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Blanchot: pensar a força

Imagem: obra de Kandinsky

“… se a ‘força’ exerce sobre Nietzche a atração que também lhe repugna (“Ruborizar-se com o poder”) é porque ela interroga o pensamento em termos que irão obrigá-lo a romper com sua história. Como pensar a ‘força’, como dizer a ‘força’?

A força diz a diferença. Pensar a força é pensá-la por meio da diferença. Entenda-se isso inicialmente de um modo quase analítico: quem diz a força, di-la sempre múltipla; se houvesse unidade de força, não haveria força. Deleuze exprimiu isso com uma simplicidade decisiva: “Toda força está em relação essencial com uma outra força. O ser da força é plural, seria absurdo pensá-lo no singular.” Mas a força não é apenas pluralidade. Pluralidade de forças quer dizer forças distantes, relacionando-as umas às outras pela distância que as pluraliza e que as habita como a intensidade de sua diferença. (“É do alto desse sentimento de distância”, diz Nietzsche, “que nos arrogamos o direito de criar valores ou de determiná-los: que importa a utilidade?”). Assim, a distância é o que separa as forças, é também a sua correlação – e, de maneira mais característica, é não apenas o que as distingue de fora, mas o que de dentro constitui a essência da sua distinção. Dito de outro modo: o que as mantém à distância, o exterior, é sua única intimidade, aquilo pelo qual atuam e se submetem, “o elemento diferencial” que é o todo de sua realidade, não sendo portanto reais senão quando não têm realidade em si próprias, mas somente relações: relação sem termos. Ora, o que é a Vontade de Potência”? “Nem um ser, nem um devenir, mas um pathos”: a paixão da diferença.

Maurice Blanchot

Blanchot, Maurice. Reflexões sobre o nilismo, in A conversa infinita – vol. 2. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007.

Imagem: Kandinsky

Mais referências:
Site Maurice Blanchot (e seus contemporâneos) – em francês
Espace Maurice Blanchot – em francês e espanhol
Espaço Maurice Blanchot – português
Enigmatic French writer committed to the virtues of silence and abstraction. The Guardian. Obctuary
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

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Economia da cultura: do mercado e da proteção à diversidade

A economia da cultura situa-nos  numa rede intrincada de bens, serviços, processos, produtos e criações de fronteira. Entre umas e outras, todas as passagens e transformações, de tal modo que não mais funciona a antiga oposição binária entre mercado e não-mercado.

Faço algumas anotações sobre o tema, tendo em mente a questão da proteção e da promoção da diversidade cultural, incluindo os novos agenciamentos artístico-culturais:

1. Há um texto de Lala Deheinzelin intitulado Economia criativa e reinvenção da economia, que nos traz elementos novos para a análise do tema,do qual reproduzo um trecho:

“O tangível/material é finito, limitado, portanto gera disputa por sua posse, conduzindo à competição como elemento central na política, economia e, infelizmente, na vida cotidiana. Já o intangível é ilimitado, e pode ser o caminho para novos modelos baseados em cooperação. Quando somado às tecnologias digitais (e bits também são infinitos) temos uma infinitude de opções colaborativas e surge um novo termo: “economia da abundância” que pode originar modelos mais solidários de viver.”

2. Outro texto muito interessante, este de George Yúdice, Economia da cultura no marco da proteção e da promoção da diversidade cultural, no qual ele articula as atividades que têm por natureza a propriedade intelectual com aquelas que não visam lucro. Há trânsitos e passagens entre umas e outras, bem como conexões.

Nesta trilha, cito o documento da Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco, de 2005 e ratificado pelo Brasil.

3. A análise de Yúdice tem por essência os usos da cultura. Ele retoma o sentido pragmático, é verdade, mas apontando para a dinâmica criativa de reinvenção da própria sociedade através da cultura.

Fora do espaço corporativo das artes, com suas trincheiras já definidas, há todo um espaço para os novos agenciamentos culturais. Falo precisamente de toda uma dinâmica cultural e artística que passa pelas experimentação das linguagens, pela busca de novas formas de sociabilidade, pelo fortalecimento da auto-estima de indivíduos, grupos e povos, pelo compartilhamento de experiências, tempos e espaços etc.

4. O que os estudos sobre a economia da cultura podem nos ajudar a ver, antes de tudo, é a enorme potencialidade das transversalidades, das portas e conexões, das passagens, enfim. Nesse sentido, precisamos superar as visões do tipo mercado x não-mercado.

5. O capitalismo pós-fordista tem modificado rapidamente as forças produtivas na economia: requisita-se a alma do trabalhador, sua inventividade e criatividade. Modula-se a produção pelo desejo e não pela massificação. O que é um blog, por exemplo, senão a coincidência do criador e consumidor, espaço de criação no qual cada um pode expressar seus valores, suas opções e paisagens habitadas? Peter Pal Pelbart lembra que essa força criativa não vêm do capitalismo e nem do Estado, mas das próprias pessoas, de sua energia liberada. A noção de capital se expande:

“Por exemplo, quando um grupo de presidiários compõe e grava sua
música: o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de “morar” na prisão, de gesticular, de protestar – sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é isso que eles capitalizaram e que assim se autovalorizou e produziu valor. Nessa perspectiva, se é claro que o capital se apropria da subjetividade e das formas de vida numa escala nunca vista, a subjetividade é ela mesma um capital biopolítico de que cada vez mais cada um dispõe, virtualmente, sejam os ditos periféricos, ditos loucos, detentos, índios, mas também todos e qualquer um e cada qual com a forma de vida singular que lhe pertence ou que lhe é dado inventar – com conseqüências políticas a que determinar.”

Obviamente, que o capitalismo não cessará de ampliar também os limites de controle sobre as forças produtivas liberadas nos fluxos desterritorializantes do capital.

Por isso Deleuze não pensa por oposição binária, mas sim por diferença. O par territorialização e desterritorialização: um percorre sua velocidade até transformar-se no outro. “A relação diferencial é uma relação de diferenciação recíproca” (Derrames – entre el capitalismo y la esquizofrenia). O capitalismo libera forças e ao mesmo tempo procura codificá-las… Produz novas estratégias de captura do desejo, transformando a energia liberada pelas singularidades em mais lucro. Transforma a inventividade que requisita dos sujeitos em novas modalidades de assujeitamento. Deleuze segue dizendo, nos seminários de dos anos 70-80, que ” “o capitalismo não tem limite exterior, tem somente limites
internos que são os do próprio capital. E esses limites internos sempre são reproduzidos em escala mais ampla.”

É nesse campo que devemos entender o papel dos novos agenciamentos artístico-culturais. E como tudo o mais, eles não atuam de fora do sistema: mas de dentro. Qual o seu potencial de afirmatividade e resistência? Dependerá das estratégias, das condições, da capacidade de mobilizar energias criativas.

7. Os novos agenciamentos surgem em diversas modalidades: a demanda por inclusão através da cultura, a cidadania, os movimentos sociais, as lutas de opção sexual, as correntes imigratórias, os refugiados e outros mais, incluindo os direitos à recusa… Apresentam-se não como identidades, como muitos ainda acreditam, mas como máquinas de guerra em prol da reinvenção de si e do social.

Daí a importância da economia da cultura para o mapeamento das políticas públicas e o redirecionamento de investimentos. E por isso, numa esfera, entendo e me torno solidário da gestão Gilberto Gil e agora, continuada por Juca Ferreira à frente do Ministério da Cultura, quando defendem a proteção e a promoção da diversidade cultural.

8. Lala Deheinzelin mostra que estamos diante de um novo contexto:

“A própria economia terá que ser revista, já que uma de suas definições era ‘gestão dos recursos escassos’. Criatividade e cultura são recursos abundantes, especialmente nos países do hemisfério sul, e representam um enorme patrimônio, que pode provocar uma revisão no conceito de riqueza e pobreza. Recurso é muito mais que dinheiro e deve incluir as dimensões sócio-cultural, social e ambiental.”

9. A rede é intrincada. Tem a ver com a apropriação do Estado pelas forças da sociedade. Afinal, como diz Deleuze, o capitalismo sempre será capitalismo de Estado. Mas a velha tendência é que tais apropriações ocorram nas esferas corporativas. Afinal, elas têm discussão historicamente acumulada. Daí a responsabilidade pública de abrir outras linhas de participação e financiamento que promovam e protejam a diversidade cultural.

10. Volto à questão: a oposição mercado e não-mercado. Já pensou que mercado deveria ser espaço de troca, de se mostrar, sem ter que necessariamente de se vender?

Isso não pára aqui. Há muito porvir.

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Que nome dar a isso?

Israel, ao anunciar o cessar-fogo unilateral, disse que lamenta a morte de mais de 1200 civis (contra três soldados e três civis do lado isralense) e que não é inimiga dos palestinos.

Em seguida ao anúncio, as tvs noticiam que várias escolas, com bandeiras da Onu, foram bombardeadas, matando mais crianças!

Que nome damos para isso?

A situação pode ser complexa, controversa, mas a matança de crianças tem que ter um nome. Algo que possa clarear nossas consciências e eliminar toda confusão.

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Hip-Hop in Concert no Teatro Francisco Nunes fecha o ano de 2008

HipHop in Concert fecha o ano de 2008 da nossa gestão nos Teatros da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.

O projeto nasceu dos planos de gestão, que concebia uma ação voltada para o jovem (mas incluindo outros trânsitos geracionais), especificamente na área da música, concebendo perspectivas de uma arte mais autoral, mais comprometida com a existência, as afirmativades culturais e a atitude diante do mundo. O que estava em consonância com as diretrizes de governo, em termos de uma política para a juventude. Para isso, muitas consultas, análises e conversas.

Um projeto não nasce de uma cabeça, mas de uma pequena multidão. Surge de análises, de necessidades levantadas, de conceitos de ação para a gestão. Tivemos em mente dois segmentos musicais para a juventude: o Rock independente e o HipHop. Nossa preocupação era: quais segmentos permeavam a cidade e potencializavam uma ação musical mais ampla e diversificada, sem cair no ecletismo e nas políticas amorfas e sem comprometimento?

Ao lado do Rock independente, o HipHop foi um dos mais citados em nossas análies. Eid Ribeiro, curador do Festival Internacional de Teatro de BH, lembrou-nos da força da cultura HipHop nas Vilas de BH. Depois, Ricardo Júnior, parceiro de inquietações filosóficas e de paisagens cinematográficas, bateu na mesma tecla.


Por fim, definidos a trabalhar com o HipHop, procuramos artistas que tivessem experiência com o segmento, de um ponto de vista mais aberto e conectivo. Vieram as conversas com Gil Amâncio, cujas contribuições ajudaram a defir basicamente as linhas do projeto. Gil, desde a Cia Sera Quê? e suas experiências com o Nuc, além da passagem pelo Arena da Cultura, conhecia bem o segmento. Sua contribuição era mais do que necessária. Mais tarde, foi formada a Comissão Consultiva do Projeto, com a presença do Coletivo HipHop Chama (principalmente, Áurea, Larissa, Russo e Roberto, entre outras presenças), de Edson de Deus (fígura de estampa finíssima, que foi o primeiro produtor dos Racionais, em São Paulo, quando estes ainda não haviam estourado) e, finalmente, a equipe de produção formada por Renegado e Rômulo Silva, que tocam o projeto junto sob a coordenação de André Ferraz, gerente do Teatro Francisco Nunes. Isso sem falar na força do Arnaldo Godoy, que garantiu uma emenda parlamentar na Câmera dos Vereadores, para que o projeto, a partir de 2009, seja ampliado. Mais do que isso, é bom lembrar que o projeto é uma conquista do movimento HipHop de Belo Horizonte e Região Metropolitana.


HipHop in Concert
faz parte da ação Ressonâncias, que inclui ainda o Quarta Sônica – rock independente no Teatro Marília, que este ano fechou com a Banda 5 Rios. A outra linha de ação intitula-se Arte Expandida – experimentação nos Teatros Municipais, constituída de Improvisões, Momentum e Laboratório Textualidades Cênicas Contemporâneas. E tudo muito transparente, com curadorias e editais publicados.
Não podemos esquecer da Mostra de Artes Cênicas para Crianças. O projeto intitulava-se de Mostra de Teatro Infantil e já vinha sendo executado há 11 anos. A mudança de título seguiu a uma ampliação do conceito, incluindo a dança, o teatro de formas animadas, as performances baseadas nas culturas tradicionais e o resgate da cultura lúdica da infância. Infelizmente, em 2008 a Mostra não pôde acontecer pois a Lei Eleitoral proibia projetos governamentais com divulgação, no período de 5 de julho a 31 de outubro deste ano.
O que isso quer dizer? Quer dizer que os Teatros Municipais abrigaram a diversidade cultural, principalmente no que se refere ao direito à diferença. Apoiamos projetos da sociedade civil (Verão Arte Contemporânea, Fórum Internacional de Dança, Festival Estudantil de Teatro, Festival Internacional de Teatro de Bonecos, Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, Estação em Movimento, entre outros), sem falar nos projetos da FMC (Festival Internacional de Teatro, Festival de Arte Negra, Festival Internacional de Quadrinhos, Música de Domingo etc.). Devemos lembrar, ainda, da importância do período reservado para os espetáculos de artes cênicas, que se apresentam nos Teatros Marília e Francisco Nunes mediante edital de Concorrência.
HipHop in Concert encerra o ano. Agradecemos a todos e a todas que contribuíram para que os Teatros Municipais se tornassem expressão ampliada e diversificada da cultura e da arte.

Mais referências
Blog Converse:Arte Expandida, uma publicação da comunidade sobre arte contemporânea, tendo por mote os projetos experimentais dos Teatros Municipais.
Performance e Tecnologia – sobre Improvisões e outros projetos de performance art
Histórias de uma Arte Expandida – Mariana Lage levanta os antecedentes do Arte Expandida, começando pela nossa gestão no Centro de Cultura Belo Horizonte (1999-2004), principalmente o Cabaré Voltaire e a Zona de Ocupação Cultural.
Instant Compostion: Momentum
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Uma carta de Fabrícia: Les Laboratoires D’Aubervilliers


Fabrícia Martins
estuda no curso “arts du spectacle chorégraphique” Paris. Tem se voltado para as pesquisas em performance, principalmente composição cênica em tempo real. Enviou-me um material maravilhoso, incluindo o Journal des laboratoires, produzidos por um coletivo de estudos em performance, do qual faz parte, intitulado Laboratoires d’Aubervilliers.

São pesquisas transdisciplinares, nas quais se entrelaçam linhas conceituais e sensíveis. Vou ler e tentar trazer, para o blog, alguma coisas dos materiais. Há textos maravilhosos, atravessando questões do nosso tempo e sobre os Laboratoires D’Abervervilliers. Ela me fala de uma improvisação realizada pelo coletivo por duas semanas numa galeria: “as improvisações eram abertas a quem quisesse, bastava se inteirar das regras.”

Tive a oportunidade de conviver num processo criativo de treinamento com Fabrícia, em 2002, na Escola de Artes Cênicas/Escola de Belas Artes-UFMG. Fabrícia fazia parte do grupo de Dudude Hermmann, a Cia Bem-Vinda. Sua experiência e seus interesses em dança já ultrapassavam as fronteiras dessa arte, voltando-se para a performance art. Lembro-me de uma discussão, em que as pessoas falavam muito da necessidade de repetir uma ação – de gravá-la etc. Fabrícia, então, questionou: “Não entendo porque as pessoas de teatro têm tanto necessidade de treinar a repetição, pois não existe um ação que seja igual à outra… O que temos é somente mudança…” Ela já estava utilizando um procedimento que mais tarde eu iria começar a adotar, principalmente a partir das leituras de Renato Cohen e John Cage: a ação em tempo real e a indeterminação.

Além disso, fizemos um exercício por algumas horas com bastão. É muito simples e consiste em utilizar o objeto como um diálogo tônico, retirando-o depois e deixando apenas a dança pessoal. Foi ótimo, para mim, compartilhar do pensamento-corpo de Fabrícia, nem que fosse por um momento só. Depois ela foi fazer o mestrado em Paris. Ultimamente, tem pesquisado e estudado o campo da performance, dedicando-se ao processo da composição em tempo real, um procedimento desenvolvido pelo coreógrafo e performer João Fiadeiro.

O blog de Fabrícia é pura poesia. Chamei de fábrica d(e)os sentidos. Há um texto do dia 15 de setembro (as postagens quase nunca trazem título, o que é muito interessante) que é uma jóia. Há um toque existencial e irônico: “virei rinoceronte” e “urubus famintos se aproveitaram da vaga que deixei”… Às vezes, o cotidiano aparece, nu e cru: “vomitei duas noites e dois dias e descansei no domingo”. Mas não há nada de vida particular, de vidinha mesmo ou de qualquer coisa do tipo “olha pra mim”. Ao contrário, a pura expressão.

Mais referências
Les Laboratoires d’Aubervilliers – performance by Antonia Baehr
French Research – Les Laboratoires…