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As linhas desejantes de uma vida fascista: O Conformista, de Bertolucci

 

Rever O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci, depois de tantos anos, foi uma experiência tão fascinante quanto intrigante. A questão que permanece: a análise das motivações para uma pessoa aderir ao fascismo. E mais ainda: o que seria uma existência fascista, afinal?

O fascismo, mais do que uma ideologia específica (contra a democracia, o parlamentarismo e também contra o socialismo, sendo que o indivíduo se conforma ao coletivo, à corporação e ao Estado), é uma atitude existencial-política. É o que mostra Michel Foucault em Introdução à vida não fascista:

“o inimigo maior, o adversário estratégico (…): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.”

Marcello (Jean Louis Tringnant) é um intelectual que procura o seu amigo cego,  ideólogo do Partido, para aderir voluntariamente ao fascismo. Ao mesmo tempo, pretende-se casar. Seu amigo pergunta o motivo  e ele afirma: para ser uma pessoa normal. Uma pessoa que, segundo ele, ao ver o traseiro de uma mulher, olha para trás, admira e segue em frente. A trivialidade de uma vida como a de qualquer um. Marcello quer ser igual e, como todos os iguais, eliminar em si e nos outros toda e qualquer diferença.

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Anotações sobre recusa, resistências e culturas afirmativas

1. Quando penso nas estratégias de recusa, tomo por caminho a Poesia da Recusa, de Augusto de Campos. O poeta e performer Ricardo Aleixo foi quem deu a dica da leitura. Logo na abertura do livro, Augusto lembra Valéry, dizendo que “o trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por meio de recusas”. A recusa opera em linhas estéticas e éticas. Augusto de Campos lembra que, em poesia, as duas estão entrelaçadas.

Do músico John Cage ao criador teatral e filmaker Carmelo Bene: trilhas de recusa.

2. As micropolíticas tiveram expressão e força em Foucault. Ele distingue, por exemplo, entre os vários regimes de técnicas, dois tipos que são as técnicas de poder e as técnicas de si. Assim, temos:

“as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito; as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos deser; de transformarem-se a fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade.”

3. Foucault coloca também uma nova forma de luta política: não somente aquelas que se estabelecem no âmbito das classes, dos grupos em vias do poder, mas contra as formas de assujeitamento. Por fim, ele antevia uma região em que as técnicas de poder misturam-se às técnicas de si.

Foucault explicita, num texto que discute o sujeito e o poder, as lutas micropolíticas: a) são lutas transversais: não se confinam a países, governos específicos etc. b) não são lutas que visam os efeitos do poder, mas antes criticam o poder não controlado sobre os indivíduos, sobre os corpos etc;c) são lutas imediatas: não questionam a instância distante de poder, mas a que está envolvida diretamente;d) são lutas que questionam o status do indivíduo: o que os restringe quanto às suas escolhas, o que define para si uma identidade, o que os separa dos outros indivíduos, e todas as formas de assujeitamento;e) giram em torno da questão: “quem somos nós?”

4. Porque a política antecede o ser, diz Deleuze. Já estamos, sempre, numa situação política. Porém, a macropolítica não é a detentora do plano de exercício politico. Não cobre os territórios, mas realiza capturas – ou melhor, apropria-se das forças da vida. E não são a fonte de inspiração micropolítica. Porém, não vamos pensar que as políticas que funcionam num plano de representação são más. Estão aí, no plano da vida, exercendo poder. A questão do fortalecimento da participação na esfera macropolítica pode ser uma contribuição micropolítica? Penso que isso é possível, mas não reduz ou delimita a ação dos movimentos micropolíticos.

5. Por outras linhas, proliferam as culturas afirmativas. Não são se opõem às recusas. Culturas afirmativas, aqui, estão no lugar de culturas de resistência. As micro-políticas procuram sair da lamúria e, no mínimo, diriam com o sambista Ismael Silva: tristezas não pagam dividas. Não estamos falando de identidades: A=A que não B. Estamos falando da substituição, nas culturas afirmativas, do “é” pelo “e”. A série projeta-se a caminho, não pára num retrato. As culturas afirmativas não coincidem consigo mesmas, mas com suas transições (Brian Massumi). As micropolíticas tem a ver com o incremento da potência de agir (Spinosa).

6. Quanto às culturas afirmativas, tomo de Antônio Negri uma bela definição, a partir de Spinosa:

“Gostaria de dizer enfim que a redescoberta de Spinoza que devemos a Deleuze e a Matheron nos permite viver “este” mundo, isto é precisamente o mundo do “fim das ideologias” e do “fim da história”, como um mundo a reconstruir. Ela nos mostra que a consistência ontológica dos indivíduos e da multidão permite olhar para frente cada vez que a vida singular, como ato de resistência e de criação, emerge. E se os filósofos não gostam da palavra “amor”, e se os pós-modernos declinam dele seguindo a idéia de um desejo fenecido,nós, que relemos a Ética, nós, o partido dos spinozistas, nós ousamos sem falso pudor falar de amor como amais forte paixão, uma paixão que cria a existência comum e destrói o mundo do poder.”

7. Penso, além disso, nos movimentos e militâncias estético-culturais, de como configuram respostas à questão da economia da vida. De como as novas gerações enfrentam o problema. Penso nas recusas das gerações que trilharam esse caminho. E no massacre que muitas viveram. E, ainda, das novas cooptações, das vanguardas estabilizadas etc.

O fascismo e o stalinismo foram obscuridades que o capital lançou mão em determinado momento. Um novo momento do capital no pós-guerra e a rebelião jovem toma conta das democracias do planeta. Refluxo do capital e cooptação dos melhores sonhos nas décadas seguintes. Estabilizam-se as vanguardas, ou elas insuflam mudanças no modo como o capital se faz acumular, principalmente através da arte e da cultura. Novos movimentos surgem nas lutas anti-globalização, justamente quando acreditava-se que nada novo ocorreria em termos de rebelião jovem.

8. Em outras palavras: a pressão da produtividade econômica sobre as novas gerações. Na década de 60, pela via alternativa e na abertura de possíveis que o capital utilizou como estoque de invenção para os anos de refluxo do dinheiro. Um novo movimento surgirá das filas dos jovens desempregados na Inglaterra: o punk. E o capital se desterritorializa mais e mais. Desmaterializa tudo. Inclusive a arte. Ocorre que o emprego acabou. O filósofo Gilles Deleuze deu a dica: estamos não mais nas sociedades disciplinares (Foucault), mas nas sociedades de controle (de tudo, do fluxo de informações, das atitudes que podem gerar novos processos de acumulação…). Não que aquelas não continuem atuando, mas inserem-se em algo mais complexo: O morcego e a mariposa: ela inventa a queda rodopiante e vertical, fingindo-se de morta, para fugir do predador e ele aprende a queda livre em quebradas de asa para pegar sua presa.

As lutas geracionais recolocam em pauta as questões dos valores simbólicos frente aos valores econômicos. As modalidades pré-fabricadas do desejo procuram definir nossa entrada no mundo em termos de sexualidade, saber de corpo, estética, ética. As estratégias de recusa, de resistência e das vias alternativas procuram responder a esta questão.

9. Não que seja um problema “jovem”. Aliás, alguns fazem crer que se trata disso. È um problema da vida e da renovação de suas forças. As respostas que temos encontrado nas militâncias estético-cultuais estão dizendo que habitar o planeta não é um plano pré-traçado pela junção valores e acumulação de capital. Há mundos possíveis. Recusas, resistências, afirmatividades e alternativas estão mostrando isso.

Referências:

Foucault, M. El sujeito y el poder. Traducción de Santiago Carassale y Angélica Vitale.

__________. As técnicas de si. In: Université du Vermont, outubro, 1982; trad. F. Durant-Bogaert).Hutton (P.H.), Gutman (H.) e Martin (L.H.), ed. Technologies of the Self. A Seminar with Michel Foucault. Anherst: The University of Massachusetts Press, 1988, pp. 16-49. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813, por Wanderson Flor do Nascimento e Karla Neves. Disponível no site do Espaço Michel Foucault.

Negri, Antonio. Uma filosofia da afirmação. In Spinosa e a Filosofia: Leitores de Spinosa.

Campos, Augusto. Poesia da Recusa. Perspectiva: 2006, São Paulo.

Foucault: vida como arte

Imagem de Bruce Jackon

“O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas.

Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar em uma obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?”

Michel Foucault

Alguns links para Foucault: Vikipédia/ Espaço Michel Foucault/ Foucault-Archive / Bibliografia básica