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Arte e acidente

A obra de arte funcionou durante alguns séculos como algo oposto, complementar ou compensatório em relação à vida – e a toda a sua instabilidade. Assim, a arte elevaria o acidente do mundo sensível a um grau de conhecimento superior. Pois no acidental que é inerente à nossa existência, há um lance de desordem que nos atinge: ficam nossas certezas suspensas. Dito de outro modo: algo  nos fez desviar do que seria a essência de uma coisa. E que foi creditada ao idêntico, ao permanente e ao contínuo. Ficamos abalados. Depois, transcorrido o desvio, volta-se rapidamente ou de algum jeito a uma estabilização. As emoções, a vontade de saber as causas (principalmente quando o acidente causa sofrimento), tudo nos remetendo de volta ao nosso mundo aparentemente seguro. E quando são aqueles acidentes, planejados por outros ou não (pois para quem vive o transcuro cotidiano não os esperam), que produzem catástrofes, compramos jornais, conversamos sobre o assunto… No entanto, a incerteza continua operando à nossa revelia.

Listo, a seguir, algumas atitudes possíveis em relação à conexão arte-acidente: 

1. Paul Virilio nos diz que a arte, hoje, é acidente. Este é justamente o título de uma de suas obras, juntamente com Sykvère Lotinger: The Accidente of Art. No entanto, a arte, ela mesma, ainda, não se deu conta desse fato. Mas é um acidente total, uma catástrofe. No entanto, Virilio diz que não acredita nas teorias do caos. O “mundo insano que abraçamos” não é algo nem positivo e nem negativo. Mas ele desorienta os sentidos. E, por isso, Virilio não acredita numa teoria do caos: isso é lixo, diz ele. “Nós não podemos viver sem um foco e um sistema regulador de nossas sensações”. Conhecimento é acidente. E arte é um modo de conhecer. Então, diz Virilio em outro texto: “Não há ganho sem uma correspondente perda. Ao inventar a substância é indiretamente inventado o acidente, então, quanto mais poderosa e eficiente a invenção, tanto mais dramático o acidente.” Virilio mostra como ciência, arte, guerra e acidente estão mutuamente implicados no mundo contemporâneo.

Em The accident of art, Virilio diz que “nós entramos num período de acidente total: tudo se danifica no acidente. O conhecimento tem sido mortalmente mutilado. Isso não é o apocalipse, esqueça isso. Não é uma catástrofe no sentido de que tudo vai parar (…). Não, tudo o que constitui o mundo tem sido experimentado num acidente, e sem exceção”.

2. Anne Bogart, criadora de um novo teatro norte-americano, no seu mais recente livro, And then, you act – making art an unpredictable world, no contexto do 11 de novembro, nos diz que, nessas circunstâncias, nossas certezas falham. Nesse momento surge um vazio potencial: podemos mudar o modo de uma onda perversa de patriotismo e mais guerra.

Para Bogart, deveríamos inventar novos modos de ver a vida. Ela cita o ensinamento budista que sugere ser a vida uma arte de adaptação. O trabalho de arte, pergunta ela, não seria, então, de tipo de adaptações necessárias à vida? Em face da adversidade, a arte nos daria a necessária coragem e energia. Anne Bogart cita o compositor Leonard Bernstein, para o qual, “a resposta de um músico à violência é tornar a música mais intensa”. A arte, lembra Bogart a partir de um poeta africano, é um meio de preservar as fontes de água de um povo no meio do deserto.

3. Numa outra postagem, intitulada de Improvisação e Experimentação, de Cage a kandinsky, abordo o tema da incerteza na perspectiva da indeterminação na criação cênica. O tema está aberto: a questão da arte contemporânea não estaria tanto na tematização da instabilidade, mas em incorporá-la ao processo.

4. Ann Cooper Albright (2003) coreógrafa e pesquisadora de dança contemporânea nos EUA, quando soube do ataque às torres em Nova York, respondeu à incerteza com uma improvisação. No dia seguinte ao ataque, relata a coreógrafa, as pessoas haviam percebido que habitavam um mundo diferente. Ela reuniu sua classe de estudantes no Oberlin College e, juntos, sentiram a necessidade de atuar com essa nova realidade que se abria no buraco das duas torres, através de uma improvisação no campus. A coreógrafa e pesquisadora de dança vê na improvisação a “habilidade em responder diferentemente” às mudanças, quebrando padrões de comportamento, trazendo a atenção para o momento de suspensão entre pontos de referência. Um espaço que permitiria a modificação das respostas habituais. Para ela, é o que necessitamos, tanto estética quanto socialmente, neste século XXI: uma physical awareness como um estado mental sutil, no qual há um engajamento corporal e em que improvisamos a partir de nossa própria experiência. Nesse aspecto, Albright vê a improvisação como uma filosofia de vida, não em termos de um sistema de crenças ou doutrina, mas sim como meio de relacionar movimento e experiência, na modalidade de um engajamento somático com o mundo, superando assim as oposições mente-corpo.

Referências:
VIRILLIO, Paul and LOTRINGER, Sylvère. The accidente of art. Translatede by Michael Taormina. Semiotext(e), Columbia University, NY, 2005.
BOGART, Anne. And then, you act – making art in an unpredictabel world. Routledge, N.Y, 2007.
GERE, David. Introduction. In: ALBRIGHT, Ann Cooper e GERE, David (editors).Taken by surprise: a dance improvisation reader. 2003: Wesleyan University Press, Middletown, EUA.


Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

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