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Seminário do Projeto Laboratório: textualidades cênicas contemporâneas

Promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte, através da Fundação Municipal de Cultura/Diretoria de Teatros, com curadoria de Fernando Mencarelli e Nina Caetano, o projeto Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas cumpriu sua primeira etapa, a realização de um seminário com especialistas da área, focando os teatros pós-dramáticos, a cenas hibridas, as interlinguagens e as dramaturgias da cena. A segunda etapa inicia-se com pesquisas e oficinas nos espaços do Teatro Francisco Nunes, com apresentações artísticas em novembro de 2007.

No dia 18/08, Luiz Fernando Ramos, encenador, dramaturgo, crítico e documentarista, professor da USP, falou sobre Mimese, estética e cena contemporânea. Ele começou apresentando o conceito de mímese numa perspectiva filosófica. A mímese, que difere da diegese, por ser a primeira uma narrativa direta sem mediação e a segunda uma narrativa indireta, quando alguém diz de algo para outro alguém, era tomada por Platão como imitação de uma imitação. Já que o mundo sensível é uma cópia das idéias originais, a mímese dos artistas era, portanto, uma cópia da cópia. E, por conseguinte, sem valor para a educação da juventude.

Já em Aristóteles, prossegue Luiz Fernando, o poeta – o fazedor de mundos – ocupa um lugar diverso. Em vez de ser desvalorizada, a mímese favorece o aprendizado. A catarse que ela provoca, em termos de piedade e pavor, colocaria as pessoas da cidade em contato com suas próprias realidades, diria, projetadas à sua frente. A mímese em Aristóteles tem a ver com a potência de reprodução da vida – o verossímel. E não com o conceito de adequação, como seria posta pelos neo-clássicos, no século XVII. Como tekné, a arte é uma capacidade igual a da natureza, que o poeta, portanto, domina. A mímese, surge, assim, numa ambivalência: de um lado, tomada como cópia, do outro, tomada como capacidade produtiva.

Ramos, então, passa a focar o pensamento de Kant, para o qual a arte deixa de possuir um sentido finalista, tornando-se um jogo livre entre imaginação e entendimento. Torna-se, assim, livre das regras neoclássicas, que haviam capturado a mímese como adequação com uma realidade. O conferencista passa por Wagner e Nietzsche, apontando, por fim, para o movimento anti-mimético e anti-teatral, que irá caracterizar o século 2o. Para Luiz Fernando, esse movimento será basicamente anti-teatral, no sentido de colocar em crise a representação. Artaud, por exemplo, diria que se trata não mais de repetir a vida (o que faria o conceito de mímese como imitação), mas de reinventá-la (o que poderia, sob outra visada, ter a ver com mimese como produção de vida). O que Luiz Fernando conecta imediatamente com Brecht, por outra via: o social como invenção e a cena intervém na produção dessa re-invenção.

Luiz Fernando Ramos abordou, ainda, Beckett, que seria um artista emblemático da crise da representação. Perpassa, então, por toda uma gama de artistas que questionam o estatuto da imitação, chegando a discutir A encenação que Henrique Diaz fez de A Gaivota, recentemente no Brasil (2007). Nesse espetáculo, os procedimentos de construção da personagem, que deveriam ficar de fora, fazendo parte somente do processo, entram no resultado, na cena. E, antes de tudo, influenciam na narrativa. Ou seja, tornam-se narrativa. Aqui, ocorreria, segundo Ramos, uma cena fracassada (que não se completa, numa visão positiva) aguçando a crise da representação. A mímese, entendida como potência de vida e não como adequação do objeto a uma verdade ou realidade que lhe é exterior, pode ser, nas trilhas traçadas por Luiz Fernando Ramos, um modo de ver a crise da representação.

No dia 14, seria a conferência de Fernando Villar, autor, diretor, ecenador e ator, lecionando na UnB, que falaria sobre sobre as Dramaturgias Híbridas. Infelizmente, Villar ficou impedido de vir por causa de um pequeno acidente, antes de sair de Brasília. Foi acertado, então, sua vinda no dia 10 de setembro, a fim de as pessoas possam partilhar de sua apresentação sobre o tema.

Nesse dia, o curador Fernando Mencarelli, para que as pessoas não perdessem a viagem, apresentou um vídeo sobre Tadeuzs Kantor, A Classe Morta, e um trecho de The Dead Dream of Monocleone Man, do grupo de Teatro Físico inglês, DV-8. Discutiu-se as especificidades dessas narrativas e suas relações com a análise que Lehmann faz do que ele denomina teatro pós-dramático.

Dia 15 foi a vez de Christine Greiner, que abordou a Reinvenção do Corpo no Japão do pós-guerra. Greiner exibiu imagens de quatro experiências corpóreas sobre a mulher na cena janonesa: a mulher/atriz no Teatro Nô, o homem que faz o papel de mulher no Kabuki, Hijikata com a performance intitulada A Menina e um Anime, no qual o corpo da mulher se camufla com o ambiente. Christine Greiner avança sobre a noção de impermanência na cultura japonesa, abordando especificamente a cena do pós-guerra. A recusa de Hijikata, quanto ao corpo samurai, assim como em relação ao corpo nacional e, ainda, aos modelos ocidentais, é apresentada por Greiner e discutida mais demoradamente: um corpo precário – um corpo cadáver. O contexto da cultura japonesa do pós-guerra teria, segundo Greiner, impulsionado nessa direção: o Imperador é obrigado a renunciar como ser divino e assumir sua condição humana. A idealização dos corpos que vimos no Nô e no Kabuki depara-se com outro plano corpóreo: corroído e atravessado por todo tipo de forças. Vendo a projeção em vídeo da performance de Hijikata pude sentir o que Deleuze e Guattari entendem por Corpo sem Órgãos.

O público, composto por artistas de dança, teatro, performance e outras áreas, discutiu muito, também, a modernização do Japão, a questão das identidades culturais, voltando, ainda, às informações sobre o estado da arte da cena vanguardista japonesa.

No dia 16, Houve a mesa redonda com a presença dos criadores da cena contemporânea belo-horizontina. Falaram Inês Kinke, artista plástica e criadora cênica, Ione Medeiros, do Grupo Oficcina Multimédia, Tarcísio Ramos e Gabriela Christófaro, bailarinos-criadores. A mediação foi dos curadores Fernando Mencarelli e Nina Caetano.

Ione Medeiros expos um breve histórico do Grupo Oficcina Multimédia, sua origem , sua criação nos anos 70 pelo músico Rufo Herrera, como um grupo de pesquisa da Fundação de Educação Artística, liderada esta pela musicista Berenice Menegalle. Traçou as suas influências e motivações estéticas que levaram à criação de uma cena outra: os procedimentos sincréticos (eliminação de toda informação supérflua, ilustrando-o com o desenho do Touro de Picasso), de distorção, como é o caso da caricatura, e de assimetria (exemplificando com a escultura de Alber Giacometti). Ione ainda falou da ruptura com a visão tradicional da personagem no drama teatral, apresentando, no seu lugar, festos e movimentos que ampliam o foco, além do desenvolvimento de funções práticas na cena (carregar coisas etc.), passando pela música e pelo ruído como elementos dispostos não hierarquicamente, juntamente com a imagem, o texto falado e os objetos. Trata-se, como ela disse, da criação de uma tessitura interdisciplinar.

Tarcísio e Gabriela falaram desse lugar fronteiriço entre teatro e dança, na busca por uma dramaturgia da dança. Tarcísio enfatizou as seguintes linhas de abordagem da questão: a) a dramaturgia do corpo do bailarino; b) a dramaturgia da cena; c) a da cena como pontos estruturados em conexões com os demais elementos; c) a dramaturgia de fundo, como sendo o inconsciente do espetáculo, com seus silêncios e pausas e a dramaturgia que, se não me engano, refere-se ao que está sendo feito diante do público.

Inês Link, uma artista plástica alemã que vive em Belo Horizonte, explorou sua conexão com as artes cênicas a partir das questões relativas à instalação. Sua questão ou pergunta: como o espaço pode afetar fisicamente os atores. Para ela, trata-se de saber como as materialidades influenciam os atores na criação. Ela procura convidar o público a adentrar no jogo cênico tomando, para tal, uma composição cênica que trabalha com a justaposição de realidades heterogêneas. Um pensamento de criação que passa por uma nova percepção da realidade. Além disso, Inês expõs suas pesquisas em que pensa a cidade de modo cenográfico: ocupações, instalações, percursos etc.

Laboratório é o nome desse projeto. A segunda parte vem com as oficinas de Antônio Araújo e Fernanda Lippi para os Núcleos de Criação, com apresentações artísticas em Novembro de 2007.

Para saber mais:
Sobre Buto:
Vídeos sobre performances de Hijikatta no YouTube
BOGÉA, Inês (ed.) e Luisi, Emidio (fotos) Kazuo Ohno. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.
GREINER, Christine. Butô – Pensamento em Evolução. São Paulo: Escrituras, 1998.

BAIOCCHI, Maura. Butoh – Dança Veredas D’Alma. São Paulo: Palas Athena, 1995.

Sobre Teatro Pós-dramático:

LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. New York: Routledge, 2005.
COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.

Sobre a retomada do conceito de Mímeses:
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade: formas das sombras. RJ: Graal Editora, 1980.

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Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas


Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas é um projeto realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Fundação Municipal de Cultura. O projeto divide-se em duas partes: I. Seminário com conferências sobre temas dos teatros pós-dramáticos, das dramaturgias da cena e dramaturgias pós-textos (aberto ao público em geral); II. Oficinas de Criação para grupos ou núcleos de bailarinos e atores que irão realizar performances nos espaços e entornos do Teatro Municipal Francisco Nunes (veja oEdital de Seleção para inscrição). Os grupos/núcleos selecionados terão agenda, acompanhamento conceitual, artístico e cenotécnico para suas realizações, além da divulgação.

A curadoria é de Fernando Mencarelli (UFMG) e Nina Caetano (UFOP-MG). Para o Seminários, o projeto contará com a presença de Christine Greiner (PUC-SP), Luiz Fernando Ramos (USP) e Fernando Villar (UnB), contando, ainda, com uma mesa redonda com criadores cênicos. As oficinas terão acompanhamento do diretor Antônio Araújo (Teatro da Vertigem) e da coreógrafa Fernanda Lippi (Zikizira Teatro Físico).

As inscrições são gratuitas para as duas fases.

O projeto faz parte da ação Arte Expandida – experimentação nos Teatros Municipais.
Uma de suas características essenciais é a articulação entre formento e formação em artes cênicas, compreendendo a explosão de suas fronteiras, incorporando hibridismos e entre meios, além de focalizar novas relações entre público e criadores, considerando, ainda, os espaços não convencionais. Outra característica do projeto é o investimento na autonomia dos atores e bailarinos, tomados como criadores.

Outras referências:
Performance e Tecnologia –
Renato Cohen e a criação cênica em processo –

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Renato Cohen e a criação cênica em processo – do Overmundo

Há um livro que sempre indico para as pessoas que desejam conectar-se com as pesquisas cênicas contemporâneas, tais como a de um teatro contaminado pelas outras mídias (dança, música, artes-plásticas), tomado pelo hibridismo e que foge às categorizações: Working in progress na cena contemporânea, de Renato Cohen.

O autor, que se encantou em 2003, é um pensador-criador do teatro experimental, que ele denominava nos últimos escritos de pós-teatro: um plano de criação intermídias, processual e instável. Cohen traçou caminhos em zig-zag, desnorteando referências por demais fixas, avizinhando-se de zonas fronteiriças, imprimindo um teatro gestual, de forte impacto visual e sonoro.

Trouxe para a cena o mito e o ritual, não de modo ilustrativo, mas sim ao modo de uma produção desejante, de um agora carregado de passado e futuro.

Cohem aponta para um procedimento de criação cênica que não se faz mais como obra acabada, mas como obra em processo. Isso não quer dizer que ela seja mal-acabada, mas sim que, em ressonância com o espírito de época, sua incompletude passa a ser a sua virtude. A obra em processo rompe com séculos de tradição artística ocidental, instaurando uma arte corroída pelo seu próprio discurso. Paul Virilio mostra, a respeito da contemporaneidade, que a arte torna-se acidente. Porém, acrescenta, as obras de arte caminham, em sua maioria, sem saber desse fato. Não se trata de uma visão catastrófica.Virilio mostra que tudo já é acidente – só falta tomar conhecimento disso. E tal fato deveria ser visto como uma positividade. Nesse sentido, a obra processual de Renato Cohen incorpora as vicissitudes do trajeto, a incompletude dos significados, o atravessamento de multiplicidades, produzindo uma cena outra, na qual o acidente configura uma realidade existencial.

A pesquisadora de artes cênicas, Sílvia Fernandes, aponta alguns dos procedimentos utilizados por Cohen: a) narrativas sobrepostas; b) noção de obra progressiva a partir do corso-ricorso, tomado de James Joyce; c) variáveis abertas num fluxo livre de associações, evitando assim o fechamento do sistema, como ocorreria, por exemplo, com o texto dramático; e d) leitmotiv condutores. Tais procedimentos substituem o desenvolvimento dramático, procedimento clássico do teatro. Cohen cita, constantemente, a arte minimalista, com suas fases e defasagens, com o uso de repetição que varia na sua diferença e que instaura planos meditativos.

Para os atores e performers, Cohen faz uso de diversos instrumentos, desde aqueles que foram transmitidos no âmbito da atividade artística, quanto daqueles que veem do ritual, como o caso do xamanismo. A performance, para Cohem, é tanto um campo sombrio e sinistro, carregado de ironia, quanto uma viagem de iniciação – daí suas constantes referências na obra do artista e performer Joseph Beuys. Uma iniciação que não se dá em moldes pré-estabelecidos, mas a partir das próprias mitologias pessoais dos performers no encontro com as forças que atravessam a sensibilidade contemporânea.

Renato Cohen fez vários espetáculos que fundiram na cena tais princípios e procedimentos: entre eles, a sua estreia nos anos 80 com Magrite, espelho vivo (1986), Sturm and Drang/Tempestade e Ímpeto; merecendo destaques, ainda, sua parceria com Peter Pál Pelbart e Sérgio Penna, junto com usuários do sistema de saúde mental, com Ueinzz, Viagem à Babel (1997)e posteriormente, Gothan SP (2001).

Tive a oportunidade de assistir a uma conferência e oficina de Renato Cohen, no Centro de Cultura Belo Horizonte, em 2001, no projeto Seminário. Perguntei, então, a Renato, como ele definia a dramaturgia (nessa visada que entendemos como sendo de um teatro pós-dramático), ele responde na velocidade de um raio:” é hipertexto, você entra num lugar e já cai em outro”. Porém, posso entender que ele não dizia simplesmente de uma alternância de paisagens, mas sim de uma coexistência não linear e não hierárquica das diversas imagens, que não têm a função de se explicar ou de se traduzir mutuamente.

O seu livro de estreia nos anos 80 (reeditado em 2004), Performance como linguagem, trouxe o campo da performance art, abrindo perspectivas sobre estética contemporânea e criação cênica. A sua pesquisa mais recente, interrompida pela sua morte, referia-se às relações entre performance e tecnologia na era da técnico-cultura. Working in progress na cena contemporânea, o seu último livro, é um caixa de ressonâncias e conexões com os pensamentos criativos e com os procedimentos das vanguardas históricas, perpassando informações preciosas e dicas muito interessantes.

Aqueles que se interessam pela criação intermídias e processual, bem como desejam adentrar nos caminhos do pós-teatro, encontrarão no livro de Renato Cohen, Working in progress na cena contemporânea, fontes de pesquisa e inspiração.

Obs. O texto, com exceção das imagens, foi publicado originalmente no Overmundo.

Referências: COHEN, Renato. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2004 _____________ Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. VIRILIO, Paul and LOTRINGER, Sylvère. The accident of art. MIT Press: Cambridge, Mass and London, England, 2005.

13 Virtudes da Arte Contemporânea

Isabel Löfgren escreveu no seu blog Book of Hours uma definição interessante sobre a arte contemporânea. Em outro post, ela havia detonado, como diz, os clichês da arte contemporânea. Num outro post, ela discute a partir de Arthur Omar, um pós-contemporâneo. Mais do que classificações, torna-se interessante captar as máquinas nômades de arte e suas poéticas. E na linha de “louvar o que bem merece deixando o ruim de lado” (Gilberto Gil), cito as virtudes apontadas por Isabel. Não digo que suas definições são definitivas, apenas, para ser coerente com a arte contemporânea, que essa lista de virtudes constituem a paisagem que Isabel inventa, vive e compartilha. São seus afetos. Que cada um faça o seu, sozinho ou nos coletivos, ou, ainda, nas suas matilhas de criação.

“Nos post dos 12 clichês da arte contemporânea eu sai detonando certas questões sobre a arte feita hoje. Mas como tudo na vida tem dois lados, agora vou ressaltar o que a arte contemporânea tem de bom, porque ela me fascina e me apaixona:

1. O exercício da tolerância. Num mundo cada vez mais globalizado e individualizado, todos têm a sua voz. A arte contemporânea é extraordinariamente variada e cada trabalho de cada artista geralmente toca em um aspecto da vida de uma forma que a arte moderna, completamente auto-referencial, não tinha capacidade de fazer. Para entender a “viagem” de cada um, é necessário um exercício de tolerância, aliás, uma prática amplamente recomendada dada a situação política grotesca que vivemos hoje.

2. Pluralidade sem fronteiras. Nos últimos anos, a arte contemporânea brasileira e seus artistas conquistaram lugar cativo nas mostras mais importantes do mundo. Muitas vezes, percebo que somos muito mais originais e ousados do que muitos artistas que vêm de tradições artísticas bem mais abastadas. Nossos talentos expõem em NY, Londres, Paris, Tokyo e são sensação nas Bienais de Veneza e afins. Nós também ocupamos lugar de destaque em diversas mídias, inclusive na pintura que é uma disciplina européia por excelência. Não é só o Brasil, que até pouco tempo era considerado uma reles república das bananas com belas mulatas e tucanos, que ganha visibilidade. Existem artistas africanos e sul-asiáticas realmente agitando e dando uma identidade a “minorias” que antes eram completamente ignoradas do cenário mundial.

3. Descentralização da Produção. Historicamente, sempre há um centro de pensamento na arte. Primeiro Paris, e depois da 2a. Guerra, Nova York. Quem queria ser artista sério teria que ir até o “centro” para aprender com os mestres (franceses e depois, os americanos) e depois voltar à terra natal com prestígio e qualidade. Hoje, não existe mais centro. Existem nódulos irradiadores de maior ou menor intensidade, como numa rede, mas a noção de centro está se desmantelando simplesmente porque não se sustenta mais. A arte pode ser criada em qualquer lugar por artista de qualquer nacionalidade, divulgada remotamente e acessada de qualquer ponto do planeta. Isto é lindo. A questão de mercado é mais lenta do que a questão da produção, quem compra e investe mais na arte é quem tem mais dinheiro, mas isso é uma conjuntura macro-econômica geral.

4. A revolução digital. Não há dúvidas: a tecnologia digital e os meios de telecomunicações mudaram para sempre o modo como produzimos, exibimos, e percebemos a arte. Ou qualquer outra coisa.

5. Livre uso da tecnologia. É difícil fazer arte hoje, sem dúvida. A disponibilidade de recursos tecnológicos é quase infinita e com o avanço das telecomunicações é possível fazer arte de uma forma radicalmente diferente do que há uma década. Sim, a fotografia e o vídeo estão numa fase banalizada, mas também nunca estas 2 mídias foram tão baratas e disponíveis em todos os cantos do mundo. Quem é bom, faz bom uso sempre.

6. Nascimento de novos gêneros e convivência com os Antigos. Será que num mundo tão gerenciado pela “velocidade” dos fatos (segundo Virilio) os gêneros de arte clássicos (pintura, escultura, gravura) seriam suficientes? Obviamente não. A criação de novos gêneros é fundamental para a compreensão do mundo contemporâneo. Isso não quer dizer que os gêneros clássicos “morrem”, pois, ao contrário do que se sente no cenário carioca onde se vê pouquíssima pintura, esses gêneros são constantemente reavaliados com a chegada dos novos inputs. Com mais opções de atuação, a convivência com o passado torna-se mais possível. E isso é fundamental para a sobrevivência da arte na era da informação.

7. Sintonia com a atualidade. Independentemente de um trabalho ser bom ou não, o que o torna contemporâneo é a crítica que ele traz à experiência de mundo atual. De uma forma ou de outra, um artista só pode realmente falar de seu mundo pois ele é a sua experiência sensorial. E o que é a arte se não fosse a experiência? Se não fosse ela um ato de presença no tempo e no espaço? Isso é fascinante e acho que além do discurso teórico existe realmente uma “onda” inevitável de fazer comentários inesgotáveis sobre a atualidade, no esforço de trazer algum tipo de compreensão sobre um mundo que está realmente muito complicado.

8. Poéticas Complexas. Um artista contemporâneo faz de tudo para não ser óbvio. Tenta ao máximo ser indutivo, reflexivo, revelar formas familiares através de objetos estranhos, ou vice-versa. Não gosta de linearidade, gosta de complexidade. Nem sempre consegue, ás vezes é hermético demais, ás vezes é representativo demais, mas em algum lugar entre os extremos existe muito espaço de manobra.

9. O artista não precisa mais ser o artífice. Desde os anos 60 (me corrijam!) o artista não precisa mais ser o indivíduo que executa a obra. Basta que ele tenha o controle conceitual de sua obra enquanto a execução pode ser feita por terceiros. Jeff Koons é um bom exemplo. Sol Lewitt com seu “instruction painting” também é. Isso significa que o artista tem a liberdade de usar todas as mídias possíveis dependendo de sua idéia, aliás, um artista não-artífice geralmente executa o que a idéia pede, e não vice-versa. Isso, é claro, não exclui os artistas-artífices que são tão geniais com o cérebro quanto com as mãos. Isso amplia possibilidades de atuação de um artista e tira um pouco a questão do virtuosismo da arte, que pode ser muito pedante às vezes. E esse pedantismo não é só na arte contemporânea, mas principalmente na arte moderna.

10. Naturezas Mortas que Vivem. Que alívio não ter mais que olhar quadros com naturezas-mortas. Tirando Cézanne, Picasso, Matisse e Morandi, quadros de natureza-morta são geralmente um saco pois são representativos e inócuos, enfim, é morto mesmo. Um artista contemporâneo já encara o gênero natureza morta como uma maneira de encarar a questão de vida e morte. Um artista britânico, Marc Quinn, exibiu várias flores congeladas em tanques de vidro numa exposição, por exemplo. Essa é uma maneira interessante e não usual de pensamento contemporâneo: pegar um gênero da tradição da pintura e transportá-la a um mundo mais “verdadeiro”, para um mundo de experiência sensorial mais imediata, mais próxima do que podemos sentir e presenciar, e não meramente abstrair a partir de uma representação da coisa.

11. Sensorialidade e Fenomenologia. Pode ser uma espécie de mimetismo, ou simplesmente de simulação. Escolham Baudrillard, Virilio, Foucault, ou quem queiram para entender. O fato é que a fascinação com a experiência corporal do espectador é algo de intensa pesquisa dos artistas, e queremos fazer arte que aja além da retina do espectador, uma arte que seja mais fenômeno do que puramente idéia ou pensamento.

12. Crise e questionamento. Uma era política de intenso questionamento (ou ausência) de valores inevitavelmente provoca uma crise em todos os campos do conhecimento. Nas artes essa crise é benéfica. Ao contrário do rompimento definitivo que o cubismo causou em relação ao impressionismo, nós hoje não precisamos mais romper com nada pois tudo já está rompido. Isso gera uma relação mais pacífica com a história. Hoje fazemos releituras do passado sem o estigma do conservadorismo, criamos novos gêneros sem o estigma do movimento revolucionário, e seguimos nos apropriando de estilos ou reconfigurando antigas soluções com o objetivo de questioná-las e colocá-las em novos contextos. Isso é bom e libertador e dá enorme variedade à produção atual.

13. Coletivos de Artistas. No início do século 20 os artistas tinham uma relação com as vanguardas históricas como a torcida do futebol brasileiro tem para seus times “de coração”. O artista se definia de acordo ao movimento a que pertencia. Hoje em dia, não existe mais “movimento” ou “manifesto”; existem grupos de artistas, ou melhor, “coletivos de artistas”, que se associam por afinidade intelectual mas não necessariamente por similaridade nos trabalhos. É uma forma mais dinâmica de coletividade que é inclusiva e não exclusivista.”

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Intervenção cênico-urbana: um relato

Relato aqui uma intervenção cênica nos espaços urbanos, com atores sem formação sistemática e acadêmica em teatro.

O relato fala da transformação de um grupo de atores populares, sem formação técnica em artes cênicas, em performers físicos, que utilizaram alguns elementos de improvisação física tanto no ensaio quanto na apresentação. Eles continuaram realizando seus trabalhos, mas se permitiram, num determinado momento, realizar uma performance na rua, completamente fora dos parâmetros com os quais trabalhavam. Quando falo de transformação, falo da mudança de agenciamento cênico espetacular em que eles entraram:

Um grupo de artistas, sem formação técnica e acadêmica na área cênica, iria se apresentar num evento cultural. Trabalhavam nos dias de semana, a maior parte deles, como porteiros de prédios públicos e, nas horas vagas, realizavam shows de palhaços. Apresentavam um esquete, cuja base de atuação era histriônica, com uma presença cênica muito grande, conseguindo segurar a atenção das pessoas na rua: brincavam de fazer entrevistas com uma câmera de papelão, sendo que um deles, um dos mais histriônicos, fazia o papel da jornalista. O público, nas ruas, ficava eletrizado.

Propus a eles que, além dessa cena, realizassem um trabalho completamente diferente do que, até então, vinham fazendo. Sem mais nem menos eles aceitaram. Havia pouco tempo: quatro encontros, uma vez por semana à noite, após os seus horários de trabalho. A proposta consistia em: “cinco homens sentados em cadeiras na calçada de uma rua bem movimentada, por volta das 13 horas, sem fazer nada. Este “sem fazer nada” já era uma estratégia minha para que não contassem com as ações histriônicas, com as interpretações, com os estados emocionais, etc. A situação já falaria por si só, disse a eles, não seria preciso atuar, fingir, representar. Não se pretendia, além disso, construir uma história a partir das caracterizações. Se houvesse uma ficção, disse a eles, estaria antes na cabeça das pessoas que iriam passar pelo local.
Qual foi o procedimento inicial? Treinar em não fazer nada. Posso dizer que grande parte do tempo foi gasto precisamente nisso: não fazer nada. Ora, isso é muito difícil. Principalmente devido à visão que o grupo possuía de teatro, de espetáculo, não diferindo muito da que se encontra em outras esferas, com a diferença de que eles não se sentiam ameaçados (pelos menos não pude perceber isso) e entregavam-se totalmente ao jogo a que se propunham. Deparei-me com excelentes cômicos.

Não havia tempo para exercícios corporais: a composição era imediata – como a situação era minimalista, o tempo era todo nosso. Utilizei, apenas, o exercício de ficar de pé e respirar, sentindo os apoios. Depois, modos de chegar até as cadeiras. Propus que, no início, eles utilizassem seus narizes de palhaço. Depois, eles os tirariam. Mais adiante, trabalhamos com os modos de se levantar e a relação que surgia entre eles. E improvisamos com isso.
O que se pedia: conexão total e máxima entre eles, de modo que, cada movimento, por menor que fosse, afetasse todos. Busquei o patético que se revelava por si só: cinco homens, de roupas sóbrias (calças e paletós simples), sentados em cadeiras idênticas, na calçada de uma rua movimentada: isso já era informação demasiada. O que estava em jogo, portanto: perceber-se, perceber o outro, estabelecer alguns padrões de linha (as cadeiras enfileiradas uma ao lado da outra já proporcionavam isso), atenção plena.

Fomos para a rua. Havia uma estrutura básica, incluindo alguns movimentos em uníssono, sendo que, no meio, as improvisações ocorriam. Em alguns momentos, um deles disparava uma seqüência de movimentos, num misto de coisas criadas anteriormente e inventadas na hora. Havia sim um jogo, mas sem regras determinadas, a não ser a de se perceberem o tempo todo. Uma pequena seqüência coletiva de movimentos, cada um diante de sua cadeira, com ampla visibilidade, foi utilizada, a que eles recorriam por grandes intervalos de tempo. Eram movimentos de aquecimento, pequenos pulos no mesmo lugar, nas quatro direções. O resto era improvisação.

As reações foram colhidas por mim e por algumas pessoas que nos ajudavam. As falas fornecem um sentido de indiscernibilidade, que é justo o que se pretendia.
Dois adolescentes: “Olha velho, você disse que eles são loucos, não são loucos nada… Isso é teatro…” E o outro: “E o que é loucura para você?”
Uma senhora: “Será que eles são evangélicos?” Dois idosos: “Isso é teatro sim, olha lá.” O outro responde: “Mas não é daqui do Brasil não. Eles importaram esses caras aí para fazer isso…”