O campo da criação cênico-corpórea tem-se interrogado, constantemente, a respeito de suas potências.Na dança contemporânea, nos teatros experimentais e pós-dramáticos, nos procedimentos working in progress de criação cênica, emerge, entre outras questões, a corporeidade como discurso e não apenas como suporte para significações que lhe são ulteriores. O corpo presente, atravessado por forças, compartilhando tem
Buscamos técnicas de presença, procedimentos de auto-revelação. Para além da virtuose, dos corpos execessivamente protegidos pelas técnicas, dos moldes que formatam a experiência, muitos artistas fazem emergir na cena as paisagens do corpo, suas percepções e afecções. Há uma diferença muito grande entre o artista que expõe seu narcisismo em cena e o que abre sua ferida narcísica. Deparai-me com um texto de Suely Rolnik, que trata das questões da subjetividade, da arte e da corporeidade. Reproduzo aqui um trecho, por ela mesma intitulado, Em busca da vulnerabilidade. Penso que estamos diante de um pensamento provocador e capaz de abrir outras conexões:
Um dos problemas visados pelas práticas artísticas na política de subjetivação em curso tem sido a anestesia da vulnerabilidade ao outro – anestesia tanto mais nefasta quando este outro é representado como hierarquicamente inferior na cartografia estabelecida, por sua condição econômica, social, racial ou outra qualquer. É que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simples objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade. Ora, ser vulnerável depende da ativação de uma capacidade específica do sensível, a qual esteve recalcada por muitos séculos, mantendo-se ativa apenas em certas tradições filosóficas e poéticas. Estas culminaram nas vanguardas artísticas do final do século XIX e início do século XX, cuja ação teve efeitos que marcaram a arte ao longo do século e que, mais amplamente, foram se propagando pelo tecido social deixando de ser apanágio das elites culturais, principalmente a partir dos anos 1960. A própria neurociência, em suas pesquisas recentes, comprova que cada um de nossos órgãos dos sentidos é portador de uma dupla capacidade: cortical e subcortical (1).
A primeira corresponde à percepção, a qual nos permite apreender o mundo em suas formas para, em seguida, projetar sobre elas as representações de que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido. Esta capacidade, que nos é mais familiar, é pois associada ao tempo, à história do sujeito e à linguagem. Com ela, erguem-se as figuras de sujeito e objeto, claramente delimitadas e mantendo entre si uma relação de exterioridade. Esta capacidade cortical do sensível é a que permite conservar o mapa de representações vigentes, de modo que possamos nos mover num cenário conhecido em que as coisas permaneçam em seus devidos lugares, minimamente estáveis.
Já a segunda, a capacidade subcortical, que por conta de sua repressão histórica nos é menos conhecida, nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. Desde os anos 1980, num livro que acaba de ser reeditado (2), chamei de “corpo vibrátil” esta segunda capacidade de nossos órgãos dos sentidos em seu conjunto. É nosso corpo como um todo que tem este poder de vibração às forças do mundo.
Entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade de percepção há uma relação paradoxal, já que se trata de modos de apreensão da realidade que obedecem a lógicas totalmente distintas, irredutíveis uma à outra. A tensão deste paradoxo é o que mobiliza e impulsiona a potência do pensamento/criação, na medida em que as sensações que vão se incorporando à nossa textura sensível operam mutações intransmissíveis por meio das representações de que dispomos, provocando uma crise de nossas referências. Assim, integramos em nosso corpo os signos que o mundo nos acena e, através de sua expressão, os incorporamos a nossos territórios existenciais. Nesta operação se restabelece um mapa de referências compartilhado, já com novos contornos. Movidos por este paradoxo, somos continuamente forçados a pensar/criar. O exercício do pensamento/criação tem, portanto, um poder de interferência na realidade e de participação na orientação de seu destino, constituindo assim um instrumento essencial de transformação da paisagem subjetiva e objetiva.”
Suely Rolnik
Referências:
Texto integral em http://www.rizoma.net/interna.php?id=292&secao=artefato
Textos de Suely Rolnik no site do Núcleo de estudos da subjetividade.