Os braços são esponjas. O coração. A veia torta. A nau enfim descoberta, Nos olhos se faz sinistra presença. Que tempo e nó serão esses? A porta estava aberta e o sofrimento entrou. Injeção letal Pendurando na parede seu vestido Líquido vítreo. Quem escreve a sentença? Eu? Você? As sombras ou as sobras? As cotidianas migalhas de sonhos esmagados? Aves que migram, Cascos e borrascas, Anjos e tintas magras, Escrevam um bilhete para quem amo. Digam que o amor sobrevive a tudo. A quase tudo. Não demorem, Por um segundo se perde o segundo. Num voo ralando suas plumas num chão de corte, Na mão da sorte, A estrela, No começo da estrada, Está partida E me pede que a guie. Visões são sentimentos pagando pensão ao destino. Vá, escreva logo este bilhete! Não deixe que demore. Os ventos ligeiros levarão esta mensagem Ruflando através da noite. Mas podem as palavras alguma coisa? Marília e Dirceu? Miragens são grades que dão para um mar seco. Como pode a palavra ser língua Enquanto míngua o amor nas trincheiras Do dia a dia?
Autor: Luiz Carlos Garrocho
Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.
Quando piso no primeiro degrau do ônibus, deparo-me com a frase “seja bem-vindo”. Curti aquilo e cumprimentei o motorista: – Bom dia! E ele me devolve outro “bom dia” com um sorriso impressionante, muito raro de se ver nas paisagens que habitamos, nas quais o mau-humor, quando não a ironia corrosiva, tem sido um afeto dominante.
Ocorre que, ao passar por aquele senhor de cabelos brancos e sorriso iluminado, veio-me a lembrança do Cigano, o motorista que contagiava a nós, garotos da década de 60. Cigano era um jovem por volta dos seus vinte anos, com imensas costeletas, a camisa um pouco aberta e uma colar tipo corrente no pescoço.
É só mais um dia que vai
A parte da frente do ônibus, anterior à roleta e onde fica o motorista, começa a encher sem parar. Ali se juntam algumas pessoas idosas que não têm o cartão de passe livre e devem descer pela porta da frente, e mais alguns e algumas jovens que provavelmente não pretendem pagar passagem. Tarde de um final de recesso escolar. Os corpos e as sensações flutuam dentro do coletivo de transporte.
A moça de musculatura forte, quase certo que por natureza ou trabalho, está de short e senta no colo de uma outra, também de short. A roupa é mínima. O olhar dessa que se senta no colo da outra é vago e parece não estar ali, naquele ônibus, naquele momento. Olha à frente e para o lado através da janela como se nada existisse, ao mesmo tempo em que está atenta, de algum modo, ao seu entorno. Diria que ela, se provocada, encara e bate – uma suposição apenas. Parecem personagens de algum filme futurista que entraram ali. Por outro viés, esse que escreve é um personagem do passado e não entende nada do que está se passando nesse mundo que lhe advém. Um modo de ver e sentir deslocado é salutar e potente quando não é um julgamento. Pois permite o estranhamento de si e de tudo em volta.
Do terror e do medo em 1964 à comemoração, em 2019, do regime que perseguiu, torturou e matou
Passei parte da minha infância, adolescência e juventude sob a sombra temida do regime de ditatura militar, deflagrada nos seus termos em 1 de Abril de 1964, mas registrada como ocorrendo em 31 de Março (para não ser associada ao dia da mentira). O atual (des)governo adiantou-se para emitir uma ordem do dia que foi lida nos quartéis do país como comemoração e exaltação da intervenção na vida civil do país.
Marx dizia que a história acontece pela primeira vez como tragédia e a segunda como farsa . Diria, este que vos escreve, que 1964 foi pode ser o elemento trágico, e a volta dos militares ao poder em 2019, desta vez pela via eleitoral, em que comemoraram o 31 de março de 1964 como um movimento que “salvou a democracia”, uma farsa.
Entretanto, cabe aqui os parênteses de uma advertência quanto ao uso do nome “tragédia”. A mídia e o uso impensado o associam a acidentes terríveis, desgraças naturais ou provocadas. Penso que a expressão de Marx não se situa nesse plano equivocado – ele falava de Napoleão como o caso trágico e seu sobrinho Luis Napoleão, posteriormente, como a farsa. Contrário desse uso diluído, penso que Marx via o trágico enquanto forças desmesuradas – permito-me a essa visão, que não são estranhas ao humano, já que para ele os homens fazem a história, porém não a fazem como querem simplesmente. Já o segundo acontecimento, a repetição, surge como farsa. Trata-se de um comentário sarcástico em que não se pretende, acredito, universalizar e ver nos movimentos cíclicos uma lei.
O golpe de 1964 foi trágico? Diria que sim com algumas reservas, para perder a força do conceito tão caro a este que voz escreve, diria que sim. Pois que não tanto pela violência que se abateu sobre a vida democrática do país – o que nos levaria a pensar em acidente ruim, em desgraça. Pois que o trágico é exaltação da vida no embate de forças desveladas pelo ímpeto dionisíaco, por onde a derrocada é conhecimento terrível. Se pensamos nos discurso de João Goulart, nas vésperas do golpe, veria aí toda uma via trágica que o filme de Glauber Terra em Transe, orquestrou com virulência barroca. Sem poder aprofundar nesse tema, volto-me para o 31 de março de 1964 e em 2019.
Para justificar o golpe militar de 1964 fabricou-se na embaixada dos EUA a narrativa de que o governo João Goulart era comunista e pretendia instalar uma república socialista-sindicalista no Brasil. Imprensa, empresariado e uma ampla classe média conservadora embasaram e promoveram essa narrativa. Uma perseguição violenta se deu, aumentando ao passar dos anos: censura, prisões, torturas e assassinatos cometidos pelos agentes do Estado.
A última vez
Refugiado no instante
dou de cara com um antigo sonho rasurado,
colado no ponto de ônibus.
Inventaram meus olhos,
(mais uma vez)
a palavra
Saudade.
Esquecida de si,
que alguém achou de encontrar
mas não conseguiu ler.
Pois de um papel gasto e um pouco rasgado,
sobrevive enquanto se apaga seu testemunho inacabado.
Com o desenho dos percursos
a perguntarem por qual modo de descaminho
a poesia escreve e canta um destino,
quando o vento nas calçadas
já não varre mais
(como no cinema)
folhas
soltas
de um jornal.