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Blanchot e o cotidiano

“O cotidiano: o que há de mais difícil a descobrir”.

Assim Maurice Blanchot inicia um dos capítulos de A conversa infinita(tradução de João Moura Jr, Editora Escuta, 2007). Somos levados a passear por signos, conceitos e vislumbres desse estado de coisas que chamamos de cotidiano. E o cotidiano, reitera Blanchot ao longo do texto, é aquilo que “não se deixa apanhar”. Por ser o que nos escapa, “ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível”. Blanchot caminha pelas diversas fases do cotidiano, apreendendo nesse movimento suas defasagens: revelações súbitas, iluminações avulsas, contrapontos e contratempos.

Numa primeira acepção, diz Blanchot, o cotidiano é “aquilo que somos em primeiro lugar e o mais frequentemente: no trabalho, no lazer, na vigília, no sono, na rua, no privado da existência”. Então, um movimento seria o de abrir o cotidiano à história, ao Verdadeiro. Lugar da Revolução.

Uma fase em que o universal absorve ou subsume toda a existência particular. Hegel: quando o universal impõe sua existência abstrata, toda a particularidade cai  sob suspeita. Blanchot diz que o suspeito não é mais um culpado, que deverá ser julgado diante da Lei e, assim,  reconduzido à nulidade. Pelo contrário, é o fugidio e o que, de certo modo, torna-se imperceptível. Por isso, o suspeito é o que incomoda e acaba por colocar o Estado e suas obras sob acusação. E nesse ponto Blanchot é brilhante, ao mostrar o revide dessa fala cotidiana:

“Numa tal perspectiva, cada governante é suspeito, mas cada suspeito acusa o governante e o prepara para tornar-se culpado, já que este deverá um dia reconhecer que não representa o todo, mas uma vontade ainda particular que usurpa somente a aparência do universal.”

E completa: “o suspeito: o homem qualquer, culpado de não ser culpado”.

Poderíamos parar por aqui e explorar as conexões dessa linha: uma crítica do Estado e dos seus instrumentos, a dívida infinita a que somos submetidos (Deleuze), o receio dos governantes quanto à dimensão verdadeiramente política, que é a reivindicação dos que não tem nenhuma parcela. Ou, ainda, quando Deleuze fala, em Cinema 1, dos “instantes quaisquer”, caracterizando assim um movimento de modernização do pensamento e das artes. Tudo isso pode ser pensado a partir dessa “fala cotidiana”.

Mas sigamos Blanchot adiante e veremos que ele nos apresenta um novo movimento, pois se o cotidiano sob suspeita é furtivo, é preciso vê-lo sob outra ótica. Lefebvre, com sua “crítica do cotidiano” teria desenvolvido, segundo Blanchot, essa admirável reviravolta: não mais como “existência média”, mas como “uma categoria, uma utopia e uma Ideia, sem as quais não se poderia alcançar nem o presente escondido, nem o futuro desvendável dos seres manifestos”.

O homem se mostra “a um só tempo mergulhado no cotidiano e privado do cotidiano”. E nessa ambiguidade, com todo seu caráter imanente e fugidio, é que poderá ocorrer algo novo. Sim, diz Blanchot, “é necessário contradizer-se, caso se queira aproximar de um tal movimento.” Estamos, aqui, no plano de uma “profundidade do que é superficial”, de “uma tragédia da nulidade”.

Por isso, reitera Blanchot, o “cotidiano tem esse traço essencial: não se deixa apanhar”. O que é necessário, então, é perseguir, na esteira de Lefebvre,  o que seria “um conhecimento do cotidiano mais imediato”.

Interessante observar que Blanchot critica Edgar Morin, quando este opõe, por vezes, a “cultura de massa” à cultura humanista. Para Blanchot, “a importância da ‘cultura de massa’ está em por em questão a própria ideia de cultura ao realizá-la de um modo que a põe a descoberto.” O que me leva a Tropicalismo e, também, ao modernismo de Oswald de Andrade, quando este criticava a ignorância dos intelectuais em relação à cultura de massas. Poderíamos pensar, aí, o universo pop? Claro, podemos hoje colocar a questão em outros termos, não mais em oposição excludente, tendo em vista, por exemplo, as potências da multidão (Negri).

E Blanchot caminha não para dentro da noite, da floresta, terra ou mar, mas para a rua. Também Deleuze abraçou esse movimento, negando as trilhas de Heidegger para a floresta, olhando antes para o universo urbano. Sim, o cotidiano está nas ruas. Seguindo Lefebvre, Blanchot dirá que “a rua tem esse caráter paradoxal de ter mais importância do que os locais que ela conecta, mais realidade viva do que as coisas que reflete”. E o “homem da rua” não é aquele que pode ser o testemunho por excelência do cotidiano, pois ele na verdade “não testemunha nada”: “não por covardia, mas por ligeireza e por não estar realmente lá”. Blanchot nos convida a encarar sem medo, mas sem ilusões, essa “força corrosiva do anonimato humano”.

Pois o cotidiano, diz Blanchot, “não tem sujeito”:

“Quando vivo o cotidiano, é o homem qualquer que o vive, e propriamente falando, o homem qualquer não sou eu nem é o outro, ele não é nem um, nem outro, e é ambos em sua presença intercambiável, sua irreciprocidade anulada, sem que, por isso, haja aqui um ‘Eu’ e um ‘alter ego’ podendo dar lugar a um reconhecimento dialético.”

Tal plano abre conexões com outros planos: o do levante diante da revolução (a Taz de Hakim Bey), a indeterminação e o acaso em Cage, as iluminações avulsas, as zonas de experimentação, o Zen-Budismo.  E o efeito paradoxal é o que mais conta em todas essas regiões que se avizinham: “o cotidiano é o inacessível ao qual nós sempre tivemos acesso; o cotidiano é inacessível, mas apenas enquanto todo modo de acesso lhe é estranho”.

São potências que, hoje, fazem o movimento de inúmeros artistas,  pensadores, midiativistas e rebeldes de toda natureza. É sua pura imanência que tanto assusta os dialéticos hegelianos, já que resiste, na sua obliquidade, a tal tipo de apropriação.

E o cotidiano está lá, oblíquo e furtivo, revelando-se em sua concretude e abstração nos espaços urbanos e nas passagens, incluindo-se também os lugares encontrados, mas desabitados,  que se tornam materiais e temas de produções variadas. Pois, como diz Blanchot, “foram necessários esses admiráveis desertos que são as cidades mundiais para que a experiência do cotidiano começasse a alcançar-nos”.

O cotidiano é o que escapa.

Referência –

BLANCHOT, Maurice. A fala cotidiana. In: A conversa infinita: a experiência limite. Vol.2. Tradução de João Moura Junior. São Paulo: Escuta, 2007

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

Uma resposta em “Blanchot e o cotidiano”

“É na vida cotidiana que se inicia cada projeto e cada realização a ela retorna em busca de uma verdadeira significação. A vida cotidiana é a medida de tudo: realização – ou melhor, não-realização – das relações humanas; da utilização do tempo vivido; da pesquisa na arte; da política revolucionária.” Debord

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