Arte, teatro e política: novos conceitos, novos encontros
Hans-Thies Lehmann, autor de O Teatro Pós-Dramático lançou em São Paulo (06.11.09), no Instituto Cultural Itaú, o seu novo livro: Escritura Política no Texto Teatral (Perspectiva). O lançamento ocorreu no evento Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo. Lehmann participou ainda de mais dois debates, um com o teórico e curador de arte, Nicolas Bourriaud e outro com o filósofo político Paulo Arantes, abrindo também, com uma conferência, a V Reunião Científica da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Abrace). Em todos os encontros Lehmann traçou conexões entre política e teatro, de tal modo que a própria concepção do que vem a ser um trabalho de arte começa a se transformar.
Crítica da representação : teatro político como interrupção do político
O livro, de 413 páginas, consiste numa série de ensaios sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Bücher, Jahnn, Bataille, Brecht, Benjamin, Müller e Schleef. O tema “teatro e política” fez parte de todos os seus encontros, nessa sua visita ao Brasil. Justamente no ensaio que faz parte do Capítulo 1, Interrupção, intitulado “Até que ponto o teatro Pós-dramático é político?”, Lehmann explicita em que sentido essa abordagem deve ser entendida. Primeiramente, Lehmann expõe o que ele entende por ser a idéia predominante e corriqueira de “um teatro que apreende temas discutidos publicamente ou que ele mesmo traz para a discussão, e dessa forma (pelo menos) tem efeito esclarecedor”. E mais adiante questiona tal visão, abrindo frestas nesse campo tão debatido e ao mesmo tempo exaurido em suas forças:
“Diante da permanente apresentação enganosa e cotidiana de questões políticas, que elimina de forma sistemática toda discussão fundamental das normas e modos de interação na sociedade existente, ao mesmo tempo em que se degenera cada vez mais para discursos que talvez sejam corretos, mas que são totalmente padronizados: tudo depende da capacidade de descobrir o que é político onde habitualmente não se percebe nada.”
Lehmann discute o político ali onde o estatuto da representação (política, inclusive) é problematizado: o teatro pós-dramático. Nesse primeiro ensaio, ele define novamente este teatro, que “deveria ser entendido como relação repulsiva que discute o novo teatro com a tradição dramática, iniciado nas vanguardas históricas e nas neovanguardas dos anos de 1950 e 60.” Em todos os encontros, Lehmann referiu-se a esse contexto histórico, marcado pelo caráter de experimentação da linguagem artística, considerado como fonte de renovação do novo teatro.
Haveria, assim, no teatro pós-dramático uma ausência do político? Apesar de referir-se, acredito que por precauções, ao contexto da Europa Ocidental, três aspectos são alinhados por Lehmann no que diz respeito à dimensão política numa perspectiva pós-dramática: a) o político no teatro ocorre sim, mas de um modo oblíquo e não como representação, fábula moral etc.; b) não deve ser passível de tradução para a lógica e sintaxe do discurso político tal como a sociedade se representa e c) deve aparecer, por conseguinte, e de modo aparentemente paradoxal, como interrupção do político. E esta fórmula levaria à “dissolução dos simulacros dramatizados” (p.9). Ou seja, justamente do drama, com seus “conflitos pseudodramáticos e dramatis personae”. Lehmann insistiu diversas vezes: não é representando oprimidos no palco que se chegará a um teatro político. O teatro, diz Lehmann no livro, é do ponto de vista político, “uma prática não da regra, mas da exceção” (p.8).
Uma nova concepção de estética
A vinda de Lehmann mostrou um intelectual inquieto, não dogmático, aberto para o novo, em busca daquilo que pode surpreender. E devo acrescentar: com um grande senso de humor. Poderia resumir essa sua visita de 2009 em três tópicos, que acredito terem sido essenciais e recorrentes nos encontros: a) uma nova definição do que seria um teatro político em termos pós-dramáticos; b) a importância dos coletivos de criação no teatro e de uma ética que tal configuração imprime e c) a migração do conceito de arte centrado, até certo tempo, nas obras, para uma arte definida como convívio e focos de atenção.
Os temas se entrelaçam. O trabalho estético teria menos a função de configurar objetos artísticos e mais a de criar espaços e tempos de convívio. Lehmann mostra que, na falência da representação política, na distribuição e difusão de conteúdos políticos com os mais diversos matizes ideológicos (incluindo fascismos etc.), e ainda diante da falência da própria sociedade, o teatro substituiria a contemplação pela interação. Não se trataria de realizar na cena o que a política faz, mas justamente, a partir da idéia de interrupção, de exceção, de realizar o que a sociedade não pode fazer: o espaço de convívio entre as pessoas. Não se trata, mais uma vez, de representar conflitos sociais e políticos, ou de defender identidades, mas de habitar espaços e tempos de modo contrário ao que a sociedade tem produzido. Porque, afinal, Lehmann faz questão de lembrar a nocividade e o mal-estar da nossa sociedade. Para tanto, o modo de produção no teatro não pode ser simplesmente o de uma “fábrica”, com seu “chefe” e seus “trabalhadores” subordinados, em que predomina a hierarquia e, ao mesmo tempo, procura-se fazer a crítica do capitalismo, como Lehmann denuncia na maior parte das montagens “políticas”. Lehmann volta muitas vezes sobre o contexto cultural do Happening e das novas vanguardas, como exemplo de utopia. Ele vê, nesses movimentos, um ímpeto de renovação da arte. Porém, haveria uma ingenuidade em relação à vontade de mudar o mundo e a ordem capitalista, que hoje não se faz mais possível. Haveria, então, uma consciência de ironia que seria própria de nosso tempo. Veja bem, Lehmann em momento algum sucumbe a qualquer cinismo pós-moderno ou derrocada de valores críticos, pelo contrário. O que ele enfatiza é que não há mais um programa político viável como o dos anos 60. Um programa desse tipo, hoje, seria no mínimo retórico ou, ainda, uma mera representação. O que ele vislumbra e constata, de certo modo, é uma arte que ocupa o lugar que a sociedade, pela sua necessidade mercadológica, não pode cuidar: o espaço e o tempo do compartilhamento, da convivência, da troca. E tudo isso sem abandonar um tom crítico. Na verdade, a arte política de nossa atualidade seria, para Lehmann, essencialmente irônica. Não uma ironia sem compromisso, afirmou Lehmann num dos encontros. Para ele, a ironia vem de uma profissão de fé da necessidade de mudar o mundo, sendo que não sabemos como fazê-lo.
Várias experiências foram citadas nas conferências e encontros. Uma delas, por exemplo, é a de um grupo que realiza a encenação dentro de um apartamento, quando o espectador paga o ingresso e com esse dinheiro o grupo investe na bolsa e, durante o transcorrer do jogo cênico, os atores mostram como essa aplicação evolui. A ironia, a apresentação direta do problema, a convivência não-hierárquica, a exposição dos conflitos, são algumas características desse trabalho. Em Belo Horizonte, penso que o coletivo Conjunto Vazio, pode ser tomado como exemplo disso. Numa das apresentações no Festival Cenas Curtas – edição 2009, do Galpão Cine-Horto, o grupo apresentou a performance Eu me vendo por muito menos do que você paga. Infelizmente, não assisti ao acontecimento, mas tive notícias de que os performadores compraram os votos do público e com isso, ironia, elegeram-se como a melhor cena curta da noite. Ou, ainda, quando o coletivo intervém nas rotatórias da cidade, tomando sol, bebendo água de coco, lendo jornais com trajes de banho etc. Não são representações, mas sim acontecimentos (happenings). Outro coletivo que, em minha opinião, tem trabalhado nessa perspectiva apontada por Lehmann, é a Cia Obscena, que realiza performances nos espaços urbanos, expondo as fraturas do feminino na nossa sociedade. Não se tratam de representações, mas de situações, acontecimentos. Outros coletivos têm se apresentado nesse sentido, nas fronteiras do cênico, como o Poro, nos quais os artistas intervêm nos espaços cotidianos.
Textos filosóficos na cena
Na conferência de abertura da V Reunião Científica da Abrace, diante de uma platéia formada por pesquisadores de artes cênicas vindos das diversas regiões do Brasil, Lehmann enfatizou as relações entre teoria e prática no teatro. Para isso, retomou o conceito de pós-dramático, tendo como contexto a discussão sobre as convergências entre política e estética. Lehmann recoloca a discussão sempre no plano de um teatro no qual o ator é um co-autor e não apenas um “material” da cena. Ele disse que os atores são antes “motores” – no sentido de que movem a criação. Ou seja, deixam de ser referenciais e significantes para uma significação que ocorreria para além de seus corpos e presenças. Ao mesmo tempo, Lehmann realiza uma mudança no conceito de obra de arte: esta estaria migrando da “forma em si” para o que ele chama de “focalização da atenção”. O conceito não foi muito explicado, ele mesmo disse num outro encontro que precisava desenvolvê-lo, mas insistiu muito nessa migração, por vezes referindo-se ao próprio Nicolas Bourriaud, que teria discutido a idéia de uma “estética relacional”, introduzindo um novo termo: a conviviabilidade. Bourriaud está numa linha de questionamento da obra de arte, introduzindo noções como a de errância, precariedade, superação da superfície-volume pela trajetória-viagem etc.
Depois de chamar a atenção para as novas práticas teatrais (emergência dos grupos, dos trabalhos colaborativos e das relações não hierárquicas entre criadores), discutindo também as mudanças produzidas pelo teatro pós-dramático (principalmente pelo fato de ele não ser normativo como o foi o teatro dramático), Lehmann cita experiências realizadas, principalmente na Alemanha, de montagens baseadas em teorias. Ele refere-se principalmente à utilização de textos filosóficos na própria encenação. Há uma citação curiosa de um grupo alemão que encena o Capital de Marx, não como teatro dramático e sim através de pessoas concretas, que vivem suas próprias histórias. Poderia ser entendido erroneamente que Lehmann estaria defendendo um teatro conceitual ou submetido ao conceito. Ao contrário, o que ele mostra é justamente um teatro que pode, nas suas palavras, “fortalecer nossa atenção na vida cotidiana”. E para isso, relembra o barroco, no qual o ser humano era entendido como um ser de afetos, nos sentido de que reage sensivelmente ao mundo. No debate com Paulo Arantes, por exemplo, Lehmann se lembrou da “política dos corpos sensíveis” de Jacques Ranciére.
Pensamento contemporâneo
No meu entendimento, o pensador e teatrólogo mostra uma diferença entre macropolítica e micropolítica. Talvez, entenderíamos melhor essas novas colocações a partir desses elementos. De fato, na bibliografia do livro Escritura Política no Texto Teatral, Lehmann faz referências a Foucault, Deleuze e Guattari, Derrida, entre outros autores contemporâneos que têm apresentado alternativas à representação política clássica. No capítulo citado, Interrupção, no qual ele discute novos parâmetros do político a partir do texto trágico, Lehmann afirma: “vale a fórmula de Derrida de que não se trata da representação do destino, mas sim do destino da representação” (p.19).
O novo livro de Hans-Thies Lehmann organiza os ensaios a partir dos seguintes capítulos: Interrupção, Representabilidade, Drama, O outro Brecht e Estudos sobre Heiner-Müller. As minhas observações referem-se exclusivamente a conjunção entre as conferências de debates de Lehmann em São Paulo e o primeiro Capítulo, Interrupção, particularmente o texto Até que ponto o Teatro Pós-dramático é Político? Ensaios densos, que vão desde o pudor em relação com a “privação da representação”, entre outros temas contemporâneos, mesmo que a partir de textos clássicos em alguns casos. O autor move-se por um pensamento que não é uma mera recognição (reconhecimento do já pensado) e nem mesmo a reiteração do existente, mas sim um encontro com o inesperado, como ele diz, com a exceção e não com a regra. Nesse sentido, arrisco a dizer que seus textos configuram outros acontecimentos.
Referências –
LEHMANN, Hans-Thies. Escritura política no texto teatral: ensaios sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Büchner, Jahnn, Bataille, Brecht, Benjamin, Müller, Schleef. Tradução de Werner S. Rothschild e Priscila Nascimento. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Coleção Estudos; 263).
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