Slavoj Zizek diz que sim. Num artigo da revista impressa Piauí, número 16, Zizek discute a questão: “o capitalismo deve ser combatido por meio de reivindicações impossíveis ou se deve almejar a conquista do poder do Estado?” O título já contém a resposta: Resistir é capitular.
Zizek, depois de considerar que o capitalismo triunfa no planeta e conquista mentes e corações, alinha as alternativas de esquerda:
– aceitar a hegemonia e lutar por reformas (a terceira via);
– preconizar uma resistência a partir dos interstícios dessa hegemonia;
– aceitar que toda modalidade de resistência é fútil e aguarda uma revelação final;
– defender o Welfare State, já que a hegemonia é fato, refugiando-se nos “estudos culturais”;
– transferir o ataque para as lutas cotidianas, de modo que os fundamentos do Estado e do Capital desmoronem com o tempo;
– chafurdar no espírito pós-moderno;
– acreditar que a contradição capitalista produz, paradoxalmente, as condições para uma “democracia absoluta” (Michael Hardt e Antonio Negri estariam nessa posição).
Zizek vai em frente e analisa as opções de tomada do Estado, como o caso de Chaves: treinamento armado de favelados etc. Por fim, sem querer reproduzir a riqueza de seus argumentos (vale a pena ler o artigo), Zizek indica que, a opção das linhas de resistência que focam o cotidiano e procuram reinventá-lo, acaba por deixar o Estado como está: a serviço do capital.
Como ficamos?
1. Penso que são dois planos: um micropolítico e outro macropolítico. No entanto, optar pelas linhas de resistência, ou melhor, de afirmatividade das micropolíticas não significa a negação ou a alienação sobre as vias da representação, da macropolítica, da mudança do Estado. Não discuto, aqui, a saída autoritária de esquerda, que esconjuro a partir de uma frase de Godard no seu genial filme Nossa Música: “matar um homem para defender uma ideia não é defender uma ideia, é matar um homem”.
2. Falemos da política representativa. E acredito que é disso que Zizek trata: a via democrática de tomada do Estado por um projeto de esquerda. Porém, as micropolíticas não excluem essa alternativa, apenas executam seu plano próprio. No entanto, coloca-se a questão: como as micropolíticas poderiam contribuir, por exemplo, para a reforma do Estado? Cito, por exemplo, a gestão Gilberto Gil no Ministério da Cultura que, dentro de um plano macro introduz traços micropolíticos, como é o caso da diversidade cultural.
3. O que faz o diferencial, no atual estágio do capitalismo, é a mudança operada pelo papel do intelectual. Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, no livro Trabalho Imaterial, consideram justamente que o intelectual encontra-se metido no próprio ciclo de produção. Coisas de um capitalismo que se tornou cognitivo, cultural, estético etc.
4. Capitalismo rizomático, coneccionista, como analisa Peter Pál Pelbart, em Vida Capital, a partir dos teóricos Luc Boltanski e Ève Chiapello. O capitalismo teria se apropriado da crítica do Maio de 68, nas vertentes estética e social:
“a intimidade do trabalhador, sua vitalidade, sua iniciativa, sua inventividade, sua capacidade de conexão foi sendo cobrada como elemento indispensável na nova configuração produtiva”.
Apropriação esta que Lazzarato e Negri situam a partir do ciclo produtivo do trabalho imaterial.
5. Como bem disse um amigo, o midiativista Bráulio Brito, do Ystilingue – coletivos autônomos: “nunca, no capitalismo, as condições para a criação de relações anticapitalistas foram tão propícias!”.
É de arrepiar marxistas. Mas Lazzarato e Negri fazem uma análise marxista…
6. O debate interessa aos militantes estético-culturais. Justamente pelo plano que interfere nas políticas macro e de representação de modo imanente: a produção da subjetividade no mundo de hoje. Não há como não considerar, portanto, a nova realidade produtiva e o papéis que cabem à arte e à cultura.
7. Por esses caminhos, penso que, ao se colocar a relação entre cultura e Estado, podemos tomar duas atitudes: uma corporativa, a outra conectiva.
A atitude corporativa procura negociar com o Estado, de modo a garantir espaços de mobilização, direitos etc. Em arte e cultura, isso degenerou em muito para uma política meramente territorial – incluindo todas suas mazelas.
Contrário disso, a atitude coneccionista, que busca justamente criar conexões não previsíveis, estabelecer fluxos criativos, investindo em processos desterritorializantes, numa visão coparticipativa e afirmativa: o que Lazzarato e Negri chamam de liberação das máquinas de subjetivação. Ou seja: em pauta a valorização das singularidades, a inventividade, a cooperação social e solidariedade.
Num modo corporativo, a meta é apropriar-se do Estado para que as massas possam assumir o controle do aparelho, antes privatista etc. Ocorre que não mais nos encontramos somente com o agenciamento de subjetividades do tipo massa (do ciclo de produção fordista e taylorista), mas com multidão (Negri e Hardt) e matilhas (Deleuze).
Dá para entender que as coisas estão mudando?
A atitude coneccionista trabalha com a proliferação de outros sentidos: a construção do espaço público mediante a liberação dos fluxos, das máquinas de subjetivação, isto é, para dizer com Lazzarato e Negri, dos processos de comunicação social. Uma política inclusiva e aberta. Então, o projeto de ocupação do Estado, numa via republicana (afinal, pessoalmente não acredito na tomada do poder por um grupo iluminado que, uma vez lá, declara que toda diferença é inimiga da revolução…), passa por vias solidárias e ao mesmo tempo desterritorializantes.
8. Devemos lembrar que não podemos acalentar ilusões com o mundo gerado pelo capitalismo em seu atual estágio (mais destruição, desfazimento dos laços afetivos, desemprego, guerra por toda parte etc.). Porém, a tarefa da crítica não mais se faz pelo modo ideológico (utilizando as correias de transmissão do capitalismo fordista, invocando sempre uma visão que supriria o mundo de mais racionalidade), mas pela ramificação conectiva, pela afirmatividade. Sua questão, enfim, envolve perceber que o capitalismo, não mais se organizando a partir de um centro, coloca-nos diante de uma mutabilidade ainda maior: a que ponto cada liberação não conecta com o aniquilamento do desejo. Mais uma vez, abandonar posições faz parte da nova arte da guerra.
Tudo isso são apenas anotações às margens dessas leituras. Perguntas que se abrem. Recomendo, portanto, a leitura dos próprios autores:
– Vida Capital de , da editora Iluminuras e Trabalho Imaterial, de Maurizzio Lazzarato e Antonio Negri,da DPA Editora, e o texto de Zizek, Resistir é capitular, na Revista Piauí, número 16, janeiro de 2008. Façam seus mapas.
3 respostas em “Como ficam as micropolíticas: resistir é capitular?”
estou sempre acompanhando o seu blog… se gostar acrescente o meu ai nos seus favoritos..
http://www.ih23.tumblr.com
abraco
Café (Brasília)
[…] assunto em outras postagens, discutindo numa delas economia da cultura e diversidade cultural e noutra os modos de […]
[…] mais outra, dessa vez na esteira de Zizek (veja o post Resistir é capitular?): deixar somente às corporações artísticas a decisão de definir o que pode ou não ser […]