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Viroid life: memória e devir

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Imagem: Ground

“O fenômeno da memória é múltiplo: poderia ser chamado de memórias moleculares, memórias sociais, memórias curtas e memórias longas, memórias absolutas e relativas, memórias doentes e memórias saudáveis, de mnemotécnicas e de invenção de uma memória intensiva, e assim por adiante. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari opõem devir e memória na tentativa de construir um modelo de evolução não-genealógico (numa evolução que não seria restrita ao esquema linear pressuposto na árvore da vida). E nessa perspectiva, eles entendem que as memórias moleculares ou minoritárias existem numa integração no sistema molar, ou majoritário (Deleuze e Guattari 1988:294 – páginas da edição inglesa). O fato de Deleuze e Guattari subestimarem o poder criativo e subversivo da memória tem a ver com o modo como esta se associaria às técnicas mnemônicas (ibid.: 295). Nessa perspectiva, a memória funcionaria como uma organização pontual, na qual o presente refere-se simultaneamente a uma linha horizontal que captura o fluxo do tempo, movendo do presente antigo para um presente atual, e a uma linha vertical que captura a ordem do tempo, indo do presente para o passado, ou para a ‘representação’ do presente antigo. Os autores opõem os ‘sistemas multilineares’ aos sistemas pontuais, sendo que os primeiros, que são sistemas complexos e abertos, tão evidentes no trabalho dos músicos e pintores, nos quais temos a liberação da linha, fazendo-a numa diagonal, e não mais numa verticalidade e horizontalidade.

Neste sentido, em que a linha se sobrepõe ao ponto, os autores colocam que todo ato de criação é, em última instância, ‘trans-histórico’: ‘criações’, escrevem, ‘são como linhas abstratas e mutantes que abandonam por si mesmas a tarefa de representar um mundo, precisamente porque elas configuram uma nova realidade que a história pode somente recontar ou recolocar em sistemas pontuais’ (ibid.: 296). Nesse modelo, os devires tomam um lugar na história, mas nunca se reduzem a ela:  ‘Quando isso ocorre [o estancamento da linha] é sempre submetido à História, mas nunca a partir desta (ibid). A História, para Deleuze e Guattari, é uma definição molar. A única história que se faria possível seria a que sempre tem sido e para sempre será – a história do homem (embora se deve notar que os autores preservam os ‘múltiplos devires do homem, mas nenhum devir-homem’). Para eles, as técnicas de memória têm sido cultivadas com o objetivo de servir à molarização da história. Mas, onde a memória fixa codifica, e assinala funções, a atividade dos devires torna-se liberadora por um rebatimento no jogo transversal da comunicação entre fenômenos heterogêneos, de tal modo que eles criam genuinamente o novo e a diferença.

(…)

Encontramos nas colocações de Deleuze sobre a teoria das duas memórias, que aparece tanto em Freud quanto em  Nietzsche (Deleuze 1983:115). A primeira é uma memória específica do homem ressentido, na qual  os traços da memória tornam-se tão indelevelmente marcados na sua consciência que ele já não é capaz de agir (que exige  esquecimento). Não se trata apenas do caso de que sua ação é apenas reação, mas sim que ele é incapaz de agir, pois mesmo fora da reação ele se sente reagindo, tornando interminável (indigerível) o processo. A segunda é uma ‘memória ativa’,  ‘que já não repousa sobre os traços mnemônicos (Deleuze 1983:112-15). Aqui memória já não é simplesmente uma função do passado, uma incapacidade de fluir, transformando-se antes  numa atividade do futuro, uma ‘memória  que é própria do futuro’ (ibid.: 134). Reinterpretar a memória humana, alguém poderia sugerir, envolveria  traçar uma evolução ou transformação daquilo que não pôde entrar na consciência contemporânea, numa busca dos vestígios ‘sígnicos’ do além-do-homem, em que a memória humana nos libertaria de nossas feridas purulentas, do  desprezo e da comiseração que percebemos no rosto da humanidade. “Uma investigação sobre a ‘origem’ é, portanto, sempre uma investigação sobre o devir-futuro e sobre os devires do futuro.”

Ansell Pearson – Viroid life: perspectives on Nietzsche and transhuman condition. Routledge, 1997.

Mais referências –

Viroid life no Google Books

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Arte e Cultura Geral Literatura

A fala errante: Blanchot

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Imagem de Tomas Rotger

“Devemos, em primeiro lugar, tentar reunir alguns dos traços que a abordagem do espaço literário permitiu-nos reconhecer. Aí, a palavra não é um poder, não é o poder de dizer. Não está disponível, de nada dispomos dela. Nunca é a linguagem que eu falo.  Nela, jamais falo, jamais me dirijo a ti e jamais te interpelo. Todos esses traços são de forma negativa. Mas essa negação somente mascara o fato mais essencial de que, nessa linguagem, tudo retorna à afirmação, que o que nega nela afirma-se. É que  ela fala como ausência. Onde não fala, já fala: quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio fala-se nela.  O próprio da fala habitual é que ouví-la faz parte de sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a linguagem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento.

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Filosofia Geral Literatura

Eterno retorno, múltiplo e acaso

Imagem: Tomas Rotge

“O eterno retorno é potência de afirmar, mas ele afirma tudo do múltiplo, tudo do diferente, tudo do acaso, salvo o que os subordina  ao Uno, ao Mesmo, à necessidade, salvo o Uno, o Mesmo e o Necessário. Do Uno, diz-se que ele subordinou o múltiplo uma vez por todas. E não é a face da morte? Mas não é a outra face, a de fazer desaparecer uma vez por todas tudo o que opera uma vez por todas? Se o eterno retorno está em relação essencial com a morte, é porque promove e implica “uma vez por todas” a morte do que é uno. Se ele está em relação essencial com o futuro, é porque o futuro é o desdobramento e a explicação do múltiplo, do diferente, do fortuito por si mesmos e “para todas as vezes.

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Everyone has a dream: Tiago Gambogi e Margaret Swallow

Foto de Guto Muniz

Tiago Gambogi e Maggi Shallow estão apresentando o novo espetáculo, ‘EXTRAORDINARY’ – Everyone has a dream – um teatro físico que é um misto de dança, texto, ação poética e música. Veja mais sobre o novo trabalho do seu grupo sediado em Londres, f.a.b. The Dtonators, no My Space.

Conheci Tiago Gambogi no Curso Técnico de Ator  da Fundação Clóvis Salgado, quando ele foi meu aluno por uns poucos meses. Ali, pude perceber a estranha sensibilidade de Tiago. Realizávamos alguns jogos com objetos, de modo não realista. Ele acionava sua imaginação e criava situações inusitadas e sensíveis, exigindo dos seus parceiros de jogo uma atualização constante. Qual era o segredo? Ele brincava, se envolvia, acreditava nos estímulos que gerava no espaço. Era generoso e não se furtava ao que acontecia na cena.

Tiago queria mais. E  logo partiu para outra, pois a formação de ator era determinada, naquela época, pelos  ingredientes clássicos e interpretativos. O que não lhe fazia a cabeça. Resolveu, então, desembarcar no Oficcina Multimédia, um grupo de pesquisas teatrais performativas. De lá tomou rumos mais radicais, estudando dança e performance, até criar seu próprio grupo, com a parceira Margaret Swallow. Vez por outra temos a oportunidade de assistir, aqui no Brasil e em Belo Horizonte, seus trabalhos. O último, Made in Brasil, tem um texto neste blog: Uma conexão Londres-BH.

Todo mundo tem um sonho.

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Corpo e movimento (e): anotações sobre as tentativas de um encontro

Imagem Spitfirelas

Fiquei de escrever sobre o Encontro de Criadores e Coreógrafos do Festival NovaDança, em Pirenópolis.

Na primeira parte faço um relato breve do Encontro, trazendo para a tela algumas coisas que anotei no meu caderno. E na segunda parte apresento algumas questões que me rondaram e ainda me visitam. Não são propriamente as questões da dança, mas aquelas que um pesquisador e criador no campo das fronteiras borradas entre teatro e dança.