Categorias
Artes Cênicas Geral

Uma conexão Londres-Belo Horizonte: Teatro Físico e Dança Contemporânea

Tiago Gambogi e Margaret Swallow, da Cia f.a.b. – The Detonators , ele brasileiro e ela inglesa, são dois artistas que vêm realizando uma criação cênica processual que perpassa tanto os planos de um teatro físico quanto os da dança contemporânea. Os dois realizaram recentemente Made in Brasil (imagem ao lado), com direção de Nigel Charnock , um dos fundadores do grupo de Teatro Físico, DV-8, com cenas criadas em Belo Horizonte e Londres. A estreia ocorreu no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, em maio de 2005. Made in Brasil é um espetáculo no qual a imagem projetada (vídeo), a sonoridade (vocal e gravada), a ação e o movimento perpassam seus planos heterogêneos. Tiago me contou, numa entrevista realizada em 2005, que Nigel Charnok, ao ser convidado para dirigir o espetáculo, considerava o tema “Brasil” muito amplo, que era preciso partir de algo mais concreto. E o que tinha em mãos era uma dupla de artistas que vivem e criam juntos. Mas não versa a composição cênica sobre um possível “drama” de um casal, mas sobre uma carta que é rabiscada e redesenhada diversas versas. Há traços intensivos sobre o Brasil, como o vídeo mostrando uma paisagem contínua de paredes pichadas e som de cães latindo enquanto um casal realizada uma coreografia de contato físico sobre um monte de jornais. Ou em outros momentos, em que a realidade macabra da violência é desenhada cenicamente. Mas, o tempo todo, o espetáculo joga com a relação de continuidade e descontinuidade. Quando o significado vai se configurar numa identificação emocional, numa significação (fechamento do sistema), Nigel joga com o distanciamento, utiliza elementos de clown, interrompe para entrar com outro plano midiático (som, imagem etc.). O espetáculo flui, assim, entre performance, simulação, jogo, fantasia, projeção de imagens etc.

Tiago está com um novo espetáculo, agora de sua direção, trabalhando com outros performadores, no Bath Dance, intitulado ID, na qual aborda os instintos primais e os impulsos na busca da identidade. Ele continua seu caminho, num espaço entre dança e teatro: no qual o corpo é experimentado a partir de suas qualidades energéticas, como ele fez questão de frisar na entrevista realizada.


O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959 – 1969


Está na rua o livro com textos de Jerzy Grotowski referentes ao período de 1959- 1969, que cobrem justamente o Teatro Laboratório, na Polônia.

Há coisas muito interessantes, como uma revisão do livro Em busca de um teatro pobre, que ainda faz as nossas cabeças. Há carência de material publicado em português sobre Grotowski, principalmente dos textos originais, escritos por ele. O estudo é cuidadoso, feito por Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli para a Fondazione Pontedera Teatro.

Os textos de Grotowski falam da necessidades de um teatro que toque a vida através de uma linha sóbria e exigente. E isso é muito.

Referência:

O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959 – 1969. Textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba. Curadoria de Ludwik e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007.

Performance e Tecnologia

arte de Rico Mate para a edição de 2006 de improvisões

O Centro Cultural da UFMG produziu um seminário sobre performance e tecnologia. Fui convidado pela diretora do espaço, a artista e pesquisadora de teatro, Rita Gusmão (UFMG), a falar sobre o projeto Improvisões – criação cênica em processo, que faz parte da Ação Arte Expandida dos Teatros da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. ██ Bia Medeiros, pesquisadora e integrante do grupo Corpos Informáticos da UnB, falou sobre Bernard Stiegler, filósofo que dirige o Centro de Arte e de Cultura Georges Pompidou e vem desenvolvendo um pensamento criativo e inovador sobre arte e cultura. Sitiegler foi preso aos 26 anos por assalto à mão armada, ficando 05 anos detido. Nesse tempo dedicou-se a estudar e formou-se como doutor em filosofia. ██ No livro Bernard Stiegler – reflexões (não) contemporâneas, do qual Bia Medeiros é organizadora e tradutora, encontramos trechos de um pensamento radical. O autor realiza uma crítica da sociedade que ele denomina de hiperindustrial, cujo objetivo é “formar os comportamentos no sentido dos interesses do consumo”. ██ Stiegler busca na arte meios de resistência e afirmatividade, invocando “singularidades inconsumíveis, não-contemporâneas e intempestivas”. O texto direto e contundente de Stiegler coloca à nossa disposição uma máquina pensante para enfrentar a cooptação de nossos tempos, o conformismo e a mercantilização da arte e da cultura, tomadas como a última nota a ser mastigada sem dó. ██ Bia Medeiros lançou também o livro Aisthesis – estética, educação e comunidades, com prefácio de Lúcia Santaella. Bia começa seu livro sugerindo: “leiam os textos filosóficos como poesia”. ██ Na mesma mesa, Mabe Bethônico, da Escola de Belas Artes da UFMG, falou sobre o projeto da web museumuseu, discutindo essa ferramenta e uma nova concepção do espaço/conceito de museu. ██ Sobre Improvisões, apresentei em linhas ágeis a sua idéia: um projeto que dispõe recursos e abre espaços para que artistas das mídias da imagem, do corpo e do som possam estabelecer um diálogo não hierárquico, ao vivo, diante do público. O projeto tem a co-idealização de Marcelo Kraiser (UFMG/Escola de Belas Artes), contando com as consultorias de André Lages, Eduardo de Jesus e Vera Casanova, além do próprio Marcelo. Ao lado das performances de improvisação intermídias, ocorrem as performances/conferências, chamadas de Pensamento disparado. O projeto ocorre no Teatro Marília, em novembro, e já está na sua 3ª edição. Será publicado um edital para seleção dos artistas, detalhando verba, condições técnicas etc. Um projeto para singularidades inconsumíveis! ██ Aproveitando, ainda, a presença de Fernando Mencarelii na audiência, apresentei também em linhas bem rápidas o projeto Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas, do qual ele, juntamente com Nina Caetano, formam a curadoria. ██ Na noite seguinte, Marianna Monteiro, da UnB, situou uma discussão sobre performance e tecnologia. O debate estendeu-se pela audiência, abrindo brechas para repensar a indústria espetacular e as alternativas que driblam as formatações prévias do mercado. Surpresa para mim foi conversar com Marianna e relembrar o grupo Ananke, que surgiu no meio do Oficina do Zé Celso, nos anos 70, liderado por Joel. Eles encenavam As Criadas, de Genet, numa visada que misturava sadomasoquismo, militarismo e macumba. O ponto cantado do grupo era um grito de guerra: a casa da patroa vai cair! Por onde andavam, levavam às últimas conseqüências esse propósito. Não são coisas de um passado, mas forças que atravessam um tempo não linear. E a noite de Belo Horizonte seguiu esfriando com suas sombras e luzes. ██

Livros lançados no Seminário:

MEDEIROS, Maria Beatriz de (orga. e trad.). Bernardo Stiegler – reflexões (não)contemporâneas. Chapecó: Argos, 2007
_____________________. Aisthesis – estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005.

MEDEIROS, Beatriz; MONTEIRO, Marianna; MATSUMOTO, Roberta. Tempo e performance. Brasília: Editora de Pós-Gradução em Arte da Universidade de Brasília, 2007.

Categorias
Geral

Renato Cohen e a criação cênica em processo – do Overmundo

Há um livro que sempre indico para as pessoas que desejam conectar-se com as pesquisas cênicas contemporâneas, tais como a de um teatro contaminado pelas outras mídias (dança, música, artes-plásticas), tomado pelo hibridismo e que foge às categorizações: Working in progress na cena contemporânea, de Renato Cohen.

O autor, que se encantou em 2003, é um pensador-criador do teatro experimental, que ele denominava nos últimos escritos de pós-teatro: um plano de criação intermídias, processual e instável. Cohen traçou caminhos em zig-zag, desnorteando referências por demais fixas, avizinhando-se de zonas fronteiriças, imprimindo um teatro gestual, de forte impacto visual e sonoro.

Trouxe para a cena o mito e o ritual, não de modo ilustrativo, mas sim ao modo de uma produção desejante, de um agora carregado de passado e futuro.

Cohem aponta para um procedimento de criação cênica que não se faz mais como obra acabada, mas como obra em processo. Isso não quer dizer que ela seja mal-acabada, mas sim que, em ressonância com o espírito de época, sua incompletude passa a ser a sua virtude. A obra em processo rompe com séculos de tradição artística ocidental, instaurando uma arte corroída pelo seu próprio discurso. Paul Virilio mostra, a respeito da contemporaneidade, que a arte torna-se acidente. Porém, acrescenta, as obras de arte caminham, em sua maioria, sem saber desse fato. Não se trata de uma visão catastrófica.Virilio mostra que tudo já é acidente – só falta tomar conhecimento disso. E tal fato deveria ser visto como uma positividade. Nesse sentido, a obra processual de Renato Cohen incorpora as vicissitudes do trajeto, a incompletude dos significados, o atravessamento de multiplicidades, produzindo uma cena outra, na qual o acidente configura uma realidade existencial.

A pesquisadora de artes cênicas, Sílvia Fernandes, aponta alguns dos procedimentos utilizados por Cohen: a) narrativas sobrepostas; b) noção de obra progressiva a partir do corso-ricorso, tomado de James Joyce; c) variáveis abertas num fluxo livre de associações, evitando assim o fechamento do sistema, como ocorreria, por exemplo, com o texto dramático; e d) leitmotiv condutores. Tais procedimentos substituem o desenvolvimento dramático, procedimento clássico do teatro. Cohen cita, constantemente, a arte minimalista, com suas fases e defasagens, com o uso de repetição que varia na sua diferença e que instaura planos meditativos.

Para os atores e performers, Cohen faz uso de diversos instrumentos, desde aqueles que foram transmitidos no âmbito da atividade artística, quanto daqueles que veem do ritual, como o caso do xamanismo. A performance, para Cohem, é tanto um campo sombrio e sinistro, carregado de ironia, quanto uma viagem de iniciação – daí suas constantes referências na obra do artista e performer Joseph Beuys. Uma iniciação que não se dá em moldes pré-estabelecidos, mas a partir das próprias mitologias pessoais dos performers no encontro com as forças que atravessam a sensibilidade contemporânea.

Renato Cohen fez vários espetáculos que fundiram na cena tais princípios e procedimentos: entre eles, a sua estreia nos anos 80 com Magrite, espelho vivo (1986), Sturm and Drang/Tempestade e Ímpeto; merecendo destaques, ainda, sua parceria com Peter Pál Pelbart e Sérgio Penna, junto com usuários do sistema de saúde mental, com Ueinzz, Viagem à Babel (1997)e posteriormente, Gothan SP (2001).

Tive a oportunidade de assistir a uma conferência e oficina de Renato Cohen, no Centro de Cultura Belo Horizonte, em 2001, no projeto Seminário. Perguntei, então, a Renato, como ele definia a dramaturgia (nessa visada que entendemos como sendo de um teatro pós-dramático), ele responde na velocidade de um raio:” é hipertexto, você entra num lugar e já cai em outro”. Porém, posso entender que ele não dizia simplesmente de uma alternância de paisagens, mas sim de uma coexistência não linear e não hierárquica das diversas imagens, que não têm a função de se explicar ou de se traduzir mutuamente.

O seu livro de estreia nos anos 80 (reeditado em 2004), Performance como linguagem, trouxe o campo da performance art, abrindo perspectivas sobre estética contemporânea e criação cênica. A sua pesquisa mais recente, interrompida pela sua morte, referia-se às relações entre performance e tecnologia na era da técnico-cultura. Working in progress na cena contemporânea, o seu último livro, é um caixa de ressonâncias e conexões com os pensamentos criativos e com os procedimentos das vanguardas históricas, perpassando informações preciosas e dicas muito interessantes.

Aqueles que se interessam pela criação intermídias e processual, bem como desejam adentrar nos caminhos do pós-teatro, encontrarão no livro de Renato Cohen, Working in progress na cena contemporânea, fontes de pesquisa e inspiração.

Obs. O texto, com exceção das imagens, foi publicado originalmente no Overmundo.

Referências: COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2004 _____________ Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. VIRILIO, Paul and LOTRINGER, Sylvère. The accident of art. MIT Press: Cambridge, Mass and London, England, 2005.

Categorias
Arte e Cultura Artes Cênicas Filosofia Geral

EM BUSCA DO CORPO ANÔMALO

Num post, falei das visões de um corpo no chão. Jan Moura, da Confraria dos Atores, grupo teatral de pesquisa de Cuiabá, comentou o tema, lembrando o treinamento corporal de Eugenio Barba, mestre das composições que perfazem uma corporeidade exra-cotidiana. Coisas que são próximas e distantes. Atravessando a questão, volto à visão daquele post, em busca do corpo anômalo.

A distinção entre corpo cotidiano e corpo extracotidiano, é realizada por Eugênio Barba e demonstra que toda corporalidade é investida de uma segunda natureza. No caso da energia cotidiana, prevalecem os condicionamentos socioculturais, formando todo um modo sensoriomotor de sentir, perceber e se expressar. No sentido mais pragmático temos, entre outros traços, o de um mínimo de esforço para o máximo de rendimento. Isso quer dizer, também, que a leidos fins predomina sobre os meios. A orientação social e finalista é clara: se eu devo ir até a porta e abri-la para que entre alguém, tal ato não me pede mais do que o esforço mínimo e necessário para que a ação seja executada.

Já na energia extracotidiana, a ordem é invertida, havendo o máximo de esforço para o mínimo de rendimento. Ora, quando isso acontece, temos um dispêndio extra de energia, um dispêndio totalmente desnecessário do ponto de vista da funcionalidade da execução. Nesse caso, há uma corporalidade cuja presença se expande como luxo, para utilizar uma terminologia de Barba. Forma-se uma segunda natureza, mas que se recusa a atender às lei dos fins, tornando os meios, os percursos, as intensidades, como a modalidade de existência corporal.

Esse corpo extracotidiano será um corpo treinado, e, noutra perspectiva, poderia ser chamado de corpo-artista, para usar o termo criado por Christine Greiner (2005) para designar uma experiência em criação estética.

Um corpo artista possui habilidades ou treinamentos que o sustentam como tal, extraindo uma presença que se torna, como diz Barba, de luxo. Que corporalidade é essa? Poderíamos dizer que ela, ao se tornar presença, pode entrar sob regimes de signos não codificados.  Diria, por exemplo, que esta é uma perspectiva que foi bastante trabalhada por outro encenador, próximo de Barba (quando este se julga, sob certos aspectos, um discípulo seu), como Jerzy Grotowski. Há toda uma existência corporal para além dos limites impostos pela vida social, expressando-se principalmente nas situações-limite, de risco, de abandono de si. Posso dizer, então, que essa  corporalidade têm a potência e entrar em estados singulares e, acrescento, anômalos.

Você poderia concluir, então, que somente corpos treinados, às vezes sob modalidades quase secretas, de afastamento e negação dos contornos sociais e de suas premências, poderiam expressar tais estados singulares e anômalos. Porém, tenho insistido na existência de corporalidades que vivem tais situações-limite sem, contudo, serem corpos-artistas, ou seja, treinados. E acrescento, além disso, que os teatros pós-dramáticos e performativos, quando introduzem o real na cena (tudo aquilo que foi excluído do campo da percepção pelo teatro de ilusão), validaram as corporeidades não-artistas (não treinadas numa disciplina artística).

Assim como os pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem que “a arte não espera o homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem só em condições tardias e artificiais”, também se pode dizer que a arte não espera o ofício da arte. A arte contemporânea não cessa de trazer à tona experiências corpóreas não restritas ao corpo artista, tomando este como habilitado pelos ofícios e treinamentos. Ou seja, outros corpos podem entrar na cena por uma via estética, isto é, em criação.

Busco obsessivamente a observação daquilo que chamo de corporalidade anômala, na trilha apontada por outro pensador, José Gil, numa apropriação do conceito de anômalo em Deleuze e Guattari (1997,b).

SÃO CORPOREIDADES OUTRAS, QUE O TEATRO DE REPRESENTAÇÃO NÃO PODE CONCEBER. Não porque seja pior ou melhor que um teatro não-representacional. Mas em função de cada um criar a sua própria paisagem. Você dirá: pode um teatro não ser uma representação? Teatro-fábrica em oposição ao teatro-interioridade: é essa distinção que se deve fazer, apesar das coisas serem, sempre, passíveis de todas as misturas.

O anômalo não é um categoria nem de indivíduo e nem de espécie. E também não se diz do anormal, mas antes do desigual (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Esses pensadores o conectam à multiplicidade e ao corpo atravessado por afectos: “é um fenômeno, mas um fenômeno de borda”.

A questão passa a ser: como um corpo-artista pode produzir uma corpo anômalo?

Referências

DELEUZE, G. E GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
GIL, José. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Anna Blume, 2005.
DRAMATURGY BEYOND REPRESENTATION:TEXTS, BODIES, SPACES IN CONTEMPORARY EUROPEAN THEATRE