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As linhas desejantes de uma vida fascista: O Conformista, de Bertolucci

 

Rever O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci, depois de tantos anos, foi uma experiência tão fascinante quanto intrigante. A questão que permanece: a análise das motivações para uma pessoa aderir ao fascismo. E mais ainda: o que seria uma existência fascista, afinal?

O fascismo, mais do que uma ideologia específica (contra a democracia, o parlamentarismo e também contra o socialismo, sendo que o indivíduo se conforma ao coletivo, à corporação e ao Estado), é uma atitude existencial-política. É o que mostra Michel Foucault em Introdução à vida não fascista:

“o inimigo maior, o adversário estratégico (…): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.”

Marcello (Jean Louis Tringnant) é um intelectual que procura o seu amigo cego,  ideólogo do Partido, para aderir voluntariamente ao fascismo. Ao mesmo tempo, pretende-se casar. Seu amigo pergunta o motivo  e ele afirma: para ser uma pessoa normal. Uma pessoa que, segundo ele, ao ver o traseiro de uma mulher, olha para trás, admira e segue em frente. A trivialidade de uma vida como a de qualquer um. Marcello quer ser igual e, como todos os iguais, eliminar em si e nos outros toda e qualquer diferença.

O filme transcorre sobre duas linhas principais:  de um lado, a história de vida de Marcello, assediado por um motorista de família aos 13 anos,  o pai que fora um torturador e que se encontra num asilo de loucos e a mãe, uma decadente burguesa viciada em morfina, dependente de um explorador que lhe fornece a droga. Do outro lado, a lua de mel e a incumbência, ao mesmo tempo, de eliminar um dissidente em Paris, seu antigo professor de filosofia. Ele se envolverá com a jovem e bela mulher do professor, interpretada por Dominique Sanda. Uma relação carregada de erotismo e ambiguidade, pois ela desconfia das intenções de Marcello e suspeita que algo de muito ruim possa ocorrer com essa visita. No entanto, não resiste e é atraída por ele. Chega a lhe suplicar: não nos faça mal.

O importante é que todo esse background não funciona como um mero retrato psicológico de um fascista. Bertolucci não cria, a partir do conto de Alberto Moravia, uma análise de contexto, seja psíquico ou social. As duas coisas se implicam de um modo indiscernível. O passado de Marcello não explica suas motivações, mas continua atuando sobre ele, atualizando-se a cada momento, a cada passo.

A obra articula os tempos e as intrincadas linhas de um desejo que se singulariza como fascismo. O que mais me chama a atenção no filme são os motivos e seus contramotivos, as imagens e sonoridades que se reforçam, se afastam e se contrapõem. Belíssima a cena em que todos dançam numa casa de baile, em Paris, quando o protagonista vai sendo enrodilhado e apertado no centro do movimento. Ou no momento do assassinato, em que a força estética se opõe ao horror da mulher perseguida e à covardia e frieza do seu amante.

Marcello viverá o momento da queda da ditadura fascista. Reside aqui uma chave interessante de leitura sobre o fascismo e suas motivações. Convidado pelo antigo amigo, cego e ideólogo, eles irão se encontrar no meio das manifestações populares contra o regime deposto. E nesse momento ele se depara com o motorista e sedutor da infância, já mais velho e decadente, fazendo o mesmo jogo com um viciado que vive nas ruas. Aos gritos ele o denuncia como fascista, acusando-o também de pederasta e assassino do professor e de sua mulher, mortos anos atrás. Em seguida, transtornado, passa a chamar, também aos gritos, o seu amigo cego de fascista.

Alguns entendem que Marcello é mais um conformista do que um fascista, pois agora, ele mudará de lado para sobreviver e continuar obtendo cargos.  O título, O Conformista, reforçaria essa perspectiva. Nada mais equivocado: reside nisso mesmo, segundo nos presenteia Bertolucci, o traço essencial da experiência fascista. Não é uma questão de ideologia somente, mas essencialmente, de desejo. O conformismo do personagem não pode ser isolado do fascismo que se aninha e cresce dentro dele.

Poderíamos comparar o fascismo de Marcello com o do capanga e policial, que serve de motorista, na cena do assassinato. Ele irá deplorar a covardia de Marcello, incapaz de realizar o ato pelas suas próprias mãos, para isso contratando um bando de matadores. Finda a emboscada e enquanto urina na neve, afirmará sua intolerância contra esquerdistas, pederastas e judeus. Poderíamos pensar, por aí, que o verdadeiro fascista é este e não Marcello, que seria apenas um fraco tentando se conformar à situação. Essa interpretação é um equívoco.

A experiência de uma vida fascista realiza-se nas singularidades dos encontros. É o que O Conformista nos convida a ver. Por isso, as duas vidas fascistas não são idênticas e, portanto, não são comparáveis. O fascismo do capanga, não estando em foco no filme, não nos permite ir além do que está delineado. Ele apenas faz a figura de fundo. Poderíamos entendê-lo em sua linha segmentada, molar, miitante. Mas o de Marcello não, este nos é desdobrado em minúcias. Bertolucci, seguindo e modificando o romance de Moravia, mostra o fascismo como um acontecimento e um encontro do corpo.

Como tudo isso é estranho: o fascismo como uma singularidade. E que procura extorquir e estrangular todas as singularidades. E com isso só consegue gerar monstros frios, desejos lúgubres e burocracias. Seu triunfo sobre o outro é o pavor de si mesmo como outro.

Exemplo disso é a cena final do filme, que não retrata o romance de Moravia, sendo uma modificação introduzida por Bertolucci. Neste, o protagonista e sua família morriam com tiros de um aeroplano. Numa entrevista de relançamento do filme em 2008, Bertolucci disse que isso soava como uma condenação moral. Escolheu, então, colocar Marcello nesse desespero, em meio à multidão que celebra o fim do regime fascista. Para logo em seguida,  depois de acusar os outros – seus outros – como fascistas, sentar-se ouvindo a música da vitrola, movida a mão pelo rapaz da rua. O vínculo desejante é a chave. As duas imagens se tocam, mas não se explicam.

O debate ideológico, com seu antagonismo apaixonado, não nos permite perceber como o fascismo se aloja em nossas vidas. Principalmente quando estamos “protegidos” por algum semblante iluminista, progressista ou de “esquerda”. Ao contrário, o fascismo infiltra-se no desejo, ele é desejo.

Foucault, então, se pergunta:

“Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?”

Sim, como fazer para não “amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”? Foucault presenta a estratégia  de Deleuze e Guattari: pois, se “os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma”, estes pensadores,  “espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.”

A obra Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia realiza, para Foucault, esse projeto. Não através de uma totalização teórica, que daria a última e mais atual resposta, mas sim pelos caminhos que se configuram como “ars erotica, ars theoretica, ars politica.”

É o que Bertolucci faz, ao seu modo, em O Conformista: ele espreita a singularidade de uma vida fascista, implicada nas suas linhas desejantes.

Referências –

– Il Conformista (1970) – Diretor: Bernardo Bertolucci – Elenco: Jean Louis Trintignant, Stefania Sandrelli, Gastone Moschin, Enzo Tarascio, Fosco Giachetti, José Quaglio, Dominique Sanda, Pierre Clémenti, Yvonne Sanson. Produção: Maurizio Lodi-Fe Roteiro: Bernardo Bertolucci, baseado em romance de Alberto Moravia Fotografia: Vittorio Storaro Trilha Sonora: Georges Delerue.

– FOUCAULT, Michel. Introdução à vida não fascista.

Bertolucci: Interview. – The Guardian,

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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