Revista Polêmica Imagem: o cinema de Ricardo Alves Júnior

Está no ar o caderno Imagem da revista Polêmica, publicada pela UERJ. Neste número, há um artigo meu: Anotações sobre a imagem-corpo nos curtas de Ricardo Júnior. Nele, abordo os dois vídeos premiados, Material Bruto e Convite para Jantar com o Camarada Stálin.

Imagem, corpo, duração, composição, são alguns dos temas tratados.

Imagem do curta-metragem Material Bruto, de Ricardo Alves Júnior.
Fotografia de Byron O´Neill

Cultura e artes do pós-humano

Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, de Lucia Santaella, pensa as tranformações socioculturais que surgem com a passagem da sociedade de massas para a sociedade digital.

O livro, de 356 páginas, discute os conceitos de cultura, a contribuição dos estudos semióticos para os estudos culturais, as mídias digitais, os substratos da cibercultura, as formas de socialização na cultura digital, as artes híbridas, as relações entre arte e tecnologia, o corpo humano em relação ao pós-humano, focando as artes do corpo cibernético, os corpos carnais e alternativos, apreentando, no capítulo final, a questão da arte depois da arte.

No Capítulo 8, intitulado O corpo cibernético e o advento do pós-humano, a autora afirma que a era da revolução digital “trará consequências para a constituição da vida social e formas de identidade cultural tão profundas quanto foram as da emergência da cultura urbana mercantil no fim do feudalismo.”

Uma das questões que emergem desse campo diz respeito às contribuições dos chilenos Humberto Maturama e Francisco Varella, após a publicação de Autopoiesis and Cognition: the realization of the living (1980), segundo Santaella. Andei encucado com a noção de autopoiesis que me apareceu em diversas leituras, sem poder ter lido, ainda, o livro. A autora explica o conceito a partir da importante influência que vai produzir no campo das transformações cibernéticas. Nesse aspeto, diz Santaella, a autopoiesis nesses autores refere-se ao pensamento de que o organismo ser um sistema fechado, que se produz a si mesmo.

Não temos mais aqui o paradigma de um organismo que entrará em contato com um mundo lá fora, diferente dele. Pelo contrário, tal mundo não seria separado do organismo, pois que nós “vemos apenas aquilo que nossa organização sistêmica permite ver.” Isso implica na sequinte mudança: o observador, na primeira onda cibernética era uma entitade separada do observado. Na segunda onda cibernética, diz Lucia Santaella, a autopoiesis mostra que um e outro não estão separados.

Tais questões mexem, em muito, com as noções de alternância entre criadores e público nos procedimentos de criação chamado por Renato Cohen de Working in progress. Por enquanto, apenas assinalo a pertinência dessa questão para as mudanças que estão ocorrendo na arte, inclusive na chamada web 2.0: os processo colaborativos etc.

Outra questão que me chamou a atenção diz respeito ao neologismo ciborg (de cibernético e organismo), uma invenção de Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, nos anos 60. Santaella apresenta uma concepção muito fecunda não só para a análise do tempo presente e suas transformações, mas também para os planos de criação corpórea e performance na qual arte e tecnologia se implicam mutuamente.

Mais do que a noção de um ciborg como homem-máquina, que tanto nos fascina, assusta ou em alguns gera repúdia, Santaella apresenta o Manifesto Ciborg da feminista socialista e historiadora Donna Haraway, realiazado em 1985. Trata-se de uma corporeidade que está em vias de “desestabilizar o poder patriarcal e romper com todos os dualismos hierárquicos que estruturam o eu ocidental”.

Faço aqui uma conexão com uma passagem de outra obra, o livro The Eletronical disturbance ( no Brasil, publicado pela Conrad como Distúrbio eletrônico – Critical arte ensemble. Uma performer anda com os seios de fora na cidade e a polícia pretende prendê-la. Mas ela diz que é homem e que estes, quando andam sem camisa, não são presos. Os policiais dizem que ela é uma mulher e ela retruca que não. Eles pedem seu documento de identidade, que a apresenta como homem, pois como um hacker, ela se introduziu nos sistema de codificação e o alterou. A polícia fica perplexa e não sabe o que fazer, pois ela está codificada como homem e no entanto tem todos os atributos de uma mulher.

Outra conexão, possível, entre outras, é ver os performers voltados à criação corpórea como ciborgs. Aliás, Lucia Santaella lembra a partir de Donna Haraway, que todos nós somos ciborgs. Estamos adentrando num campo de ambiguidade total. Há conexões, ainda, com a performer e rockeira Malu Aires, que adentra nos espaços ambíguos. A menina má e doce expõe na sua voz numa zona em que que proliferam seres e afecções. A guitarra, o microfone, as vocalizações, tudo isso é uma mistura de máquina e corpo. Mas, ela vai além disso e sua boca assume cavernas e luzes que jorram e outras coisas mais. Anotem aí: essa ciborg vai chegar junto nas paradas!

Fico por aqui, voltando-me à leitura do livro de Lucia Santaella:

“Ao transgredir as fronteiras que separavam o natural do artificial, o orgânico do inorgânico, o ciborg, por sua própria natureza, questiona os dualismos, evidenciando que não há mais natureza nem corpo, pelo menos no sentido que o iluminismo lhes deu. O manifesto de Haraway despertou muitas controvérsias porque ele não só denuncia a concepção ocidental de mundo, mas também o próprio feminismo, quando, mantendo-se no universo dos dualismos forjados, este glorifica o lado dos atributos do feminino nas equações opositivas entre masculino e feminino”.


Referências:


SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Arte interativa e cibercultura