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O Estado-Polícia e a imagem que não está aqui

Imagem: Folha de São Paulo

 

A imagem que está aqui

A  reintegração de posse da região de Pinheirinho, São José dos Campos/São Paulo, ocupada desde 2004 por uma média de 5 a 6 mil pessoas, mostrou o significado do Estado que faz da violência policial a sua política. Algo que se expressa na imagem que está aqui: a de um membro da guarda municipal sacando a arma para os manifestantes e resistentes, num bailado delirante, encarnando o próprio acontecimento.

Mas o que é esse Estado-Polícia? Sim, é algo próximo do fascismo. Raquel Rolnik escreveu um artigo sobre o episódio, mostrando uma coerência nas ações realizadas pelo Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin. Primeiro, a violenta ação da Polícia Militar contra os estudantes da Universidade do Estado de São Paulo. Depois, a investida contra os  desesperados da Cracolândia, em São Paulo, dispersando-os  com balas de borracha e gás pimenta, sem qualquer conexão com programas sociais e de saúde. E agora, a expulsão violenta dos moradores de Pinheirinho. A ação policial desse Estado tem uma lógica, como mostra Rolnik:

“o fundamental é ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá, muitos menos as razões que levaram aquelas pessoas a estar lá naquela condição e seu enfrentamento e resolução. “Resolver” a questão é simplesmente fazer desaparecer o “problema” da paisagem.”

Ou seja, não se procura entender as razões de ocupação desses territórios, que sintomas e processos elas expressam e procuram resolver. Ao contrário, o adverso, exposto no conflito social, não é incluído. Nada disso, é preciso, na lógica de administração das cidades, “limpar o terreno”, extirpar o problema. Há uma série de ligações que o último episódio, o de Pinheirinhos, apresenta.

A ausência de política pública inclusiva é que tem dado o tom. Mas essa lógica não é exclusiva do Sr. Alckmin, ou somente do PSDB, partido envolvido numa história de privatizações e destruição do comum. Em Belo Horizonte,  na gestão do prefeito Márcio Lacerda, que tem a participação do PT em primeira mão, em conjunto com o PSB e PSDB, a tentativa de “limpeza” urbana, ao lado de soluções autoritárias, vem predominando. E nesse caso, o governo entende que os movimentos sociais constituem, na verdade, uma oposição política, no sentido partidário, e por isso não podem ser considerados (veja o segundo texto de Rolnik em Mais referências).

Por isso, não podemos nos fechar no episódio de Pinheirinho, apesar de sua expressão emblemática e do sofrimento perpetrado pelo Estado, através de seu braço policial. A questão que perpassa isso é a forma como o capital se reproduz nas cidades, e como essa necessidade se sobrepõe a todas as outras. Como as necessidades de habitar, de conviver e de viver.

Algumas características:

1. Trata-se de uma lógica de financeirização das cidades. Lugares para investimentos, com alguns retoques para turistas e bolhas de urbanismo em meio a total ausência de políticas de Estado inclusivas. Pior, as cidades passam a competir entre si. Portanto, a a necessidade de “limpeza” é urgente.

2. A cultura é convocada a promover e contribuir para a cidade financeira. Predominância dos eventos culturais, dos espaços temáticos em contraposição a falta de políticas estruturantes e descentralizadas, que contemplem a necessidade de apropriação e os processos de subjetivação.

3. Ausência de qualquer desejo de compreender a dimensão dos excluídos que, por algum motivo, conseguem ocupar, viver ou se expressar  nos territórios da cidade. O planejamento é feito para se obter projeção em certas ilhas de desenvolvimento, que possam trazer, por sua vez, uma excelente imagem da administração.

4. Os partidos políticos – se é que podemos hoje chamá-los assim no Brasil – realizam a completa despolitização da vida pública. Administração de cargos, enlace nos calendários eleitorais futuros, acordos visando a ocupação dos territórios da administração.

O uso da polícia é, então, a imagem que está aqui: um Estado que utiliza do seu braço armado para resolver  extirpar problemas sociais, localizados em determinados territórios das cidades. No caso de Pinheirinho, temos um amplo bairro tomado por uma população durante cinco anos. Não se fez nada durante todos esses anos. De repente, a solução é a expulsão. O governador, no seu twitter, escreveu em resposta a uma pessoa: “A reintegração de posse é decisão do Poder Judiciário, que requisita a PM para cumpri-la, Adriana. Um abraço.”

Numa simples frase, o governador consegue dizer tudo: ele apenas cumpre ordens! E de onde vem a ordem? Do judiciário… Cumpre-se! O governador de São Paulo e o prefeito de São José dos Campos sabem que poderiam encontrar outra solução. E que, na perspectiva de uma política de Estado inclusiva, levasse em conta a voz, as necessidades e o destino daquelas  pessoas, daquelas famílias.

Ora, que pudesse haver desapropriação. Que houvesse um projeto social e efetivo para moradias. E muitos e muitos outros cenários possíveis.  Não é isso o mínimo que se pediria de um Estado moderno?

Não, isso não é o que acontece no Estado-Polícia. Age-se rápido, a paisagem fica limpa e problema é, aparentemente, eliminado, como mostra Rolnik. Foi assim no Pinheirinho. Alckmin preferiu montar uma operação de guerra, descrita por Tsavkko com imensa dor, que esteve no local e registrou no seu blog (vide em Mais referências o link para o texto completo):

“O cenário era o de casas humildes de um lado e do outro um terreno amplo com barracas de lona usadas para cadastramento das famílias, refúgio e, claro, com função midiática, forma de a prefeitura fingir que estava fazendo algo pelos moradores, que estes não ficariam ao relento durante a desocupação. Na verdade, uma lona branca com chão enlameado por baixo, sem iluminação, quente e com algumas poucas cadeiras onde idosos resignados ficavam esperando seu destino e onde crianças e mães choravam e tentavam se refugiar da barbárie.”

A imagem que não está aqui

No meio de tantas imagens sobre a reintegração de posse, houve uma que me tocou profundamente. Era a de um menino  com uma pequena mala de rodas e um cachorro pequeno amarrado uma corda. Atrás, um punhado de policiais militares correndo. O menino lá, atônito, em meio à desmontagem de um mundo, de um habitar.

A imagem sumiu. Tentei localizá-la de novo, mas não a encontrei mais. Estava no álbum da Folha.com. Parece que foi retirada, pois exibia a face de uma criança, que poderia ser identificada etc.

E o que essa imagem me diz? Por que ela me toca tanto? Nela eu vejo a extrema fragilidade, captada num momento de poesia – sim, de poesia – no meio da belicosidade e da resistência mais absurda (a dança dos helicópteros, os grupos de atiradores, o fogo das barricadas, o desespero das pessoas).  Um menino que junta o seu pequeno mundo sem saber para onde vai.

Quem escreveu algo maravilhoso sobre esse acontecimento – o da extrema fragilidade em meio à captura da guerra – foi Walter Benjamin. E aqui vai o trecho de O Narrador, em que fala da obra de Nikolai Leskov. Nesta parte, Benjamin mostra cita Heródoto, uma das influências de Leskov. Coloquem a imagem que não está aqui, a do menino, no lugar. Sim, vejam como é esse sentimento de ver um mundo subjugado:

“Leskov frequentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.”

Aquele que sofre a ação do Estado não é uma abstração. E sua imagem mais contundente não está nas cenas espetaculares, apesar de verdadeiras. Quem sofre é é um corpo, uma vida. Uma singularidade. E que expressa, junto, a dimensão do incorpóreo. Isso o fotógrafo conseguiu captar com extrema poesia: o acontecimento. Mas a imagem não está aqui.

Referências

Pinheirinho, Cracolândia e USP: em vez de política, polícia! Por Raquel Rolnik

Belo Horizonte: futuro das ocupaçõe  Dandara e Torres Gêmeas depende de diálogo com o poder público. Por Raquel Rolnik

Massacre do Pinheirinhos: fotos e vídeos de uma tragédia. Por Tkavkko.

–  Mil Pinheirinhos contra a comiseração desgraçada. Por Bruno Cava

O massacre de Pinheirinho e o futuro da luta. Por Idelber Avelar

Pinheirinho (São José dos Campos). Wikipédia

Retirada de famílias de Pinheirinho ignorou ação social. Folha.com

– Walter Benjamin. O narrador.

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

5 respostas em “O Estado-Polícia e a imagem que não está aqui”

Agora ninguém fotografou os caras dando pedradas jogando coquetal molotov e rojão em cima deles, a guarda municipal tem por obrigação preservar o bem público que nessa ocasião estava sendo destruido. E pelo visto e isso que pregam a destruição de tudo aquilo que o outro partido fez para falar que não fez nada. E uma politicagem estupida e o lider dos sem tetos mas com casa com piscina e tv em HD nos barracos não foi pro alojamento da prefeitura porque ele do pstu e não do PSDB. Agora na hora do banho dele ele vai pra casa dele no bairro do lado tomar banho e jantar com a familia. E quer voto pra ser vereador ainda.

Luis,

Procuro entender o seu ódio. Mas é difícil. No entanto, vejo que ele se assenta em agenciamentos que o vinculam a imagens prontas, amplamente veiculadas. Você queria que essa população não defendesse seu território? Principalmente tendo em vista o histórico dessa ocupação? Além disso, o Estado, sabendo disso, poderia ter evitado o confronto se dispusesse de uma efetiva política de moradia. Você faz recortes que alimentam seu ódio: a casa do líder, segundo sua versão etc. Mas que não lhe permitem indignar-se de fato: com o que está acontecendo com aqueles que compõem, hoje, o chamado precariado. Com aqueles que são vítimas da ausência de políticas públicas e de administrações voltadas para a defesa do capital e não da vida.

Não vou lamentar seu ódio contra essa população que procurou resistir. Ele faz parte do modo como você tem agenciado seus afetos. Se você conseguisse, no entanto, se desvencilhar disso, poderia ser mais efetivo nas críticas que procura fazer.

vem deSou solidario as familias carentes do PINHEIRINHOS,mas fiquem sabendo que +90% dos vandalos não eram moradores do pinheirinhos.PERGUNTO onde estão as fotos dos vandalos quebrando tudo caidu que paus e pedras em cima da guarda civil e pms,onde esta a foto do vagabundo que descarregou uma pistola em cima da gcm?so fotografaram a gcm com arma em punho que é uma reação norma para quem faz segurança.sei o que estou falando pois so gcm e estava la.Digo tambem sou contra a abuso da força mas se vem de paus e pedras temos que reagir somos pais de familias.AS FAMILIAS CARENTES DEIXO MEU TOTAL APOIS DEUS DARA UMA SOLUÇÃO.

Domingos,

Se entendi bem, você é um Guarda Municipal e atuou como tal na reintegração de posse. Você é um lado da questão, sim. E consigo imaginar sua situação: tendo de cumprir ordens, enfrentando resistências etc. Mas isso é guerra, não? Uma guerra produzida pelo Estado, que deveria proteger os cidadãos. Que deveria ter um projeto de moradia. E que não poderia considerar simplesmente os moradores de Pinheirinhos como “estrangeiros à cidade”, um pessoal que pudesse ser simplesmente descartado, enviado de volta para os lugares de onde vieram etc.

O problema é justo este: O Estado foi ausente e poderia ter evitado este conflito. Poderia não ter precisado de nada disso. Vocês, guardas, poderiam estar ajudando as pessoas, não? Se há “vândalos”, você há de convir que em meio a 5 ou 6 mil pessoas desesperadas, retiradas à força de suas casas, pode acontecer de tudo. Pense nisso. Coloque-se no lugar dessas pessoas. Imagine-se morando em Pinheirinho.

Veja na Folha.com a prisão de um coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Observe a arrogância e a violência dos seus companheiros de farda. A reportagem com o vídeo está aqui: http://bit.ly/xOtQ4k .

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