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Travessia de Isaura

Deu-se hoje, às 13:45 horas, o passamento de Isaura Castellões de Almeida, minha mãe, aos 85 anos.  Para ela um barco de flores brancas, insenso e mantras.

Isaura me deixou, entre outras coisas, o gosto pela leitura. Vim do interior para a grande  cidade com seis anos, tendo que me forçar à alfabetização quando o mundo era puro encanto e linhas de fuga. Outro dia tropecei na mesa em que, com sofrimento, encarei a primeira cartilha. E até hoje tropeço nas letras, apesar da paixão pela palavra-imagem.  Isaura, percebendo que a minha vida escolar estava difícil,  deu-me livros que fizeram a estranha e impossível conexão  (para um menino que corria livre pelo mundo)  entre os sentidos do texto e das trilhas-afetos-texturas.

Entre os livros: Simbad, o marujo, as fábulas mais incríveis e As aventuas de Tom Sawer. Neste, a infância em sua altivez. Só quem leu é quem sabe disso.

A vida é um concerto de desacertos. Os últimos dias  foram difíceis, de aprendizados árduos, tanto para mim quanto para ela. Passamos os dois uma noite acordados, em meio à turbulência do chamamento, quando ainda acreditava que  sobreviveria. Na noite seguinte, meu irmão, que a acompanhava, me telefona e me diz do agravamento.  Hoje, no CTI, tive ainda o tempo de lhe dedicar mantras e massagear seus pés naquela sala fria de aparelhos. Poucas horas depois  ela se despede.

Para Isaura, todo o carinho e a coragem para essa travessia, na letra e música de Gilberto Gil e João Donato:

Beira do mar
Todo mar é um
Começo do caminhar
Pra dentro do fundo azul

A despedida do bardo da vida será marcada, simbolicamente, pelo enterro de seu corpo  no Parque Bosque da Esperança, dia 13.07, às 15 horas.

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Arte e Cultura Geral Políticas culturais Zonas Experimentais [ZnEx]

Experimentação artística em pauta: do contemporâneo ao intempestivo

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Das Zonas de Experimentação (ZnEx)

A experimentação artística está em pauta. Posso assim resumir a noite do dia 30.07.08, na ocasião de reabertura do Teatro Klaus Vianna, em Belo Horizonte, que faz parte do projeto Oi Futuro, incluindo o lançamento da Semana Internacional de Artes Digitais e Alternativas (SIANA-BH). Esta última, uma iniciativa da Cia Luna Lunera de teatro. Estamos definitivamente entrando em outra realidade de produção em arte e cultura. Não em termos de novo paradigma, uma superação do passado ou de outras formas de expressão, ou coisas assim. Em vez de uma  ultrapassagem, o que temos é a estranha co-habitação de criações artísticas e atitudes existenciais completamente heterogêneas entre si.

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Artes Cênicas

Um teatro de imagens sonoras e visuais

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Imagem: Sabrina Valente

Festival de Cenas Curtas, 10a edição, 2009. Participamos com um teatro de imagens sonoras e visuais. Numa zona fronteiriça, pós-morte, três pessoas encontram-se numa total inconsciência de sua situação. O lugar é tão localizado quanto vago: uma espécie de parada de transporte, com um backlight ao fundo contendo uma imagem de textura, com a expressão “tudo passa” de modo serial, atravessando o quadro. Mas o topos da encenação torna-se um deserto no qual as pessoas vagam tentando tatear seus rastros, suas lembranças, ao mesmo tempo que acionam seus egoísmos, covardias e epifanias.  São fantamas famintos errando por esse mundo. O objeto que cada um leva e a dimensão ritual são outras marcas que já vêm de trabalhos meus anteriores. Nesta cena curta, cada um leva consigo um objeto: um revólver, uma boneca enrolada com uma corda, um display de uma Pin-up. São os traços de  memórias que levam consigo nessa travessia. Estão agarrados a esses traços e voltam a cometer os mesmos atos, numa história de repetição. Assim se configura a cena Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.

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Filosofia Geral Micropolítica

Viroid life: memória e devir

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Imagem: Ground

“O fenômeno da memória é múltiplo: poderia ser chamado de memórias moleculares, memórias sociais, memórias curtas e memórias longas, memórias absolutas e relativas, memórias doentes e memórias saudáveis, de mnemotécnicas e de invenção de uma memória intensiva, e assim por adiante. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari opõem devir e memória na tentativa de construir um modelo de evolução não-genealógico (numa evolução que não seria restrita ao esquema linear pressuposto na árvore da vida). E nessa perspectiva, eles entendem que as memórias moleculares ou minoritárias existem numa integração no sistema molar, ou majoritário (Deleuze e Guattari 1988:294 – páginas da edição inglesa). O fato de Deleuze e Guattari subestimarem o poder criativo e subversivo da memória tem a ver com o modo como esta se associaria às técnicas mnemônicas (ibid.: 295). Nessa perspectiva, a memória funcionaria como uma organização pontual, na qual o presente refere-se simultaneamente a uma linha horizontal que captura o fluxo do tempo, movendo do presente antigo para um presente atual, e a uma linha vertical que captura a ordem do tempo, indo do presente para o passado, ou para a ‘representação’ do presente antigo. Os autores opõem os ‘sistemas multilineares’ aos sistemas pontuais, sendo que os primeiros, que são sistemas complexos e abertos, tão evidentes no trabalho dos músicos e pintores, nos quais temos a liberação da linha, fazendo-a numa diagonal, e não mais numa verticalidade e horizontalidade.

Neste sentido, em que a linha se sobrepõe ao ponto, os autores colocam que todo ato de criação é, em última instância, ‘trans-histórico’: ‘criações’, escrevem, ‘são como linhas abstratas e mutantes que abandonam por si mesmas a tarefa de representar um mundo, precisamente porque elas configuram uma nova realidade que a história pode somente recontar ou recolocar em sistemas pontuais’ (ibid.: 296). Nesse modelo, os devires tomam um lugar na história, mas nunca se reduzem a ela:  ‘Quando isso ocorre [o estancamento da linha] é sempre submetido à História, mas nunca a partir desta (ibid). A História, para Deleuze e Guattari, é uma definição molar. A única história que se faria possível seria a que sempre tem sido e para sempre será – a história do homem (embora se deve notar que os autores preservam os ‘múltiplos devires do homem, mas nenhum devir-homem’). Para eles, as técnicas de memória têm sido cultivadas com o objetivo de servir à molarização da história. Mas, onde a memória fixa codifica, e assinala funções, a atividade dos devires torna-se liberadora por um rebatimento no jogo transversal da comunicação entre fenômenos heterogêneos, de tal modo que eles criam genuinamente o novo e a diferença.

(…)

Encontramos nas colocações de Deleuze sobre a teoria das duas memórias, que aparece tanto em Freud quanto em  Nietzsche (Deleuze 1983:115). A primeira é uma memória específica do homem ressentido, na qual  os traços da memória tornam-se tão indelevelmente marcados na sua consciência que ele já não é capaz de agir (que exige  esquecimento). Não se trata apenas do caso de que sua ação é apenas reação, mas sim que ele é incapaz de agir, pois mesmo fora da reação ele se sente reagindo, tornando interminável (indigerível) o processo. A segunda é uma ‘memória ativa’,  ‘que já não repousa sobre os traços mnemônicos (Deleuze 1983:112-15). Aqui memória já não é simplesmente uma função do passado, uma incapacidade de fluir, transformando-se antes  numa atividade do futuro, uma ‘memória  que é própria do futuro’ (ibid.: 134). Reinterpretar a memória humana, alguém poderia sugerir, envolveria  traçar uma evolução ou transformação daquilo que não pôde entrar na consciência contemporânea, numa busca dos vestígios ‘sígnicos’ do além-do-homem, em que a memória humana nos libertaria de nossas feridas purulentas, do  desprezo e da comiseração que percebemos no rosto da humanidade. “Uma investigação sobre a ‘origem’ é, portanto, sempre uma investigação sobre o devir-futuro e sobre os devires do futuro.”

Ansell Pearson – Viroid life: perspectives on Nietzsche and transhuman condition. Routledge, 1997.

Mais referências –

Viroid life no Google Books

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Arte e Cultura Geral Literatura

A fala errante: Blanchot

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Imagem de Tomas Rotger

“Devemos, em primeiro lugar, tentar reunir alguns dos traços que a abordagem do espaço literário permitiu-nos reconhecer. Aí, a palavra não é um poder, não é o poder de dizer. Não está disponível, de nada dispomos dela. Nunca é a linguagem que eu falo.  Nela, jamais falo, jamais me dirijo a ti e jamais te interpelo. Todos esses traços são de forma negativa. Mas essa negação somente mascara o fato mais essencial de que, nessa linguagem, tudo retorna à afirmação, que o que nega nela afirma-se. É que  ela fala como ausência. Onde não fala, já fala: quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio fala-se nela.  O próprio da fala habitual é que ouví-la faz parte de sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a linguagem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento.