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Signos de um carnaval

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 Carnaval no Rio de Janeiro, nos anos 70. Nós éramos três jovens mineiros que mal chegavam aos 20 anos de idade.   Estávamos em plena ditadura militar, com a distensão anunciada de Geisel. Mesmo assim, não se vislumbrava alternativa, a não ser nas tentativas da oposição permitida e, quase sempre, retórica. E, no entanto, havia uma resistência, presente na irreverência e alegria de nosso povo.  Aliás, alguns diziam que se a Capital Federal ainda fosse o Rio, o golpe militar teria falhado.

Curtíamos o carnaval de nossas pequenas cidades interioranas. Aquele lusco fusco, aquela melancolia e alegria de veias pesadas de minério, sem falar nos outros recantos, beiras de rio e muito mais. Mas, de fato, era a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com toda sua história e exuberância. E era para lá que nos dirigíamos. 

Cosmonautas de abismos íntimos e céus espraiados, desembarcamos naquele planeta. Na noite anterior, na chegada, subíamos o morro de Santa Teresa no bondinho, quando um rapaz negro pega o carro andando e, exaltado, quase caindo para a rua, canta:

“Vou-me embora, vou-me embora

Eu aqui volto mais não

Vou morar no infinito

E virar constelação

Portela apresenta…”

Seria a saudação daquele povo? Nós, que andávamos mal-acostumados com os narizes de louça de nossa terra, aos quais fazíamos o contraponto com o desfraldar da lama respingando as almas, só podíamos achar aquilo um dos signos que dizia, como na letra de Jorge Mautner:

“Nababo na Babilônia sempre é um rei…”

No dia seguinte descemos para o centro, de tardinha, com as cabeças feitas de infinito e constelações de conexões afins. E lá, ficamos maravilhados com a pujança do chamado segundo grupo, que desfilava pelas ruas. Em vez daquela pompa de carros alegóricos e riqueza a que estávamos acostumados nas transmissões de televisão, vimos as pessoas sambarem de pé no chão. E era pura alegria.

Os signos do carnaval ressoaram nas nossas cabeças.

E chegamos junto a uma pequena multidão que brincava na rua e no passeio, em frente ao um clube de fachada histórica. Lá de dentro, uma orquestra tocava para as pessoas que se divertiam no salão. Como as janelas ficavam abertas, o som saía forte e, por isso, os que estavam lá fora podiam dançar em volta, pertinho, bem debaixo da sacada. Foi então que nós, cosmonautas mineiros recém-chegados naquele planeta, tomamos um grande susto. As pessoas repentinamente saíram correndo, abandonando o local. Elas então ficaram no passeio do doutro lado, rindo e ainda sambando.  Um tempo depois, voltaram e se ajeitaram novamente sob a manta daquela sonoridade. Nós achávamos aquilo uma maravilha. Seria um signo novo, um jeito de sambar, correndo de vez em quando para o outro lado e depois, manhosamente voltando para perto do clube? Não era isso a vida que faltava naquele mundo da oposição oficial e seus intelectuais amarelados?

A coisa se repetiu diversas vezes. E era uma correria maluca, uma multidão de gente empurrando e se acotovelando aos risos e aos gritos. Foi então que “caiu a ficha”: a enorme quantidade de gente brincando não nos permitia ver que havia um grupo de policiais militares protegendo o clube, com cassetetes enormes, que davam choques elétricos. Quando as pessoas se aproximavam alegres, eles vinham e desciam o cacete. Um deles passou perto de mim e, confesso, se me tivesse atingido, magrinho daquele jeito, mais para astral do que para a terra, teria desmaiado ou voltado para o outro planeta.

Sacamos, então, o que ocorria: a polícia militar da cidade do Rio de Janeiro estava ali não para garantir a segurança dos cidadãos que brincavam na rua, mas para mantê-los afastados da elite carioca. Ora, ora, lembramos que estávamos em plena ditadura militar e que, portanto, não poderia ser muito diferente.

Alguém falou em sociedade cindida? A alegria podia ser revolucionária, mas os territórios eram muito bem demarcados. Havia alegria e alegria. E junto a essas, as misturas de outras linhas – como o balé das policiais brandindo seus cassetetes.

Com o tempo, achamos aquele modo de brincar o carnaval muito arriscado: ficar na porta de um clube particular, fugir da polícia correndo, sambar do outro lado da rua gozando os caras e depois voltar devagarzinho, para depois correr de novo.

Fomos andando e pudemos ver, mesmo, como a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro abrigava uma diversidade, uma valorização do corpo e da sensualidade que nos deixava estupefatos. Mesmo tendo a polícia aquele comportamento. E mais uma vez, os signos dessa nossa sociedade cindida surgiram diante de nossos olhos.

A cena era de pânico. Uma mulher de vestido longo, com um corte de um dos lados mostrando a perna morena, estava aos gritos, por ter encontrado seu carro arrombado, com o vidro quebrado. E em volta dela, um monte de meninos que, mais tarde, seriam chamados de meninos de rua. E juntou uma pequena multidão, a maior parte formada de foliões pobres.

Havia toda uma libido no ar.  Uma sensualidade exaltada, bem carioca, mas que trazia uma marca: a da separação entre ricos e pobres. O desespero da mulher era ao mesmo tempo opulência carnal e financeira, arrogância e desprezo pelos que estavam em volta. E todos olhares a fixavam comprovando isso, mas lambendo as sobras que aquela rainha largava no chão.

Era como se alguém exibisse, para pessoas simples e pobres, a caixa de joias que lhe fora roubada. O que só despertava mais a avidez.

Entendi, então, que o carnaval não era muito diferente dos estados mais prosaicos da vida. Não era somente a morenidade suntuosa e alegre, a resistência maliciosa e renitente, mas também cisão, exibição de status e riqueza, desprezo e ódio acumulado. A exceção era, por sua vez, a inscrição de um modo de vida.

Cosmonautas recém-chegados ao planeta, perdemos a inocência naquela tarde de carnaval.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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