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Um ativismo performático e teorético

Teoria é teoria e prática é prática. Correto? Nada disso, estas duas categorias já não se distinguem mais assim. No projeto Les Laboratoires D’Aubervilliers (França) pelo menos, esses dois planos se atravessam.  Les Laboratoires é uma residência artística voltada para a pesquisa e a experimentação, numa perspectiva que conecta corporalidade, cena contemporânea, pensamento crítico e criativo,  performance e dança.

Les Laboratoires desenvolvem projetos de pesquisa em residência, na França, nos arredores de Paris, numa localidade intitulada D’Aubervilliers. Um dos projetos acolhidos pelos Laboratoires é de um grupo de pesquisa teórica e artística, de Belgrado, que  realiza ações no campo da ” performance contemporãnea, através da produção de textos, autogestão, educação crítica e engajamento através da prática cultural” . O grupo intitula-se (na vesão em inglês): Walking Theory. E o projeto desenvolvido tem por nome How to do things by theory – a platform for performing theoretical activism – 2010/2012. Há uma clara alusão à obra do filósofo analítico Austim, How to do things with words, um dos textos fundamentais sobre a questão das relações entre linguagem e performatividade.

No caderno impresso dos Laboratoires, o grupo define a tarefa do seguinte modo:

“O projeto é concebido como uma iniciativa a longo prazo, cujo objetivo é a o incremento de potência das artes cênicas contemporâneas através da autoreflexão crítica, auto-organização e meios alternativos de produção e compartilhamento do conhecimento.

Opera conectando localmente (Paris) artistas teóricos independentes e ativistas comunitários que arriscam suas iquietações, aberturas e habilidades visando sua auto-transformação, numa base comum de objetivos e fins.”

Segundo o grupo, trata-se de uma extensão do ativismo teórico, que se originou da cena independente e da performance em Belgrado, propondo-se a sair do que chamam de “theory-phobic” para uma prática “pró-theoretical “.

E ainda afirmam neste texto introdutório que a missão de um ativismo teorético-performático não é o de resolver os problemas sociais, eles não têm essa pretensão. O que eles querem é produzir movimentos no meio das artes cênicas contemporâneas e performáticas, no seu território (o local), de modo a provocar uma atenção aberta para os contextos sociais, as condições de produção, repensando suas próprias posições, espaços, práticas e discursos. O grupo parte da idéia de “dissenso“, trabalhada pelo filósofo Jacques Rancière.

Estamos nos movendo, então, num contexto que possui ressonâncias e convergências com a idéia de performatividade da cultural,  como vem sendo apontada, por exemplo, por George Yudice. Uma idéia que vem sendo discutida em vários âmbitos e que tem ganhado cada vez mais força. A performance, no caso, não é um mero instrumento para se atingir fins extrínsecos, mas uma prática incorporada, que impõe desde já uma visada diversa para a prática teórica. O que me lembra nossa tentativa, quando no exercício da ação Arte Expandida, nos Teatros Municipais de Belo Horizonte, de trabalhar a teoria numa visada performática: a ação intitulada “Pensamento Disparado”. Dentro do Projeto Improvisões, idealizado por mim e Marcelo Kraiser, havia um momento dedicado a uma performance teórica. Foram momentos muito interessantes e provocadores, que poderiam ter um desenvolvimento posterior. Infelizmente, nem sempre em políticas públicas gestadas por governos a continuidade (transformativa) é levada em conta.  E tampouco há avaliações consistentes, que possam redirecionar ações e projetos realizados. E falamos isso sem lamúrias, sabendo ser este o preço que pagamos de antemão pelas audácias cometidas, principalmente quando o contexto é marcado pela falta de visão.

As linhas do programa desse “ativismo teórico performático” dos Laboratoires contemplam: Re-Halucinating Contexts (Paris) e De-Schooling. A primeira está aberta, inclusive, para a participação de pessoas que desejam dialogar com o projeto. Para se informar sobre isso, você pode enviar um email para v.bobin@leslaboratoires.org informando sobre seus projetos e idéias. A segunda linha envolve a produção de leituras coletivas, numa extensão dos Halucinating Contexts. E para mais informações pode conferir o weblog do projeto: deschooling.classroom.

Fabrícia Martins, pesquisadora em dança e performance, radicada agora em Paris, vem sempre me enviando textos e notícias sobre esse projeto, da qual é também residente. Fiz uma postagem sobre o assunto intitulada de Uma carta de Fabrícia: Les Laboratoires. Aliás, as cartas, sempre escritas à mão, é que são delicadas preciosidades.

Mais referências:

Site do Projeto Laboratoires  D’Aubervilliers

How To Do Things by Theory –

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

4 respostas em “Um ativismo performático e teorético”

boa coisa essa, mano.
Um tempo atrás – fins de 1980 fins de 1990 – tinha-se horror do texto e da teoria no teatro. Era decorrência do envelhecimento de uma época. A direita exultou em face do alijamento da reflexão. A esquerda perdida em velhos discursos soviéticos viu-se em alívio. Mas o vivente humano é bicho pensante e artístico a história teima em não acabar. Ao discurso palavroso, sucede a palavra inquientante. A palavra que, em si, é ação e tenta se conectar com as ações no mundo, agir sobre estas. É movimento rasteiro ainda, mas que sinto germinar entre jovens artistas. O pêndulo em espiral começa a reverter seu movimento.
Abraço, mano

Walmir,

Dicotomias são funcionais e configuram existências: ou isto, ou aquilo. Porém, arte e pensamento podem surpreender e driblar tais categorias: isto e aquilo.

Tem essa história, como você disse: em determinado momento, o texto deixa, nas encenações contemporâneas, de ter o mesmo lugar que ocupava, por exemplo, num teatro dramático. Há uma mudança que não pode ser creditada somente à moda, à novidade. A palavra também excluiu, em certos contextos, a loucura, o corpo como fenômeno de borda, tornando-se presa do discurso. Surge, paralelamente, uma poética da voz: uma performatividade vocal. E da palavra também. Afinal, se concordamos com Zunthor, a própria leitura é performance. Performance como “ato de presença no mundo e em si mesma”.

Ocorre essa contaminação de linguagens: artes plásticas, sonoridades… Mas, em muitos artistas da cena, a palavra está cada vez mais presente. Lehmann diria, não mais a cena derivada do texto literário, mas o texto literário como parte da cenografia… Sem a hierarquias…

Fizemos belas parcerias de criação baseadas em texto. Um deles, Um sobrado em Santa Teresa, peça de sua autoria, foi uma coisa preciosa. Mesmo tendo feito a opção por imagem e corporalidade, acredito que a palavra, esta palavra inquietante como diz você, continua a nos desafiar. Eu mesmo me pergunto, a cada momento, sobre isso.

E tem outra coisa, acredito: uma característica da arte contemporânea é que a convivência de planos heterogêneos. Teatro de texto e teatro de imagens não se opõem. Está aí o Teatro da Vertigem, o Espanca e muitos outros para comprovar isso. As dicotomias não funcionam mais aqui, não é?

Bom, neste post trata-se mais da questão da teoria e de sua relação com a performance, não é? O que me toca muito nesse projeto é antes o empoderamento da sociedade civil, de grupos que adquirem autonomia. E também, é claro, essa visão performática da teoria.

Abraços

Garrocho,
Eu penso que o vivente humano é, desde sempre um apreciador de estórias. Assim ele construiu toda a civilização. Toda tecnologia, todo conhecimento é estória. Invenção que um cabra contou pra outro. E cada tempo tem seu modo de contá-las, de forma a interessar o apreciador. Quando Lehman escreveu sobre o pós dramático, falou sobre um modo de contar estórias que ele considerou diferente dos modos anteriores. Aí pegou uma carona com o Grotowski, que se inspirou em Artaud, pela definição de performance (“É possível entender o teatro pós-dramático como uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma experiência do real – tempo, espaço, corpo – que visa ser imediata: teatro conceitual. A imediatidade de toda e uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da arte performática.”), botou um pé em Brecht – ele se diz pós brechtiano – pegou uns velhos conselhos do Stanislavski (ator tem que tocar algum instrumento, dançar, fazer ginástica, pr ex) e formulou. Parece-me que ele fez um apanhado do que veio antes e que prevaleceu. Formulou em relação ao espetáculo do mesmo modo que Barba formulou em relação à arte de atuar. E beberam nas mesmas fontes.
Lehman fundou-se bem em B.Brecht que já tinha uma posição mais crítica em relação ao que chamava de alienação propiciada pelo dramático.
Ele buscava, talvez e usando suas palavras, “um empoderamento da sociedade civil”. Era seu discurso prático pra deslindar a confusão nazista.
Garrocho, eu acho que os artistas de teatro sempre foram dramáticos e não dramáticos. Por quê? Assim: O que eu quero como artista (e que, imagino, os artistas de cada época quiseram) é depor com honestidade e poesia cênica sobre a minha época. Quando atuo não me deixo ser possuído pela personagem e perco a identidade. Estou na estória realizando a narrativa dramática, estou influenciando o espectador fisicamente e estou fora dela tomando conta e regendo. E antes, eu influenciei na construção dela. Há o âmbito do dramático, o âmbito da performance e o âmbito do espetáculo (que são camadas artísticas em edição cênica.). Da mesma forma, em relação à performance, nenhum ator fica só nela, pois não existe um estado onde a espontaneidade pura prevaleça, o cabra sabe que está “representando”.
Não vi nenhum espetáculo que fosse só dramático. Nunca vi isto na minha vida toda. Como nunca vi nenhuma performance onde o artista estivesse somente nela. Penso que foram ênfases dadas à cena para enfrentar uma época. Modos de contar estórias, às vezes muito mais presentes na avaliação crítica do que no palco. Eram mais leituras que se faziam. Dizia-se: é só discurso oco, e não era. Dizia-se: são amebas enlouquecidas, e não eram. Hoje, penso que murcham as querelas entre os sistemas mandatórios do discurso palavroso e do discurso performático. E a teoria como reflexão que pode incluir-se no espetáculo e incluir o público abre alguns caminhos.
De outro lado, e talvez em algum momento decorrente do ritualismo que a ênfase na performance propicia, o teatro está se recolhendo, abrindo mão do grande público, restringindo-se a pequenos enclaves, voltando-se para um ritual familiar e elitista contrário ao princípio de empoderamento, que tanto significa emancipação pessoal quanto consciência social para superação de dependências. Mas isto já é outro aspecto da história, agora com agá, com muito pano pra manga.
Abraço

Caro Walmir,

Belo texto. Muito interessante esse modo de ver o ato de contar história como algo que nos diz respeito como seres humanos. Algo que seria intrínseco. Lembra-me Gregory Bateson, um pensador e pesquisador das relações mente e cultura. Ele dizia que o padrão da vida está nas relações e não na lógica. E as histórias, dizia ele, são relações. Não importam tanto os personagens, os objetos, ou a trama, mas as relações entre os elementos. Não somente em termos de história contada de um para outro, mas de uma narrativa, acho.

E há muitas narrativas e modos diversos. Lyotard discutia isso: as grandes e pequenas narrativas. Desconfiava das grandes, das idéias de uma síntese de mundo, de uma necessidade de fundamentação etc.

Volto a Paul Zunthor. Ele defende que não se trata mais de oralidade e nem mesmo de literatura, no sentido apenas visual. Ele fala de performance, de poesia sonora e vocal. Da recuperação da voz, de seu resgate, de sua volta sobre o código da escrita. E defende a performance nesse aspecto: até mesmo uma leitura é uma performance. Então, não é somente o enunciado verbal, mas toda a situação, o acontecimento. Acredito que temos uma pista aí: a performance é uma narrativa. E ultrapassando a dimensão de linguagem, de performance art (vinda do Happening, dos futuristas e dadaístas), diria, para fazer coro com os performance studies (Schechner), ela tem a ver com a dimensão humana, antropológica. Torna a questão muito ampla, mas não deixa de ter pertinência.

Entramos no plano das artes cênicas. Você faz uma síntese da análise de Lehmann sobre o que ele chama de pós-dramático. Lembremos, apenas, que Josette Féral prefere o termo teatro performativo, justamente para dizer de um teatro abalado, contaminado, modificado, que seja, pela performance art. E para dizer afirmativamente: não um teatro pós, mas um teatro que tem traços de performatividade. Quanto à visão de Lehmann, ele teoriza e não prescreve – aliás, é o que ele sempre afirma. Ele diz que procura dar conta das transformações operadas na cena contemporânea. Há muito o que se ver sobre essa análise de Lehamann. Merece todo um tratamento. Aliás, há um livro interessante, da Perspectiva: Pós-dramático: um conceito operativo? – que procura discutir essa contribuição.

Há outras análises, que apontam para outros universos: Renato Cohen e o procedimento working in progress, Kirby e as relações entre performance matriciada e não matriciada…

Quanto ao pós-dramático, há quem diga que o teatro nunca foi dramático, que este somente dominou trezentos anos de história no ocidente. No entanto, acho que Lehmann mostra uma mudança histórica sim. Que tem a ver com as respostas que alguns artistas procuram dar ao seu tempo. A performance art, acredito, tem a ver com isso, mesmo que já tenha se tornado quase um gênero…

Tem essa visão preconceituosa, como você lembra, a respeito dessas criações. Ainda hoje alguns artistas se prestam a gastar seu tempo e consumir seus afetos nesse tipo de coisa. Ficam, por exemplo, criticando toda arte pós-Duchamp e não se satisfazem nunca em dizer isso. De minha parte, não entro nessas discussões. Até porque, se o fizer, estarei entrando no campo de afetos dessas pessoas. Discutir com Ferreira Gullar que a arte é transmutação do real e que ela, hoje, está s se perdendo por incluir o real? Ñão acredito nesses debates… Quando entro, estou sublinhando os pressupostos deles…

Acho que a definição de “teatro dramático” não passa pela questão da identificação. Ou pelo menos, não me parece ser essa a questão central. Trata-se ruptura entre o vínculo teatro e drama (para Lehmann), onde não há mais, também, o vínculo intrínseco entre lugar, ação e personagem. Mas concordo plenamente com você: talvez o teatro seja muito menos dramático e mais performativo do que a gente pensa. Inclusive os dramas realistas. Mas o problema reside, então, no fato de que isso, nesses teatros (dramáticos), essa consciência (performativa) não seja explorada e levada às últimas consequências. Há uma hierarquia do texto literário sobre o texto da encenação de, também, sobre o texto da performance.

Mas, então, é sempre bom lembrar: não um teatro melhor que o outro, mas como você disse, um outro modo de narrar… E por isso, digo que é necessário sair das dicotomias. Interessante é a mistura impura, o convívio simultâneo…

Por fim, você fala de outro assunto, mais polêmico ainda: o lugar do teatro na sociedade. Não consigo ver que a performance estaria levando a essa visão “familiar e elitista” de que você fala, se compreendi bem. Ainda não sei o que isso signifca: “abrir mão do grande público”. Eventos de massa? O que significa isso, não sei. Não acredito que teatros pequenos sejam eventos elitistas e nem acredito, também, no contrário. Acho que não dá para prescrever. Dá para experimentar, arriscar. Estamos num mundo muito complexo. Entre o imenso e o ínfimo passam banalidades e coisas muito boas. Ninguém sabe como um corpo pode ser afetado e o que pode modificá-lo. Não há regras gerais. Nesse ponto, volto com Lyotard: sem as grandes narrativas. Mas um jovem entra em campo na Copa do Mundo, a polícia o persegue, quando vê que todos olham para ele, levanta a camisa onde está escrito no corpo: “No War”. Isso foi visto no mundo todo.

Há toda uma crítica à espetacularização de massa nos teatros pequenos, nos processos de arte à deriva. São outros afetos, outros modos de ser… Não são mais grandes narrativas que contam, acho. Talvez as pequenas.

Negri e Hardt já não acreditam em “massa”, mas em “multidão”, e ela é necessariamente fragmentada e conectiva e não dirigida ou diretiva. Não há consciência de classe. Mas, aí, entra toda essa questão do marxismo e, como você mesmo diz, “pano pra manga”.

Estou no meio do meu tempo e ao mesmo tempo tentando me desvencilhar das suas luzes que cegam.

Agradeço pela visita mais demorada e de contribuições tão pertinentes e críticas.

Um grande abraço

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