Sexta-feira antes do entardecer, o clima um pouco suave devido às chuvas que parecem ter caído em algum lugar, com a luz solar inundando a paisagem. Mais uma vez tomo um ônibus diametral, em Belo Horizonte – desses que atendem à região metropolitana. Não estava indo a algum bairro distante ou cidade, mas sim aproveitando essa viação que passa na rua onde moro, quando pretendia ir ao baixo centro da cidade. Mais precisamente, querendo descer na Praça da Estação.
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Blanchot e o cotidiano
“O cotidiano: o que há de mais difícil a descobrir”.
Assim Maurice Blanchot inicia um dos capítulos de A conversa infinita(tradução de João Moura Jr, Editora Escuta, 2007). Somos levados a passear por signos, conceitos e vislumbres desse estado de coisas que chamamos de cotidiano. E o cotidiano, reitera Blanchot ao longo do texto, é aquilo que “não se deixa apanhar”. Por ser o que nos escapa, “ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível”. Blanchot caminha pelas diversas fases do cotidiano, apreendendo nesse movimento suas defasagens: revelações súbitas, iluminações avulsas, contrapontos e contratempos.
Numa primeira acepção, diz Blanchot, o cotidiano é “aquilo que somos em primeiro lugar e o mais frequentemente: no trabalho, no lazer, na vigília, no sono, na rua, no privado da existência”. Então, um movimento seria o de abrir o cotidiano à história, ao Verdadeiro. Lugar da Revolução.
Dentro do ônibus: é tudo música
Entrei num ônibus diametral, desses que atravessam Belo Horizonte de ponto a ponto. Era cedinho e me deparei com um homem e sua viola num dos primeiros bancos. Do outro lado do corredor, um homem com um vozeirão impressionante, porém muito musical, falava com o motorista.
Antes que eu passasse na roleta, o ônibus faz uma parada no sinal vermelho. E o que acontece? O violeiro, uma pessoa indescritível, começa a tocar alguma coisa. Ao mesmo tempo, o homem sinaliza ao motorista, com malícia, sobre o outro motorista de um ônibus que acaba de chegar, bem perto. Eles começam a rir do colega e o homem grita pela janela, naquela sua sonoridade bruta e musical:
Como o corpo se faz num fenômeno de borda e produz uma cartografia?
Há corpos que não passaram por qualquer formação artística e que, no entanto, vivem estados de poesia. Estão fora dos regimes de significação habituais, constituindo antes fenômenos de borda.
Vejo um senhor negro que aguarda no ponto de ônibus, logo na subida da favela. É começo de noite e as pessoas se deslocam pesadas, de volta do trabalho para casa. O homem que observo é pobre. Porém, ele se veste com dignidade (é preciso dizer disso numa paisagem como a nossa, brasileira): camisa branca e social, calça e sapato. Contudo, percebo logo que seu trajeto não cumpre a função das outras pessoas que posso observar naquele horário, como a volta do trabalho para casa ou qualquer outra, mas está numa borda que eu não consigo definir.