Cultura e artes do pós-humano

Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, de Lucia Santaella, pensa as tranformações socioculturais que surgem com a passagem da sociedade de massas para a sociedade digital.

O livro, de 356 páginas, discute os conceitos de cultura, a contribuição dos estudos semióticos para os estudos culturais, as mídias digitais, os substratos da cibercultura, as formas de socialização na cultura digital, as artes híbridas, as relações entre arte e tecnologia, o corpo humano em relação ao pós-humano, focando as artes do corpo cibernético, os corpos carnais e alternativos, apreentando, no capítulo final, a questão da arte depois da arte.

No Capítulo 8, intitulado O corpo cibernético e o advento do pós-humano, a autora afirma que a era da revolução digital “trará consequências para a constituição da vida social e formas de identidade cultural tão profundas quanto foram as da emergência da cultura urbana mercantil no fim do feudalismo.”

Uma das questões que emergem desse campo diz respeito às contribuições dos chilenos Humberto Maturama e Francisco Varella, após a publicação de Autopoiesis and Cognition: the realization of the living (1980), segundo Santaella. Andei encucado com a noção de autopoiesis que me apareceu em diversas leituras, sem poder ter lido, ainda, o livro. A autora explica o conceito a partir da importante influência que vai produzir no campo das transformações cibernéticas. Nesse aspeto, diz Santaella, a autopoiesis nesses autores refere-se ao pensamento de que o organismo ser um sistema fechado, que se produz a si mesmo.

Não temos mais aqui o paradigma de um organismo que entrará em contato com um mundo lá fora, diferente dele. Pelo contrário, tal mundo não seria separado do organismo, pois que nós “vemos apenas aquilo que nossa organização sistêmica permite ver.” Isso implica na sequinte mudança: o observador, na primeira onda cibernética era uma entitade separada do observado. Na segunda onda cibernética, diz Lucia Santaella, a autopoiesis mostra que um e outro não estão separados.

Tais questões mexem, em muito, com as noções de alternância entre criadores e público nos procedimentos de criação chamado por Renato Cohen de Working in progress. Por enquanto, apenas assinalo a pertinência dessa questão para as mudanças que estão ocorrendo na arte, inclusive na chamada web 2.0: os processo colaborativos etc.

Outra questão que me chamou a atenção diz respeito ao neologismo ciborg (de cibernético e organismo), uma invenção de Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, nos anos 60. Santaella apresenta uma concepção muito fecunda não só para a análise do tempo presente e suas transformações, mas também para os planos de criação corpórea e performance na qual arte e tecnologia se implicam mutuamente.

Mais do que a noção de um ciborg como homem-máquina, que tanto nos fascina, assusta ou em alguns gera repúdia, Santaella apresenta o Manifesto Ciborg da feminista socialista e historiadora Donna Haraway, realiazado em 1985. Trata-se de uma corporeidade que está em vias de “desestabilizar o poder patriarcal e romper com todos os dualismos hierárquicos que estruturam o eu ocidental”.

Faço aqui uma conexão com uma passagem de outra obra, o livro The Eletronical disturbance ( no Brasil, publicado pela Conrad como Distúrbio eletrônico – Critical arte ensemble. Uma performer anda com os seios de fora na cidade e a polícia pretende prendê-la. Mas ela diz que é homem e que estes, quando andam sem camisa, não são presos. Os policiais dizem que ela é uma mulher e ela retruca que não. Eles pedem seu documento de identidade, que a apresenta como homem, pois como um hacker, ela se introduziu nos sistema de codificação e o alterou. A polícia fica perplexa e não sabe o que fazer, pois ela está codificada como homem e no entanto tem todos os atributos de uma mulher.

Outra conexão, possível, entre outras, é ver os performers voltados à criação corpórea como ciborgs. Aliás, Lucia Santaella lembra a partir de Donna Haraway, que todos nós somos ciborgs. Estamos adentrando num campo de ambiguidade total. Há conexões, ainda, com a performer e rockeira Malu Aires, que adentra nos espaços ambíguos. A menina má e doce expõe na sua voz numa zona em que que proliferam seres e afecções. A guitarra, o microfone, as vocalizações, tudo isso é uma mistura de máquina e corpo. Mas, ela vai além disso e sua boca assume cavernas e luzes que jorram e outras coisas mais. Anotem aí: essa ciborg vai chegar junto nas paradas!

Fico por aqui, voltando-me à leitura do livro de Lucia Santaella:

“Ao transgredir as fronteiras que separavam o natural do artificial, o orgânico do inorgânico, o ciborg, por sua própria natureza, questiona os dualismos, evidenciando que não há mais natureza nem corpo, pelo menos no sentido que o iluminismo lhes deu. O manifesto de Haraway despertou muitas controvérsias porque ele não só denuncia a concepção ocidental de mundo, mas também o próprio feminismo, quando, mantendo-se no universo dos dualismos forjados, este glorifica o lado dos atributos do feminino nas equações opositivas entre masculino e feminino”.


Referências:


SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Arte interativa e cibercultura

Performance e Tecnologia

arte de Rico Mate para a edição de 2006 de improvisões

O Centro Cultural da UFMG produziu um seminário sobre performance e tecnologia. Fui convidado pela diretora do espaço, a artista e pesquisadora de teatro, Rita Gusmão (UFMG), a falar sobre o projeto Improvisões – criação cênica em processo, que faz parte da Ação Arte Expandida dos Teatros da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. ██ Bia Medeiros, pesquisadora e integrante do grupo Corpos Informáticos da UnB, falou sobre Bernard Stiegler, filósofo que dirige o Centro de Arte e de Cultura Georges Pompidou e vem desenvolvendo um pensamento criativo e inovador sobre arte e cultura. Sitiegler foi preso aos 26 anos por assalto à mão armada, ficando 05 anos detido. Nesse tempo dedicou-se a estudar e formou-se como doutor em filosofia. ██ No livro Bernard Stiegler – reflexões (não) contemporâneas, do qual Bia Medeiros é organizadora e tradutora, encontramos trechos de um pensamento radical. O autor realiza uma crítica da sociedade que ele denomina de hiperindustrial, cujo objetivo é “formar os comportamentos no sentido dos interesses do consumo”. ██ Stiegler busca na arte meios de resistência e afirmatividade, invocando “singularidades inconsumíveis, não-contemporâneas e intempestivas”. O texto direto e contundente de Stiegler coloca à nossa disposição uma máquina pensante para enfrentar a cooptação de nossos tempos, o conformismo e a mercantilização da arte e da cultura, tomadas como a última nota a ser mastigada sem dó. ██ Bia Medeiros lançou também o livro Aisthesis – estética, educação e comunidades, com prefácio de Lúcia Santaella. Bia começa seu livro sugerindo: “leiam os textos filosóficos como poesia”. ██ Na mesma mesa, Mabe Bethônico, da Escola de Belas Artes da UFMG, falou sobre o projeto da web museumuseu, discutindo essa ferramenta e uma nova concepção do espaço/conceito de museu. ██ Sobre Improvisões, apresentei em linhas ágeis a sua idéia: um projeto que dispõe recursos e abre espaços para que artistas das mídias da imagem, do corpo e do som possam estabelecer um diálogo não hierárquico, ao vivo, diante do público. O projeto tem a co-idealização de Marcelo Kraiser (UFMG/Escola de Belas Artes), contando com as consultorias de André Lages, Eduardo de Jesus e Vera Casanova, além do próprio Marcelo. Ao lado das performances de improvisação intermídias, ocorrem as performances/conferências, chamadas de Pensamento disparado. O projeto ocorre no Teatro Marília, em novembro, e já está na sua 3ª edição. Será publicado um edital para seleção dos artistas, detalhando verba, condições técnicas etc. Um projeto para singularidades inconsumíveis! ██ Aproveitando, ainda, a presença de Fernando Mencarelii na audiência, apresentei também em linhas bem rápidas o projeto Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas, do qual ele, juntamente com Nina Caetano, formam a curadoria. ██ Na noite seguinte, Marianna Monteiro, da UnB, situou uma discussão sobre performance e tecnologia. O debate estendeu-se pela audiência, abrindo brechas para repensar a indústria espetacular e as alternativas que driblam as formatações prévias do mercado. Surpresa para mim foi conversar com Marianna e relembrar o grupo Ananke, que surgiu no meio do Oficina do Zé Celso, nos anos 70, liderado por Joel. Eles encenavam As Criadas, de Genet, numa visada que misturava sadomasoquismo, militarismo e macumba. O ponto cantado do grupo era um grito de guerra: a casa da patroa vai cair! Por onde andavam, levavam às últimas conseqüências esse propósito. Não são coisas de um passado, mas forças que atravessam um tempo não linear. E a noite de Belo Horizonte seguiu esfriando com suas sombras e luzes. ██

Livros lançados no Seminário:

MEDEIROS, Maria Beatriz de (orga. e trad.). Bernardo Stiegler – reflexões (não)contemporâneas. Chapecó: Argos, 2007
_____________________. Aisthesis – estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005.

MEDEIROS, Beatriz; MONTEIRO, Marianna; MATSUMOTO, Roberta. Tempo e performance. Brasília: Editora de Pós-Gradução em Arte da Universidade de Brasília, 2007.