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EM BUSCA DO CORPO ANÔMALO

Num post, falei das visões de um corpo no chão. Jan Moura, da Confraria dos Atores, grupo teatral de pesquisa de Cuiabá, comentou o tema, lembrando o treinamento corporal de Eugenio Barba, mestre das composições que perfazem uma corporeidade exra-cotidiana. Coisas que são próximas e distantes. Atravessando a questão, volto à visão daquele post, em busca do corpo anômalo.

A distinção entre corpo cotidiano e corpo extracotidiano, é realizada por Eugênio Barba e demonstra que toda corporalidade é investida de uma segunda natureza. No caso da energia cotidiana, prevalecem os condicionamentos socioculturais, formando todo um modo sensoriomotor de sentir, perceber e se expressar. No sentido mais pragmático temos, entre outros traços, o de um mínimo de esforço para o máximo de rendimento. Isso quer dizer, também, que a leidos fins predomina sobre os meios. A orientação social e finalista é clara: se eu devo ir até a porta e abri-la para que entre alguém, tal ato não me pede mais do que o esforço mínimo e necessário para que a ação seja executada.

Já na energia extracotidiana, a ordem é invertida, havendo o máximo de esforço para o mínimo de rendimento. Ora, quando isso acontece, temos um dispêndio extra de energia, um dispêndio totalmente desnecessário do ponto de vista da funcionalidade da execução. Nesse caso, há uma corporalidade cuja presença se expande como luxo, para utilizar uma terminologia de Barba. Forma-se uma segunda natureza, mas que se recusa a atender às lei dos fins, tornando os meios, os percursos, as intensidades, como a modalidade de existência corporal.

Esse corpo extracotidiano será um corpo treinado, e, noutra perspectiva, poderia ser chamado de corpo-artista, para usar o termo criado por Christine Greiner (2005) para designar uma experiência em criação estética.

Um corpo artista possui habilidades ou treinamentos que o sustentam como tal, extraindo uma presença que se torna, como diz Barba, de luxo. Que corporalidade é essa? Poderíamos dizer que ela, ao se tornar presença, pode entrar sob regimes de signos não codificados.  Diria, por exemplo, que esta é uma perspectiva que foi bastante trabalhada por outro encenador, próximo de Barba (quando este se julga, sob certos aspectos, um discípulo seu), como Jerzy Grotowski. Há toda uma existência corporal para além dos limites impostos pela vida social, expressando-se principalmente nas situações-limite, de risco, de abandono de si. Posso dizer, então, que essa  corporalidade têm a potência e entrar em estados singulares e, acrescento, anômalos.

Você poderia concluir, então, que somente corpos treinados, às vezes sob modalidades quase secretas, de afastamento e negação dos contornos sociais e de suas premências, poderiam expressar tais estados singulares e anômalos. Porém, tenho insistido na existência de corporalidades que vivem tais situações-limite sem, contudo, serem corpos-artistas, ou seja, treinados. E acrescento, além disso, que os teatros pós-dramáticos e performativos, quando introduzem o real na cena (tudo aquilo que foi excluído do campo da percepção pelo teatro de ilusão), validaram as corporeidades não-artistas (não treinadas numa disciplina artística).

Assim como os pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem que “a arte não espera o homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem só em condições tardias e artificiais”, também se pode dizer que a arte não espera o ofício da arte. A arte contemporânea não cessa de trazer à tona experiências corpóreas não restritas ao corpo artista, tomando este como habilitado pelos ofícios e treinamentos. Ou seja, outros corpos podem entrar na cena por uma via estética, isto é, em criação.

Busco obsessivamente a observação daquilo que chamo de corporalidade anômala, na trilha apontada por outro pensador, José Gil, numa apropriação do conceito de anômalo em Deleuze e Guattari (1997,b).

SÃO CORPOREIDADES OUTRAS, QUE O TEATRO DE REPRESENTAÇÃO NÃO PODE CONCEBER. Não porque seja pior ou melhor que um teatro não-representacional. Mas em função de cada um criar a sua própria paisagem. Você dirá: pode um teatro não ser uma representação? Teatro-fábrica em oposição ao teatro-interioridade: é essa distinção que se deve fazer, apesar das coisas serem, sempre, passíveis de todas as misturas.

O anômalo não é um categoria nem de indivíduo e nem de espécie. E também não se diz do anormal, mas antes do desigual (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Esses pensadores o conectam à multiplicidade e ao corpo atravessado por afectos: “é um fenômeno, mas um fenômeno de borda”.

A questão passa a ser: como um corpo-artista pode produzir uma corpo anômalo?

Referências

DELEUZE, G. E GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
GIL, José. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Anna Blume, 2005.
DRAMATURGY BEYOND REPRESENTATION:TEXTS, BODIES, SPACES IN CONTEMPORARY EUROPEAN THEATRE

Medeiazonamorta

Fui convidado para participar de uma roda de conversa com público e artistas do espetáculo Medeiazonamorta, uma produção do Grupo Teatro Invertido, que faz parte do Circuito Off. O espetáculo ocupa um laboratório desativado da Escola de Engenharia da UFMG.

Conversamos sobre alguns planos, relativos à configuração do pensamento teatral que o grupo coloca em cena. O coletivo de artistas intitula as apresentações de Temporada Laboratório e, segundo Leonardo Lessa, ator e um dos fundadores do Grupo, o espetáculo é uma obra em processo. Em cada espaço, o espetáculo se desfaz e se refaz. Batemos uma bola, com alguns toques e lances do tipo:

1. A definição de uma obra em processo. O que difere de uma concepção de arte como obra acabada, mesmo que aberta (ecos de Eco…) etc. No procedimento da obra em processo, não há a manutenção de um espetáculo que deve corresponder sempre ao seu projeto inicial. O não-acabamento (que não quer dizer mal acabamento) é o que define a obra.

2. O plano de composição cênico: conversamos sobre teatros épico-dramáticos e teatros pós-dramáticos. Me vem à cabeça que o Teatro Invertido, parte para um teatro pós-dramático, seguindo a análise de Lehmann. Num teatro dramático (e épico) há três fatores que não arredam o pé (ou desconfigurariam a forma clássica): a) o vínculo entre personagem e lugar; b) o texto vem da boca da personagem e está à serviço de sua construção (social e/ou psicológica), ou, ainda, funciona como descrição da ação, como no épico; d) há um vínculo interno entre a forma teatral e a forma dramática (desenvolvimento da continuidade das ações por coerência lógica e conflito). A forma épica não deixa de ser um teatro dramático. Entretanto, nada disso, pelo que vi, encontra-se em Mediazonamorta. Diferentemente de outras produções do grupo, esta aponta para outro tipo de configuração mental do teatro. O coletivo de artistas adentrou em outra zona de criação cênica. Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que não há julgamentos aqui: a forma dramática não é melhor ou pior que a forma não-dramática de teatro. Apenas cumprem planos de poesia diversos.

3. O plano de caos que a encenação cria. Ele possui potências corrosivas.

4. O plano das justaposições e das conexões não causais entre as cenas. Nesse aspecto encontra-se, na minha visão do espetáculo, as suas potências criativas.
5. O plano corpóreo e a visceralidade das ações.

Falei desses planos e de suas relações com o texto falado pelos atores. E da força poética de certas imagens que a encenação proporciona.

Há mais ou menos dois anos, um curador de um festival de arte e cultura de Barcelona (Espanha) fez uma visita ao Centro de Cultura Belo Horizonte, no qual eu estava à frente com uma bela equipe de trabalho. E o que ele me disse? Que Belo Horizonte era uma cidade na qual predominavam as comédias teatrais. Contestei isso. Nada contra as comédias, mas não corresponde à realidade de criação cênica da cidade. Então, ele me desafiou: – Vamos abrir um jornal! E completou: – Onde estão os grupos e as criações de que você me fala?

Foi um aperto, confesso. O momento em foco não estava nada bom, pelo menos na mídia impressa. Assistindo Medeiazonamorta, que se propõe a um espetáculo visceral, virulento e de uma poética que passa pelos planos da materialidade cênica, vejo que Belo Horizonte não é uma conformidade com a mesmice. O mesmo posso ver nos esforços dos artistas que estão criando, ao lado do Circuito Off, o quase-festival Verão Arte Contemporânea.

Ei, se liguem. Há vida inteligente em Belo Horizonte. Há artistas correndo riscos, saindo dos lugares comuns, realizando produções independentes, experimentando.

Bibliografia:

LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. New York: Routledge, 2005.
COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.
Ficha Técnica: Medeiazonamorta: atuação de Camilo Lélis, Leonardo Lessa e Rita Maia; direção de Amaury Borges; texto de Letícia Andrade; Cenografia de Ines Linke; tilha sonora de Admar Fernandes e iluminação de Rogério Araújo e Amaury Borges. Veja mais em: www.circuitooff.com.br

Notas sobre vazio, criação cênica, deflagração de poesias ordinárias e iluminações avulsas

Habitando a questão:

O Estúdio Dudude Herrman e a Cia Benvinda de Dança (BH) realizaram o Ciclo de Confluências – idéias de fresta, com vivências, conferências e seminários envolvendo dança, improvisação e questões de estética contemporânea[i].

Uma das mesas coloca no título um desafio: Discutir o nada com fluência. Fui convidado, juntamente com o performer e artista plástico Marco Paulo Rolla (BH), o fotógrafo Marcelo Drumond (BH) e a coreógrafa e bailarina Márcia Milhazes (RJ) a enfrentar o tema do Nada.
O que dizer sobre o Nada? Meu enfoque partiu das relações com a composição cênica e o apagamento das fronteiras entre arte e vida.

A experiência oriental:

É preciso dizer que tomo o oriente como um traço de expressão e não como uma localização.
No entanto, no oriente não se coloca a questão do Nada, experimenta-se antes o vazio. São planos diversos.

Há aqui uma experiência que não pensa binariamente no modelo em que as coisas e o vazio não possam coexistir, sendo concebidos apenas alternadamente: ou isso, ou aquilo. No Zen Budismo, por exemplo, todas as coisas são concebidas como vazias. Inclusive, a nossa concepção de vazio.
O pensamento chinês antigo, que também influenciou o Zen, tem um sentido pragmático em relação ao vazio. Para o filósofo e especialista na China antiga, François Jullien[ii], a experiência do vazio é pura eficácia. Há uma transformação contínua e processual do cheio em vazio e vice-versa.

Um traço de expressão que perpassa também o Mundo Flutuante, período Edo, no Japão (1603-1868), que envolvia o cultivo das artes como forma de retirar-se do mundo[iii] .Um refinamento da beleza da incompletude. Compor um poema haiku ou cortar legumes: um corte perfeito e com desenho preciso.E o ma, na cultua japonesa, como espaço intervalar, constitui outro possível aprendizado.

No Aikido, mostrou-me corporalmente o Sensei Ichitami Shikanai[iv] há o maai: união (ai) com a energia do adversário que se dá através do intervalo tempo-espaço (ma). O ma está presente também no Butô[v] e expressa toda a experiência intervalar – pode ser o intervalo entre um som e uma imagem.

John Cage – cotidiano e arte:

O músico e compositor John Cage[vi] é uma fonte de pesquisas em composição experimental – aliás, esse é o título de uma das suas conferências.Cage traz para a música – e não só para ela, pois inundou de vazios a cena contemporânea (de Merce Cunningham ao Judson Dance Theater, para dar poucos exemplos) – a potência do ruído. Música como campo de emergência de sons. Ou melhor, de acontecimentos.

Cage nos mostra que não existe nem um espaço vazio e nem um tempo vazio, pois sempre há algo para se ver e se ouvir. Aliás, para ele, música é uma experiência teatral: uma ocorrência entre o que se vê e o que se ouve. Ele curtia muito nem tanto em ouvir orquestras, mas perceber o menor movimento dos músicos e, para ele, essa experiência é uma emergência no campo da percepção e, por isso, não poderia ser desconsiderada na tentativa de reproduzir algo.

O performer é co-criador da composição.O que ele traz para a criação: há sempre uma tensão entre o que se observa e o que não se observa. E, a partir disso, de um meio e não de um começo, pois sempre se está num campo perceptivo, abrir-se para as desarmonias, que são as harmonias a que não estamos habituados.4. Aberturas para o cotidiano:Não precisamos esperar a arte para que haja arte.

Isso não quer dizer que você não entra mais num cinema ou lê um texto poético ou, ainda, não ouve mais música. Pelo contrário: o tempo todo é cinema, poesia e música.
Um programa desse tipo, em bases cageanas, sugere: veja e ouça o que tem para ser ouvido e visto agora.
Experimente!

Uma idéia muito difícil de ser aceita, entendo. Ela tem por base a não oposição entre arte e vida, como postula John Cage, o que joga por chão alguns séculos de construções teóricas e de formação de hábitos para arte.Esse exercício compositivo implica, primeiro, no esvaziamento de tudo o que é prévio, de tudo o que é intencional. Você encontra-se no nível zero. Mas nesse nível, lembra Cage, não ocorre um simples nada – o vazio é pleno de desejo. É um meio no qual você já está inserido.

Exemplo: num bar, com cadeiras na calçada, o músico e cantor cria um ambiente com bossa nova. Uma imagem cheia: as pessoas bebem uma cervejinha, namoram, cantam juntos etc. É preciso algo mais – que, na verdade, será algo de menos. Ele vai ser dado, a mim, por um garoto que passa correndo pela cena, cortando o espaço com velocidade. Há uma disjunção entre imagens, uma sensação de vazio que perpassa num espaço intervalar (ma) entre as duas imagens/sensação. Há um breve e rapidíssimo atrito entre imagens que não se explicam.
São exercícios de fruição estética que podem, entretanto, serem utilizados para a criação cênica e processual.

A fresta:

Compor é sempre pensado como um ato de preenchimento. Modifico isso: compor é um ato de percepção.

Exercitei, no evento, a composição como um ato de percepção. Para tanto, tomei a idéia de fresta e procurei explorar sua conexão com a experiência do vazio.

Convidei Paulo Azevedo, da Cia Espanca, de Belo Horizonte, que assistia ao debate, para um experimento de fresta. Em meio às pessoas esparramadas pelo Estúdio Dudude Herrmann, ele deveria encontrar um corte de percepção. Solicitei aos presentes que ficassem, por um momento, em quietude, simplesmente para que pudéssemos acolher o que poderia acontecer. Paulo andou e, chegando a um ponto da sala, parou de costas. Por um momento nos iluminamos com um corpo que se oferece para ser visto por uma fresta: por suas costas.

Diria que o ator quase deixa de fazer para que algo se deixe fazer. Realiza cortes perceptivos – corredores e fluxos que guiam a percepção do espectador.São linhas sóbrias de composição. E elas podem ser exercitadas o tempo todo: não precisa esperar por um grande momento, mas também não o recusa.

[i] Belo Horizonte, 26/11/06.
[ii] JULLIEN, François. Tratado da eficácia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.
[iii] HASHIMOTO, Madalena. Pintura e escritura do mundo flutuante São Paulo: Hedra, 2002.
[iv] Mestre de Aikido do Nakatani Dojo, em Belo Horizonte.
[v] GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras, 1998.
[vi] Sobre John Cage:TERRA, Vera. Acaso e Aleatório na Música, um estudo da indeterminação nas poéticas de Cage e Boulez. São Paulo: Educ, 2000.CAGE, John. Silence: lectures and writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1974.