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Irrepresentável: a performance de Macarena Campbell e Pedro Bastos

Imagem: Pedro Bastos

500 palavras numa bolinha de ping-pong: a performance de Macarena (Zikzira) e Pedro Bastos (Cia Hibridus) no Espaço Ação da Cia Zikzira, dentro do Projeto Solilóquio.

A primeira parte é um solo de Macarena. Ela começa pisando num pequeno círculo feito de papeizinhos coloridos. A partir disso anda em direção a uma vidraça (fundo da cena e da sala do Espaço Ação) e, de costas para a platéia, executa alguns movimentos com um doss braço. Já de início estamos colocados no jogo: a solidão. E digo com Deleuze: solidão povoada.

Macarena vai nos conduzindo por uma série de paisagens produzidas através de impulsos corporais. Vemos aqui todo o estilo do Zikzira Teatro Fisico: as ações físicas de Grotowski num plano no qual coincidem o corpo imanente e o corpo manifesto.

Fernada Lippi que, juntamente com André Semenza, trabalhou como orientadora dos performadores (nas sua palavras), tem traduzido para si mesma e para aqueles com quem compartilha sua maestria artesanal, os conhecimentos sobre o caminho das pulsações corporais.

Aliás, a performance de Macarena não tem nada a ver com dança e menos ainda com teatro: não há caracterização, não há drama em desenvolvimento, não há conflito.No caso, temos um teatro físico – mas um teatro singular. Não tem modelos.

Fernanda Lippi diz que o projeto Solilóquio abre para o público as ações físicas, inspiradas na Arte como Veículo de Grotowski. Ações intimas, quer dizer, que nascem do jogo do performer com suas lembranças. Poderíamos dizer, inspirados em Bergson: matéria e memória. No caso das physical actions, Lippi refere-se mais ao estado de descoberta, de auto-devassa, que não teriam por destinatário um público, uma audiência. Solilóquio vai inverter isso: coloca o performer com todo esse universo íntimo em contato com o público.

Macarena conduz suas pulsações numa linha em que assume a consequência de cada ato. Não estamos falando de causalidades, mas de atos poéticos que têm consequências tanto para quem atua quanto para quem assiste. E isso difere muito da dança. Não que o ato de dançar seja um ato sem conseqências para o bailarino. O que difere, aqui, é que instaura-se não um plano de abstração, mas de pulsações que conduzem aos limiares de um ser no estado da paixão. Ou seja: o performer não atua, mas é arrastado (isso quer dizer paixão) para estados outros, paisagens outras.

O que permite a nós espectadores produzir um sentido sobre o ser que sofre a ação. Para alguns isso pode gerar uma estória. Neste caso, a minha história seria diferente da sua. O que para o Grotowski da fase do Objetctive Drama não faria sentido. Quando uma cena não estava clara, ele pedia que os performers voltassem com a coisa mais definida, de tal modo que cinco pessoas que assistissem vissem a mesma coisa. Ou será que ele queria dizer que as ações deveriam ser claras e precisas para mais de um espectador e não necessariamente sua significação? Ou seja, eu sei que ele cai, levanta-se, dirige-se ao outro, desvia-se etc.

Há que se debruçar sobre isso em outro momento.

Poderíamos falar de personagem? Somente no sentido de que se trata de um actante estado, como diz Matteo Bonfitto em o Ator compositor. Mas, poderíamos dizer mais: personagens-larvares, inspirados em Deleuze. De minha parte, interessam-me os fantasmas famintos. Mas isso é outra história, que tem a ver com minhas buscas dos seres ficcionais.

Cabe também dizer que os ritornelos de Macarena – e é precisamente isso, esqueçamos essa idéia de “partitura de ações físicas” – não servem como fundo para uma caracterização que venha a cobrí-los e, assim, estabelecer a cena/criação teatral. Não há fábula (mas há fabulação). Macarena vem do campo da dança, assim como Fernanda Lippi. Mas abandonam o bailado e a abstração. Entretanto, não chegam a atualizar o jogo completamente numa personagem épica ou psicológica. O aspecto larvar permanece puxando as forças de individuação (que atuam, que ocorrem).

Quando Macarena termina deitada no fundo, exaurida, Pedro Bastos entra, fecha as paredes com pretas, inclusive a do fundo, onde repousa a performer. Estamos agora numa caixa preta. São projetadas imagens no chão – e vemos que isso tem a ver também com a performance de Macarena. Ele se expõe no filtro de uma imagem projetada e incia uma série de ações.

Pedro interage com o universo da mídia com a qual ele trabalha: imagens computadorizadas. Ele pega os papeizinhos coloridos do círculo (papéis post-fix) e vai enumerando três classes de temas: uma cor para as coisas que gosta, uma cor para as coisas que não gosta e outras para as coisas vazias. E vai nomeando sensações, objetos, experiências (parece-me que surgidas na convivência com Macarena num espaço fechado de laboratório). Tudo isso é transformado, sempre no plano do chão, em imagens que se movimentam.

Na conversa aberta ao público posterior às cenas, Pedro Bastos referia-se a seu trabalho como perfomer em termo de “tarefa”. Antes um fotógrafo e um pesquisador de imagens computadorizadas, Pedro Bastos define-se como um performer que opera por tarefas e não propriamente por personagens ou movimento (dança).

Aparecem, aqui, dois procedimentos ou operadores de uma performance como linguagem: a ação do performer como pulsações corporais e como tarefa. São também dois planos de imanência distintos – e no entanto, estão os dois no mesmo plano do corpo manifesto.

Cabe lembrar que grande parte do teatro performativo opera com tais planos de criação. O Wooster Group, por exemplo, entende a ação do performer justamente como uma tarefa a ser realizada: não há interpretação.

Na conversa aberta ao público os performers expuseram as idéias geradoras do trabalho. Pelo que pude entender, partiram justamente de uma imagem de um dos participantes, um biólogo que fazia parte do grupo de trabalho. Ele conta que na escola o castigo era escrever 500 palavras numa bolinha de ping-pong. Ficaram com essa idéia na cabeça e foram se contagiando por outras. Essa a marca essencial de um trabalho colaborativo: o grupo é contagiado por idéias, lembranças, imagens e afectos compartilhados. E o que é mais interassante: nada disso estava representando na cena.

O que pudemos compartilhar é da ordem do irrepresentável.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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