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Filosofia Geral

Deleuze: do uso intensivo e do uso extensivo da linguagem

 

Num artigo intitulado O agramatical: os procedimentos da diferença, Júlia Maria Costa de Almeida explora relações entre pesquisa filosófica e experimentação literária na filosofia da diferença em Gilles Deleuze.  A seguir, alguns trechos que selecionei, recomendando antes a leitura do texto completo. Aliás, ele faz parte do livro A diferença, organizado por Luis B. L. Orlandi, publicado pela Editora Unicamp.

Os trechos que aqui apresento, incidem sobre esse caráter agramatical da literatura contemporânea, especialmente sobre os conceitos de tensores em Deleuze. Nessa parte, a autora aborda a distinção entre o uso intensivo da linguagem em contraste com o uso extensivo ou representativo. Esse artigo de Júlia Maria Costa de Almeida explora com clareza tais usos, de modo a liberar a potência criadora da linguagem. O tema rebate, ao meu ver, em nossas interpretações do mundo, tão presas que estão a esses usos representativos da linguagem.

“Deleuze e Guattari fazem notar, em Kafka – por uma literatura menor (1977), que o uso extensivo compensaria a desterritorialização primitiva da língua, isto é, o fato de que, para surgir, a língua implica uma desterritorialização, da boca de sua função alimentar primeira, por uma reterritorialização sobre o sentido. Aquele som desterritorializado, ou sem território próprio, se torna o instrumento do sentido e, como tal, cumpre uma função designativa (designa coisas ou estados de coisas) ou figurativas (quando se aplica a casos especiais, como na metáfora). Esse uso extensivo dominaria as operações de criação de símbolos, de imagens e de sentidos ocultos. O uso intensivo, ao contrário, leva adiante a desterritorialização primitiva da língua, levando a matéria fônica a atravessar um continuum de estados e de variações, restando apenas um mínimo de sentido a conduzir o devir das palavras. No uso extensivo, uma palavra como ‘cão’ designaria um animal (algo que se comporta como um cão). No uso intensivo, as palavras são levadas a experimentar um devir-cão: ladram, rangem, vibram em intensidades, fazendo nascer um cão linguístico, que não é uma coisa designada nem uma imagem figurada, mas uma intensidade-cão cavadas nas palavras, pela neutralização dos processos de sentido, pela criação de um continuum, isto é, pela instauração de um processo de variação contínua, tal como em Kafka e o continuum intenso dos devires-animais. Estaríamos no plano de ação dos tensores operadores de tensão na língua.”  

“Inserido no pensamento deleuziano, o intensivo ou tensor tornar-se um vetor de fuga, introduzindo uma tensão nos sistemas em que se desenvolve. É, assim, uma potência de desterritorialização linguística, fazendo cm que a língua se incline em direção a um limite de seus elementos. Não coincidente com nenhuma categoria linguística e podendo encarnar-se em todas elas, o tensor é uma função ou um papel que podem desempenhar quaisquer elementos da língua quando se evoca sua potência de desterritorialização. Enquanto procedimento poético, ele revela uma poética cuja figura já não pode ser a metáfora: o tensor é uma (des)figura, uma metamorfose.”

“Os tensores implicam, assim, fases, limites ultrapassados, levando consigo todos os termos que o avizinham, transitivando a frase, fazendo com que os elementos reajam uns sobre os outros e assegurando a variação de todas as variáveis e o desequilíbrio do conjunto. Se ele é uma expressão atípica ou simples que faz a língua proliferar pelo meio, uma sintaxe modular ou gagueira, o tensor implica sempre um limite da linguagem para o qual tende essa língua tensionada, uma expressão em que explodem todas as séries gaguejantes, que pode ser formalmente uma expressão gramatical, mas que seria sempre uma expressão com função-limite da linguagem, uma fórmula agramatical.”

Referências

ALMEIDA, Júlia Maria Costa de. O agramatical: os procedimentos da diferença. In: A diferença, Orlandi, Luis B. L. (org.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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