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Stand by me: um vigilante de carros canta na rua

Vez por outra sou pego por alguém cantando sozinho, pelas ruas de Belo Horizonte. São pessoas pobres, deambulando por aí. E fico com aquela sensação de presenciar algo singular, que não poderei mais rever e tampouco partilhar com as pessoas. Sonoridades inclassificáveis. Algo como o sonho de um cego que é mudo, como diz o Zen.

Até que, domingo de manhã, fui comprar verduras com o meu filho pequeno e o seu amigo. Numa esquina do bairro onde moro, deparo-me com Paulo, um vigilante de carros, cantando sozinho, em meio às pessoas que transitam. Não cantava para ninguém. Apenas se encantava, tomado pelo arrebatamento dionisíaco, a que tem direito “um nababo na Babilônia” (para lembrar de uma letra de Jorge Mautner).

Já tinha visto Paulo pelas ruas do bairro, tomando conta de carros, as vezes falando sozinho, outras vezes em discursos dirigidos a uma ou outra pessoa. Mas nunca o vi cantar.  E fiquei encantado.  Os meninos, que nem sempre convivem com esses personagens, puderam presenciar um acontecimento. Mas o que me surpreendeu mesmo foi que Paulo cantou Stand by Me. A mesma música cantada pelos músicos de rua do projeto Playing for Change – song around the world (veja uma postagem que fiz sobre o projeto, aqui). Coincidência maravilhosa, não?

Mas eu só tinha um celular. Então, perguntei eu poderia gravar. Ele cantou Hei Jude. Vi que o lance era gravar sua imagem também. Fiz mais um pedido e ele curtiu muito. Claro que tudo muda: não há mais o cara sozinho, cantando no meio dos transeuntes daquele domingo de manhã. Mesmo assim, você pode notar como Paulo curtiu o momento. A gravação foi rápida, Paulo saiu rindo, deixando o seu recado… E ainda há quem acredite que pessoas anônimas e pobres não têm cultura. No máximo, classificam tais expressões num sentido “folclórico”, burlesco etc.

O que explode na superfície da pele não é o fato de um vigilante de carros cantar Stand by Me. Isso ainda fica por conta das explicações que nos damos quando somos afrontados por algo singular. O que me toca é poder sentir, na expressão de um ser humano meio sem lugar (ele tem uma função fixa que faz variar o tempo todo, já que inventa um jeito de corpo, um modo de ser), com uma voz maravilhosa e um mundo que se abre quando canta. Um fresta, uma festa e um baile para os sentidos.

Um signo-corpo desvencilhando-se dos regimes de funcionalidade, vivendo fenômenos de borda. E digo mais: a arte, vista sob a perspectiva do ofício e da maestria, quer chegar aí. São estados corporais emitindo sonoridades outras, que aproriam-se de produtos-signos da arte já difundidos (a canção Stand by Me), fazendo-os passar por forças estranhas ao meio, mesmo que seja uma rememoração. Ainda assim, empunham épicos fragmentados e deslocados de sua origem. E a canção, que num corpo não treinado artisticamente poderia ser tão somente uma falha, ressoa com um novo sopro de vida, reproduzindo-se livre das junções previstas.

O acontecimento passou. A imagem é um registro apenas. No entanto, multiplica outras tantas potências que possam se deixar perder pelas ruas e outros olhares flutuantes. Na deriva dos sentidos, a iluminação vagabunda e profana.

E ali, uma vida pulsando nas ruas, no meio de um cotidiano prosaico e mais besta.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

8 respostas em “Stand by me: um vigilante de carros canta na rua”

Post maravilhoso, Garrocho! Que coincidência louquíssimia!
Aqui no meu bairro tenho visto um camarada, que vive nas ruas, cantando marchinhas de carnaval e Gilberto Gil. Algumas pessoas dizem que ele foi professor de história e que algo teria acontecido com seu filho e então foi parar nas ruas.

Forte abraço,

Davi

São histórias, não é Davi?

Mas também são linhas a-históricas. Isto é, não descritivas. Para nossa investigação desterritorializante, talvez seja interessante perceber que linhas (Deleuze) estão sendo desfiadas, tecidas e entretecidas ali. Que tecidos estão sendo compostos? Feitos com linhas segmentadas (“ele foi um professor de história”), linhas flutuantes (já não conseguimos mais discernir aquele que ele um dia foi) e linhas de fuga (já não sabemos mais nada e tudo foge). Esses indivíduos tecem tais linhas e transformam, nessas últimas, sua própria experiência subjetiva. Pode ser terrível ou doloroso, sublime ou poético… Talvez tudo isso junto. E, então, já não se explica mais, não se justifica. Não temos mais recognição.

Abraços

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Ah, os cantantes, como me encantam!

Há mesmo um sem número de cantantes por aí.

No elevador de um prédio do centro do Rio, há uns dois quarteirões/quadras da Confeitaria Colombo, no coração antigo da cidade maravilhosa, fica um dos escritórios da empresa na qual trabalho. Vou ao Rio com alguma frequência e como a sala de trabalho fica no 34º andar do prédio vou do térreo até lá, um pouco acima das nuvens, escutando um bom som, trechos de samba cantados pelo ascensorista do elevador. Um senhor de cabelos grisalhos, cabeça baixa, um raro olhar tímido ao redor, não cumprimenta as pessoas com um “Olá!”, ou “Bom dia!”, mas sim com um trecho de samba dos bons, sempre com sua voz rouca e cheia de malandragem. Ele canta o dia inteiro. Já tentei gravar seus cânticos. Certa vez lhe perguntei se ele não se importava em ser gravado. Ele me olhou com uma cara de poucos amigos e eu desisti.

Fica aqui o registro. Belíssimo post. É muito importante escrever sobre temas como este. Acontecimentos de uma raridade incrível e ao mesmo tempo em que ocorrem com uma frequencia grande quase sempre sem serem notados.

Abraços.

Vivemos num país sonoro e musical, não é Rogério? Pessoas que assobiam… Outras que nos cumprimentam assim, como esse ascensorista que você cita. Outras que vivem a solidão habitada por sons que seus corpos emitem e repercutem.

Poetas do cotidiano.

Abraços

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Ei, Michelle

E o nosso cantor de rua, não é mesmo iluminado?

Volte sempre.

Abraços

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