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Zikzira Teatro Físico: Eu vos liberto



Zikzira Teatro Físico traz um novo espetáculo: Eu vos liberto. Montado numa antigo depósito de tecidos, o 104 da Praça da Estação, em Belo Horizonte, o espetáculo abre uma zona sombria e espectral, configurando o cenário decadente de um palácio. A encenação tem por base a tragédia de Euclides, Hipólito, na qual Fedra vive o tormento de uma paixão incestuosa.

Fernanda Lippi e André Semenza, responsáveis pela criação corporal e cênica, respectivamente, continuam com a busca por um teatro físico visceral e, de certo modo, espectral. Acrescentam, para quem viu o filme As Cinzas de Deus e o espetáculo Verissimilitude, a vocalização. Em Verissimilitude, a vocalização se dava em pouquíssimos momentos, em sons inarticulados, que não remontavam a uma significação, deixando-nos num plano de sensações. Agora, o Zikzira Teatro Físico, após suas experiências com as vocalizações a partir das técnicas de Grotowski, arrisca-se no terreno de um oralidade mais explícita quanto à significação do texto.

Retomo alguns pontos. A questão do espectral: vejo que o teatro físico alimenta-se dos estados corpóreos, configurando mais espectros do que personagens dramáticos ou épicos. A figura, tão cara para uma arte narrativa e de conexões lógicas de significação, é des-figurada. Não pelo mergulho psicológico (teatro dramático moderno norte-americano, por exemplo, onde, em Longa Jornada Noite Adentro as personagens se desmancham, mas a representação está firmemente alicerçada em cena), ou mesmo épico-narrativo, com os seus enunciados discursivos diretamente para o público, mas sim porque o estados corporais e os desenhos intensivos tomam a composição cênica. Deleuze fala de uma lógica da sensação, quando aborda a pintura de Francis Bacon. Por ressonância, penso que os espectros do teatro físico, como o Zikzira desenha, aparecem primeiramente como figuras, mas são tomadas por forças desfigurantes. Deleuze diz que “em arte, tanto em pintura quanto em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças”. Ele cita a fórmula de Klee: “não apresentar o visível, mas tornar visível”. E o que o teatro físico e pós-dramático realiza não é a figuração das personas, mas sim as forças invisíveis que atravessam os corpos.

Matteo Bonfitto faz uma distinção entre os actantes máscara, de um lado, e estado e texto, de outro. No primeiro caso, temos uma ação que informa sobre o ontem e o hoje da personagem, numa linha que Matteo Bonfitto chama de temporalização. Há uma relação de causalidade: o que o personagem faz informa sobre seu passado e cria uma tensão em relação ao seu futuro – entra-se, portanto, num plano de coerência e de lógica.

Quando, ao contrário, se entra no actante-texto ou no actante-estado, o agenciamento é outro. Nesse momento, Bonfitto diz que ocorre uma destemporalização da personagem. Aqui, diz Bonfitto, o actante espacializa-se. Ou seja, ele não se encontra consubstanciado num sujeito psicológico. Torna-se impossível encontrar ações que sejam funcionais para o desenvolvimento dramático. Não há mais meios, diz Bonfitto, que possam identificar em tal ser ficcional uma estrutura lógico-temporal. Ocorre uma dispersão do personagem – o encadeamento lógico-causal, próprio do drama, se frustra.

O elenco, com performers de várias nacionalidades (brasileira, chilena e coreana), mergulha nesse mundo espectral e nos remete às forças invisíveis. Estão comprometidos com a linha das sensações que perseguem durante todo o espetáculo. E isso é muito bonito de se ver.

Fernanda Lippi mostra, assim, que continua com sua busca por uma linha pulsional, de uma coreografia energética. Não se trata mais de dança, moderna ou contemporânea, apesar do universo que baila diante de nossos olhos. Essa é uma dança que se dá antes de modo mais intensivo e menos extensivo.

Quanto às vocalizações, em vários momentos sou afetado pela mesma viagem espectral e desfigurante das forças que tomam os corpos. Fernanda Lippi e André Semenza estão introduzindo, cada vez mais, as vocalizações nas criações cênicas do Zikzira. Tais forças sonoras resultam também de impulsos corporais, numa busca que parece partir dos ensinamentos e procedimentos de Grotowski. Eu vos liberto traz, além disso, outros planos vocais, como o cantor lírico sobre uma ponte acima dos atores.

São expressões vocais que viajam mais no plano das sensações do que das significações, o que me evoca a característica espctral do teatro físico que o Zikzira tem configurado.

No entanto, há um componente de representação na vocalização do papel de Hipólito, por exemplo, que me remete a um teatro no qual a figuração da fala é explícita e dada à significação, apesar do delírio que o plano ficcional nos arrasta. Explico: a fala em alguns teatros dramáticos ou épicos são igualmente capazes de produzir afecções poderosas, mas o aspecto representacional está lá, com a figuração (o personagem ficcional com sua história configurando uma persona no teatro dramático ou o mesmo pronunciando um discurso, apresentando um mundo, como ocorre no teatro épico).

Arrisco um pensamento: o texto épico ou dramático contém elementos de significação da ordem da figuração. Neste, as forças invisíveis estão em contato com as forças visíveis (o que é dito como confissão da personagem ou como expressão de um mundo objetivo), mas predomina o plano no qual o texto se impõe aos outros sentidos da cena (e o sentido deriva, afinal, do texto literário). Ora, Eu vos liberto busca outro plano (o das sensações) e, ao mesmo tempo, introduz o texto que traz sua carga de significação. São perguntas que me faço: o lugar do texto falado no teatro físico. O grupo Zikzira, agora introduzindo vocalizações provenientes de um texto épico/dramático, abre essa trilha de investigação.

Referências:

BONFITTO, M. O ator compositor. São Paulo: Editora Perspectiva. 2006
DELEUZE, G. Francis Bacon – Lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.2007

Imagem: André Semenza – divulgação

Zikzira Teatro Físico: novo espetáculo e novas pesquisas

A Cia Zikzira de Teatro Físico está com estréia prevista para Novembro, em Belo Horizonte. André Semenza e Fernanda Lippi, fundadores da Cia, estão há meses imersos no processo de criação do novo espetáculo. Os dois artistas estão, ao mesmo tempo, ministrando oficinas no Projeto Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas – da linha de ação Arte Expandida – experimentação nos teatros da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. A seguir, uma entrevista com Fernanda Lippi sobre os novos rumos da pesquisa da Cia.

Percebe-se, nas oficinas realizadas no Projeto Laboratório, que você está buscando, cada vez mais, uma conexão com a voz. Como você vê isso na trajetória da Cia?

O processo que a Cia vem se deparando nos últimos anos tende a nos fazer ficar, a cada dia mais atentos às vibrações que percorrem um corpo, atravessando os órgãos e servindo de instrumento para este mesmo corpo; compondo através de uma linguagem própria uma moldura para aprofundar a proposta estabelecida pelo próprio artista e aquele que o dirige. Acreditamos que ao investigarmos em corpos distintos vários estágios desta vibração, uma possibilidade de pesquisa irá se manifestar fora do corpo. Os ruídos oriundos deste corpo seriam a primeira manifestação, levando-no a outras manifestações sonoras, permeando melodias, até o aparecimento da voz.

Na busca de um corpo que se move, de um corpo que pulsa, segundo suas próprias palavras no Laboratório, como você vê o campo de desenvolvimento das técnicas de um teatro físico? Há um saber de corpo específico?

Acredito que todos aqueles que se propõem à uma escuta através do corpo, que direcionando este, à uma busca interior, através do aparecimento de uma verdadeira pulsão, este corpo terá uma necessidade de aprofundamento e busca de uma técnica que possa ser utilizada como ferramenta, a fim de alcançar um estado onde o corpo domina a mente e a sensação de liberdade possa emergir.

Mas para isso deve sim existir uma direção clara que possa propiciar o acontecimento do corpo, liberando o saber do corpo especifico e podendo assim repetir a vivência. Hoje, no Brasil, o teatro físico não possui uma única voz, a dança a mímica e o próprio teatro expressam que tudo que se move é físico e ainda mais as interdisciplinaridades, quando estas completam para criar um corpo manifestando-se através da fisicalidade.

Que fisicalidade e essa? Qual é o ponto de partida? Esse ponto de partida foi criado por uma necessidade estética? Muitas vezes, no Brasil, devido a nossa realidade, o ponto de partida de um corpo vem da necessidade externa de viabilização de uma obra. Isso muda tudo… No campo de desenvolvimento do teatro físico existem varias vertentes, e em um país como o nosso, as manifestações ocorrem de acordo com a realidade de cada região; infelizmente a formação dos nossos profissionais ainda é precária e quase escrava do sistema, mas acredito que qualquer ser humano que se propõe à uma escuta tão especial tem a possibilidade de descoberta, e o desconhecido gera muitas coisas.

E o novo espetáculo?.

Convido à todos aqueles que se interessam pelas várias facetas do ser humano e como ele pode se manifestar, carregando séculos e séculos de repetidos dramas. Sob pressão o verdadeiro caráter é revelado. Este projeto deu fruto á um longa-metragem e á um espetáculo ao vivo.

Imagem: As Cinzas de Deus – filme da Cia Zikizira Teatro Físico –