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Crônica Iluminações avulsas Urbano

O sorriso iluminado de um condutor de ônibus

Quando piso no primeiro degrau do ônibus, deparo-me com a frase “seja bem-vindo”. Curti aquilo e cumprimentei o motorista: – Bom dia! E ele me devolve outro “bom dia” com um sorriso impressionante, muito raro de se ver nas paisagens que habitamos, nas quais o mau-humor, quando não a ironia corrosiva, tem sido um afeto dominante.

Ocorre que, ao passar por aquele senhor de cabelos brancos e sorriso iluminado, veio-me a lembrança do Cigano, o motorista que contagiava a nós, garotos da década de 60. Cigano era um jovem por volta dos seus vinte anos, com imensas costeletas, a camisa um pouco aberta e uma colar tipo corrente no pescoço.

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Geral Iluminações avulsas Urbano

É só mais um dia que vai

A parte da frente do ônibus, anterior à roleta e onde fica o motorista, começa a encher sem parar. Ali se juntam algumas pessoas idosas que não têm o cartão de passe livre e devem descer pela porta da frente, e mais alguns e algumas jovens que provavelmente não pretendem pagar passagem. Tarde de um final de recesso escolar. Os corpos e as sensações flutuam dentro do coletivo de transporte.

A moça de musculatura forte, quase certo que por natureza ou trabalho, está de short e senta no colo de uma outra, também de short. A roupa é mínima. O olhar dessa que se senta no colo da outra é vago e parece não estar ali, naquele ônibus, naquele momento. Olha à frente e para o lado através da janela como se nada existisse, ao mesmo tempo em que está atenta, de algum modo, ao seu entorno. Diria que ela, se provocada, encara e bate – uma suposição apenas. Parecem personagens de algum filme futurista que entraram ali. Por outro viés, esse que escreve é um personagem do passado e não entende nada do que está se passando nesse mundo que lhe advém. Um modo de ver e sentir deslocado é salutar e potente quando não é um julgamento. Pois permite o estranhamento de si e de tudo em volta.

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Ativismo e Análise Política Geral

55 anos do golpe militar de 1964: tragédia e farsa

Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Do terror e do medo em 1964 à comemoração, em 2019, do regime que perseguiu, torturou e matou

Passei parte da minha infância, adolescência e juventude sob a sombra temida do regime de ditatura militar, deflagrada nos seus termos em 1 de Abril de 1964, mas registrada como ocorrendo em 31 de Março (para não ser associada ao dia da mentira). O atual (des)governo adiantou-se para emitir uma ordem do dia que foi lida nos quartéis do país como comemoração e exaltação da intervenção na vida civil do país.

Marx dizia que a história acontece pela primeira vez como tragédia e a segunda como farsa . Diria, este que vos escreve, que 1964 foi pode ser o elemento trágico, e a volta dos militares ao poder em 2019, desta vez pela via eleitoral, em que comemoraram o 31 de março de 1964 como um movimento que “salvou a democracia”, uma farsa.

Entretanto, cabe aqui os parênteses de uma advertência quanto ao uso do nome “tragédia”. A mídia e o uso impensado o associam a acidentes terríveis, desgraças naturais ou provocadas. Penso que a expressão de Marx não se situa nesse plano equivocado – ele falava de Napoleão como o caso trágico e seu sobrinho Luis Napoleão, posteriormente, como a farsa. Contrário desse uso diluído, penso que Marx via o trágico enquanto forças desmesuradas – permito-me a essa visão, que não são estranhas ao humano, já que para ele os homens fazem a história, porém não a fazem como querem simplesmente. Já o segundo acontecimento, a repetição, surge como farsa. Trata-se de um comentário sarcástico em que não se pretende, acredito, universalizar e ver nos movimentos cíclicos uma lei.

O golpe de 1964 foi trágico? Diria que sim com algumas reservas, para perder a força do conceito tão caro a este que voz escreve, diria que sim. Pois que não tanto pela violência que se abateu sobre a vida democrática do país – o que nos levaria a pensar em acidente ruim, em desgraça. Pois que o trágico é exaltação da vida no embate de forças desveladas pelo ímpeto dionisíaco, por onde a derrocada é conhecimento terrível. Se pensamos nos discurso de João Goulart, nas vésperas do golpe, veria aí toda uma via trágica que o filme de Glauber Terra em Transe, orquestrou com virulência barroca. Sem poder aprofundar nesse tema, volto-me para o 31 de março de 1964 e em 2019.

Para justificar o golpe militar de 1964 fabricou-se na embaixada dos EUA a narrativa de que o governo João Goulart era comunista e pretendia instalar uma república socialista-sindicalista no Brasil. Imprensa, empresariado e uma ampla classe média conservadora embasaram e promoveram essa narrativa. Uma perseguição violenta se deu, aumentando ao passar dos anos: censura, prisões, torturas e assassinatos cometidos pelos agentes do Estado.

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Poesia

A última vez

Imagem: do filme A última sessão de cinema (1971), de Peter Bogdanovich

Refugiado no instante

dou de cara com um antigo sonho  rasurado,

colado no ponto de ônibus.

Inventaram meus olhos,

(mais uma vez)

a palavra

Saudade.

Esquecida de si,

que alguém achou de encontrar

mas não conseguiu ler.

Pois de um papel gasto e um pouco rasgado,

sobrevive enquanto se apaga seu testemunho inacabado.

Com o desenho dos percursos

a perguntarem por qual modo de descaminho

a poesia escreve e canta um destino,

quando o vento nas calçadas 

já não varre mais

(como no cinema)

folhas

soltas

de um jornal.

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Arte e Cultura Artes Cênicas Geral Urbano

As linhas intensivas de um corpo em situação de rua

Imagem: Daniel R. Blume/Creative Commons

 

Ainda não são nove horas da manhã, na Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), em Belo Horizonte. Imerso na questão das linhas de composição. Há sim um tema subjacente a esse olhar: as linhas e os traçados de composição. Estou indo para uma reunião num projeto de uma Escola Livre de Artes. 

A poiesis dos corpos imersos no cotidiano – fora do campo da intencionalidade artística – é o que vem  me ocupando. Para pensar o movimento e o que pode ser uma cena. Par pensar o corpo e suas potências. Nesses momentos, a cidade é um terreno fértil de pesquisa. O olhar típico do voyeur, tão afamado nas teorizações sobre a cena, não é esse o plano que produz a consistência dessa busca,  mas sim  um estado meditativo, no qual o observador se observa também no ato de observar.