amplo, ao abarcar, na trilha de Shechner, todos os domínios da área da cultura, desde os ritos, esportes, eventos espetaculares etc. O conceito, então, perderia muito de sua eficácia teórica.

– Féral contextualiza essa linha de pensamento: no desejo político dos anos 80 de reinscrever a arte no cotidiano, combatendo ainda a separção entre cultura popular e cultura erudita. A obra que teria impactado decisivamente o contexto cultural nesta perspectiva é The end of humanism, de Richard Shecnner, publicada em 1982.

– Josette Féral ainda citou outro autor e obra, que não consegui anotar, e que teria focado a performace como pensamento artístico. Renato Cohen, um autor, criador e difusor desse campo no Brasil, seguia justo pelas trilhas de uma performance como linguagem. A performance, nesse sentido, redefiniu, para Féral, os parâmetros da arte e do teatro.

– Portanto, para construir o conceito de performatividade ela utiliza, numa via, a visão antropológica, via Schechner, para quem o ato performativo caraceteriza-se como um jogo ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer) showing (mostrar). E noutra via, as pesquisas e criações da performance art.

– No teatro perfomartivo, não estamos mais na esfera da representação, mas no acontecimento – no real. Tais realizações não podem mais serem julgadas, diz Féral, como sendo verdadeiras ou falsas: elas simplesmente acontecem. Pertecem à ordem da ocorrência (eventness). Coloca-se em cena o processo, realçando o aspecto lúdico do acontecimento, num risco real do performer.

– Josette Féral mostra ainda que a performatividadade tem a ver com os elementos de desconstrução e intertextualidade, de escrita como obra performática (Derrida). Nesta ordem, pode-se ou não, no teatro performativo, que o objetivo seja atingido. Há uma desconstrução dos signos e o espectador descobre o prazer em participar disso. O objetivo da performance não é o de produzir signos, como é o caso do teatro, mas sim de flutuar na ambiguidade das significações.

– No final de sua exposição, ela pergunta se a performatividade, ao se contrapor à representação, não estaria se diferenciando também da teatralidade.

Richard Schechner fez teleconferência intitulada “Cinco vanguardas… ou nenhuma”. Alguns traços por ele realizados me chamam a atenção: a) se ainda podemos falar de vanguardas quando em todos os lugares (festivais, encontros etc.) o que temos são os procedimentos e realizações da performance, das linhas de experimentação em arte; b) a economia global; c) a transformação da arte em evento (vide o 11 de Setembro nos EUA); d) as relações entre arte e ritual. Apesar de não estarem situadas no mesmo dia, a fala de Schechner me coloca muito mais em continuidade e contraponto à de Josette Féral – por isso as apresento juntas.

– A exposição de Schechner sobre a globalização e a performance, assim como a transformação da arte em evento trouxe muitas perguntas. Schechner citou dois comentários de artistas sobre os ataques às torres gêmeas, sem falar no seu comentário pessoal, já que ele assistiu à destruição do seu próprio apartamento. O que ele afirma é que não se tratava, naquele caso, de uma ofensiva puramente militar, mas de uma investida no plano mental, na transformação do evento num espetáculo: no efeito do medo. Schechner cita dois comentários de artistas sobre o ataque às torres gêmeas. Primeiro, o músico Karlheinz Stockhausen, que afirmou sobre o ataque terrorista: “O que aconteceu lá, e agora todos vocês têm de reajustar seus cérebros, é a maior obra de arte que já existiu”

– O segundo, Dario Fo, que disse ser a destruição de vidas produto da mesma lógica, capitalista, que mantém milhares de pessoas em condições sub-humanas no planeta, quando não simplesmente mortas dia após dia. O que chocou a mídia e muitas outras pessoas, diz Schechner, não foi a fala de Dario Fo, mas a de Stockhausen, porque este cita a arte. Equivale um ataque terrorista à categoria de obra de arte? É a pergunta que Richard Schechner deixa no ar.

– Muitas e muitas pessoas no mundo dedicam-se à arte como vida, realizando o sagrado, não buscando recursos ou fama. Lembremos que, no contexto do pensamento de Schechner a performance está ligada às dimensões simbólicas do agir humano, se posso dizer assim. Portanto, como ele mesmo disse na teleconferência, se há os que procuram na arte a chance de se tornarem inseridos no mercado, há os que se dedicam aos aspectos religiosos e cotidianos. Há, aqui, ecos de John Cage, que Allan Kaprow teria se apropriado ao falar de uma arte como vida, diferentemente de uma arte como arte. Se esta última segue na linha de tradição da obra de arte a outra tem por necessidade as pequenas ritualizações cotidianas que formam experiências possíveis experiências estéticas.

John Cage, apropriando-se do Zen Budismo, trouxe esse plano possível: o de que não há nenhuma experiência do sagrado (em religião ou arte) que seja superior à nossa experiência cotidiana.

– Penso que, num mundo globalizado, de um capitalismo que se faz cognitivo e cultural, a performance art e os planos de experimentação passam a fazer parte daquilo que Maurizzio Lazzarato e Antonio Negri chamam de “trabalho imaterial”.

– Além disso, penso que Shechner está falando não somente de uma performance num sentido amplo, que é o antropológico (ritos e modos de ser, fazer e mostrar), mais do que isso, ele abala definitivamente as fronteiras e limites da arte, trazendo-a para o plano da mente e da impossiibilidade de categorização. A arte explode para fora dos seus redutos de desenvolvimento e passa por mutações.

Cultura e artes do pós-humano

Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, de Lucia Santaella, pensa as tranformações socioculturais que surgem com a passagem da sociedade de massas para a sociedade digital.

O livro, de 356 páginas, discute os conceitos de cultura, a contribuição dos estudos semióticos para os estudos culturais, as mídias digitais, os substratos da cibercultura, as formas de socialização na cultura digital, as artes híbridas, as relações entre arte e tecnologia, o corpo humano em relação ao pós-humano, focando as artes do corpo cibernético, os corpos carnais e alternativos, apreentando, no capítulo final, a questão da arte depois da arte.

No Capítulo 8, intitulado O corpo cibernético e o advento do pós-humano, a autora afirma que a era da revolução digital “trará consequências para a constituição da vida social e formas de identidade cultural tão profundas quanto foram as da emergência da cultura urbana mercantil no fim do feudalismo.”

Uma das questões que emergem desse campo diz respeito às contribuições dos chilenos Humberto Maturama e Francisco Varella, após a publicação de Autopoiesis and Cognition: the realization of the living (1980), segundo Santaella. Andei encucado com a noção de autopoiesis que me apareceu em diversas leituras, sem poder ter lido, ainda, o livro. A autora explica o conceito a partir da importante influência que vai produzir no campo das transformações cibernéticas. Nesse aspeto, diz Santaella, a autopoiesis nesses autores refere-se ao pensamento de que o organismo ser um sistema fechado, que se produz a si mesmo.

Não temos mais aqui o paradigma de um organismo que entrará em contato com um mundo lá fora, diferente dele. Pelo contrário, tal mundo não seria separado do organismo, pois que nós “vemos apenas aquilo que nossa organização sistêmica permite ver.” Isso implica na sequinte mudança: o observador, na primeira onda cibernética era uma entitade separada do observado. Na segunda onda cibernética, diz Lucia Santaella, a autopoiesis mostra que um e outro não estão separados.

Tais questões mexem, em muito, com as noções de alternância entre criadores e público nos procedimentos de criação chamado por Renato Cohen de Working in progress. Por enquanto, apenas assinalo a pertinência dessa questão para as mudanças que estão ocorrendo na arte, inclusive na chamada web 2.0: os processo colaborativos etc.

Outra questão que me chamou a atenção diz respeito ao neologismo ciborg (de cibernético e organismo), uma invenção de Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, nos anos 60. Santaella apresenta uma concepção muito fecunda não só para a análise do tempo presente e suas transformações, mas também para os planos de criação corpórea e performance na qual arte e tecnologia se implicam mutuamente.

Mais do que a noção de um ciborg como homem-máquina, que tanto nos fascina, assusta ou em alguns gera repúdia, Santaella apresenta o Manifesto Ciborg da feminista socialista e historiadora Donna Haraway, realiazado em 1985. Trata-se de uma corporeidade que está em vias de “desestabilizar o poder patriarcal e romper com todos os dualismos hierárquicos que estruturam o eu ocidental”.

Faço aqui uma conexão com uma passagem de outra obra, o livro The Eletronical disturbance ( no Brasil, publicado pela Conrad como Distúrbio eletrônico – Critical arte ensemble. Uma performer anda com os seios de fora na cidade e a polícia pretende prendê-la. Mas ela diz que é homem e que estes, quando andam sem camisa, não são presos. Os policiais dizem que ela é uma mulher e ela retruca que não. Eles pedem seu documento de identidade, que a apresenta como homem, pois como um hacker, ela se introduziu nos sistema de codificação e o alterou. A polícia fica perplexa e não sabe o que fazer, pois ela está codificada como homem e no entanto tem todos os atributos de uma mulher.

Outra conexão, possível, entre outras, é ver os performers voltados à criação corpórea como ciborgs. Aliás, Lucia Santaella lembra a partir de Donna Haraway, que todos nós somos ciborgs. Estamos adentrando num campo de ambiguidade total. Há conexões, ainda, com a performer e rockeira Malu Aires, que adentra nos espaços ambíguos. A menina má e doce expõe na sua voz numa zona em que que proliferam seres e afecções. A guitarra, o microfone, as vocalizações, tudo isso é uma mistura de máquina e corpo. Mas, ela vai além disso e sua boca assume cavernas e luzes que jorram e outras coisas mais. Anotem aí: essa ciborg vai chegar junto nas paradas!

Fico por aqui, voltando-me à leitura do livro de Lucia Santaella:

“Ao transgredir as fronteiras que separavam o natural do artificial, o orgânico do inorgânico, o ciborg, por sua própria natureza, questiona os dualismos, evidenciando que não há mais natureza nem corpo, pelo menos no sentido que o iluminismo lhes deu. O manifesto de Haraway despertou muitas controvérsias porque ele não só denuncia a concepção ocidental de mundo, mas também o próprio feminismo, quando, mantendo-se no universo dos dualismos forjados, este glorifica o lado dos atributos do feminino nas equações opositivas entre masculino e feminino”.


Referências:


SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Arte interativa e cibercultura

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Renato Cohen e a criação cênica em processo – do Overmundo

Há um livro que sempre indico para as pessoas que desejam conectar-se com as pesquisas cênicas contemporâneas, tais como a de um teatro contaminado pelas outras mídias (dança, música, artes-plásticas), tomado pelo hibridismo e que foge às categorizações: Working in progress na cena contemporânea, de Renato Cohen.

O autor, que se encantou em 2003, é um pensador-criador do teatro experimental, que ele denominava nos últimos escritos de pós-teatro: um plano de criação intermídias, processual e instável. Cohen traçou caminhos em zig-zag, desnorteando referências por demais fixas, avizinhando-se de zonas fronteiriças, imprimindo um teatro gestual, de forte impacto visual e sonoro.

Trouxe para a cena o mito e o ritual, não de modo ilustrativo, mas sim ao modo de uma produção desejante, de um agora carregado de passado e futuro.

Cohem aponta para um procedimento de criação cênica que não se faz mais como obra acabada, mas como obra em processo. Isso não quer dizer que ela seja mal-acabada, mas sim que, em ressonância com o espírito de época, sua incompletude passa a ser a sua virtude. A obra em processo rompe com séculos de tradição artística ocidental, instaurando uma arte corroída pelo seu próprio discurso. Paul Virilio mostra, a respeito da contemporaneidade, que a arte torna-se acidente. Porém, acrescenta, as obras de arte caminham, em sua maioria, sem saber desse fato. Não se trata de uma visão catastrófica.Virilio mostra que tudo já é acidente – só falta tomar conhecimento disso. E tal fato deveria ser visto como uma positividade. Nesse sentido, a obra processual de Renato Cohen incorpora as vicissitudes do trajeto, a incompletude dos significados, o atravessamento de multiplicidades, produzindo uma cena outra, na qual o acidente configura uma realidade existencial.

A pesquisadora de artes cênicas, Sílvia Fernandes, aponta alguns dos procedimentos utilizados por Cohen: a) narrativas sobrepostas; b) noção de obra progressiva a partir do corso-ricorso, tomado de James Joyce; c) variáveis abertas num fluxo livre de associações, evitando assim o fechamento do sistema, como ocorreria, por exemplo, com o texto dramático; e d) leitmotiv condutores. Tais procedimentos substituem o desenvolvimento dramático, procedimento clássico do teatro. Cohen cita, constantemente, a arte minimalista, com suas fases e defasagens, com o uso de repetição que varia na sua diferença e que instaura planos meditativos.

Para os atores e performers, Cohen faz uso de diversos instrumentos, desde aqueles que foram transmitidos no âmbito da atividade artística, quanto daqueles que veem do ritual, como o caso do xamanismo. A performance, para Cohem, é tanto um campo sombrio e sinistro, carregado de ironia, quanto uma viagem de iniciação – daí suas constantes referências na obra do artista e performer Joseph Beuys. Uma iniciação que não se dá em moldes pré-estabelecidos, mas a partir das próprias mitologias pessoais dos performers no encontro com as forças que atravessam a sensibilidade contemporânea.

Renato Cohen fez vários espetáculos que fundiram na cena tais princípios e procedimentos: entre eles, a sua estreia nos anos 80 com Magrite, espelho vivo (1986), Sturm and Drang/Tempestade e Ímpeto; merecendo destaques, ainda, sua parceria com Peter Pál Pelbart e Sérgio Penna, junto com usuários do sistema de saúde mental, com Ueinzz, Viagem à Babel (1997)e posteriormente, Gothan SP (2001).

Tive a oportunidade de assistir a uma conferência e oficina de Renato Cohen, no Centro de Cultura Belo Horizonte, em 2001, no projeto Seminário. Perguntei, então, a Renato, como ele definia a dramaturgia (nessa visada que entendemos como sendo de um teatro pós-dramático), ele responde na velocidade de um raio:” é hipertexto, você entra num lugar e já cai em outro”. Porém, posso entender que ele não dizia simplesmente de uma alternância de paisagens, mas sim de uma coexistência não linear e não hierárquica das diversas imagens, que não têm a função de se explicar ou de se traduzir mutuamente.

O seu livro de estreia nos anos 80 (reeditado em 2004), Performance como linguagem, trouxe o campo da performance art, abrindo perspectivas sobre estética contemporânea e criação cênica. A sua pesquisa mais recente, interrompida pela sua morte, referia-se às relações entre performance e tecnologia na era da técnico-cultura. Working in progress na cena contemporânea, o seu último livro, é um caixa de ressonâncias e conexões com os pensamentos criativos e com os procedimentos das vanguardas históricas, perpassando informações preciosas e dicas muito interessantes.

Aqueles que se interessam pela criação intermídias e processual, bem como desejam adentrar nos caminhos do pós-teatro, encontrarão no livro de Renato Cohen, Working in progress na cena contemporânea, fontes de pesquisa e inspiração.

Obs. O texto, com exceção das imagens, foi publicado originalmente no Overmundo.

Referências: COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2004 _____________ Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. VIRILIO, Paul and LOTRINGER, Sylvère. The accident of art. MIT Press: Cambridge, Mass and London, England, 2005.