“O fracasso da velha esquerda em pautar e conduzir os protestos não precisa necessariamente significar que os protestos não sejam de esquerda, como alguns sentenciaram horrorizados. Talvez signifique que a velha esquerda não seja mais esquerda. Não mais. Talvez signifique, aliás, que seja a hora de a velha esquerda reaprender a ser esquerda. E antes o levante qualificar a esquerda, do que esta a qualificá-lo.” Bruno Cava, Kairós Junino.
Apresento algumas anotações sobre a manifestação do dia 26.06.2013, a caminhada da qual participei até as proximidades do estádio Mineirão, quando Brasil e Uruguai jogaram pela Copa das Federações. Mais uma vez, o Estado e seu braço armado não permitem que os manifestantes adentrem no território da FIFA, impedindo a expressão dos descontentamentos e tudo vira uma zona de guerra.
O momento que vivemos é único, é novo e deflagra outros processos de subjetivação política, que até então não estavam presentes, pelo menos de modo tão contundente e amplo, no cenário político brasileiro. E talvez por isso mesmo cause tanta perplexidade. Movimento apartidário, sem mobilização não hierárquica e orientação unificante, envolvendo novos atores, como os jovens das periferias, muitos deles presentes nos combates mais duros. Pelo país inteiro enfrentam bombas de lacrimogêneo e de efeito moral, além das balas de borracha. A mídia, por sua vez, assim como os governantes, insiste em tomá-los como criminosos, separando-os das “pessoas de bem”. E há quem acredita nisso.
A cada novo protesto, um novo conflito, com feridos e prisões. E a pergunta que sempre surge: qual o próximo passo desses movimentos que tomaram as ruas das nossas cidades? Qual deve ser o foco? Como avançar? Frente ao clima de violência, às investidas da imprensa e do governo para criminalizar os jovens, sem falar nas infiltrações não controladas e imprevisíveis, não seria hora de repensar as táticas e os rumos do movimento?
A caminhada até o Mineirão e o que ocorreu lá, mostra um pouco da complexidade social e política em que estamos inseridos. Apresento aqui minhas observações, precárias, como tudo o mais:
1. A marcha da multidão te envolve e te conduz como uma onda. As pessoas se deslocam a uma distância imensa, da Praça Sete ao Mineirão (10 km de ida e mais 10 de volta), para dizer não aos gastos com a Copa e aos desmandos da FIFA em nosso país, para reivindicar investimentos em educação, saúde e mobilidade urbana, para expressar descontentamento com os políticos e a corrupção, para estarem juntos nas vias públicas e tantos outros motivos.
A mídia divulgou amplamente um “acordo” entre o Governo de Minas e o COPAC – Comitê Popular dos Atingidos pela Copa – de que a PM somente revidaria para garantir a própria integridade física dos agentes públicos da ordem. E disseram também que os manifestantes não adentrariam no território da FIFA.
Quando cheguei, as bombas explodiam próximas a uma barreira física de gradis colocada pela PM, já que um grupo “mais radical” tentava ultrapassar o limite imposto. Muitos outros seguiram em frente, em direção à Pampulha, mas um grande contingente de pessoas ficou parado, assistindo literalmente ao combate travado.
Aqui, começam os problemas. Disseram que houve uma votação na Praça Sete, na qual foi votada uma caminhada até a Pampulha e que não procurariam forçar a entrada na zona de exclusão da FIFA. Fica a pergunta: isso não é um equívoco? Como assim, fazer uma votação na última hora, sendo que a entrada de novos participantes se fazia a toda momento? O que significa para um protesto daquela magnitude, numa caminhada extensa e cansativa, chegar num lugar onde se protesta para nada, para ninguém?
O COPAC afirmou em nota que havia advertido o governo de que não poderia controlar o movimento, que era múltiplo. Mas será que o fez de modo contundente? Será que marcou com ênfase o repúdio, que me parece ser predominante, a esse regime de exceção que a FIFA goza em território brasileiro?
A Polícia atirava bombas inicialmente na linha de frente, procurando afastar aqueles que tentavam remover as barreiras. Depois, atiraram no meio da multidão. O vídeo divulgado pelo governo mostra que a polícia era atingida por artefatos, pedradas etc. Mas não mostra que a PM, logo depois, inicia o ataque às pessoas que se encontravam muito abaixo. O roteiro era previsível: tumulto, desorientação e depredações. A imagem que os meios de comunicação passaram foi a de quebra do acordo por parte do Movimento. Ou seja, fabricaram a ideia de uma representação, quando é justamente isso que se encontra em crise nos protestos atuais. E afinal, o governo tentou sair com a cara limpa: os manifestantes é que não deram conta de controlar os radicais, argumentaram.
Aqui, a questão: há pessoas que não se sentiram representadas pelo “acordo”. E a imagem que os mobilizadores deixaram passar, ao montarem um cordão humano para evitar que as pessoas se dirigissem à barreira física foi, no mínimo, ingênua. Fizeram a cena que o Estado e seu braço armado queriam: “pessoas de bem” protegendo “militares de bem” contra “malfeitores”.
Esse é um dado que aponta para a complexidade do atual momento: as representações se esfacelam e os modelos clássicos de participação se mostram falidos. Os comunicados do COPAC, após a manifestação, foram contundentes, mas não explica a situação e tampouco resolve o problema: qual o objetivo e quais as táticas de realização de um protesto dessa magnitude?
2. Para quem não participou da Assembleia Popular, que veio no bojo da convocação ampla pelas redes sociais ou por convites, ocorreu uma total desorientação. Você não sabe o que fazer, mas que dá uma vontade absurda de lutar, isso dá. As bombas fazem um barulho ensurdecedor. Porém, acabam por conclamar muitos corações ao combate, em vez de intimidá-los.
Aplausos e vaias se alternam de um minuto para o outro. As bombas são lançadas, sim, no meio da multidão. Os jovens que estavam em combate direto recuram para a Avenida Antônio Carlos e acende uma fogueira. E desce do viaduto imensa bandeira amarela denunciando o “unfair play” do conluio Governo e FIFA. A multidão vibra. Começam as depredações, segundo os relatos.·.
Depois que o incêndio sobe, a maioria das pessoas começa a se dispersar e a tentar voltar para casa. Aparece mais uma notícia de que dois jovens haviam caído do viaduto. E você se pergunta: de novo? Isso não vai parar?
Para muitos, como eu, fica o espetáculo do incêndio, a zona de guerra, e a sensação de que eles, os outros – os radicais, os vândalos – é que realizaram a manifestação. Você assistiu, viu, mas não fez nada, apesar do sentimento de participar da caminhada, de se juntar à multidão, de viver o momento grandioso daquela enorme mobilização.
No meio da ação, a minha percepção é a de que não há orientação clara que pudesse agregar pessoas ao movimento, aos seus objetivos e motivações. Posso estar equivocado, mas entendo que, diante da realidade não hierárquica e apartidária desses movimentos, os mesmos encontram dificuldades em produzir conexões, em manter e criar redes que não sejam as da internet. À falência da representação política não estamos criando uma estrutura solidária e criativa de ocupações e objetivos. Pelo menos, foi essa a minha impressão e a de muitos com quem conversei.
Você não tem contatos, se não é do movimento. As pessoas em volta não sabem de nada. Não podem te orientar. Alguns grupos organizados – MST entre outros – conseguem se juntar e sustentar alguma coesão. Porém, são ilhas isoladas umas das outras. E se você não faz parte de um desses grupos, fica perdido sozinho. Ou com seus colegas, unidos por algum sentimento vago.
A capacidade de afetar e ser afetado fica restrita, nessas horas, às reações mais instintiva – que leva à necessidade de alguns partirem para a depredação – ao medo, à perplexidade ou mesmo à atitude contemplativa de ter assistido a um campo de guerra.
Volto à pergunta: o pessoal que vinha com carro de som, que fez cordão humano para evitar que o território da FIFA fosse invadido, procurando assim manter o “acordo” com o Governo, esperava precisamente o quê de uma manifestação dessas? Que as pessoas caminhassem dez quilômetros a pé, para fazerem nada?
3. A Copa é excludente por si. O governo errou ao acreditar que milhões de jovens ficariam nas praças, assistindo em telões, enquanto os mais favorecidos e turistas iriam, eles sim, aos jogos. E que o Brasil estaria fulgurando no cenário internacional, com os pobres recebendo os ricos, agradecidos pela visita. E para isso criando toda uma legislação de exceção, retirando pessoas dos seus lugares, despossuindo as pessoas dos territórios e símbolos de vida, impedindo manifestações contrárias etc. O impacto social é imenso e não foi levado em conta pelos governantes.
6. A Polícia Militar, por sua vez, não sabe lidar com esses confrontos e nem consegue organizar uma inteligência estratégica, que vise à proteção e a segurança dos cidadãos. Não possui feedback social e humano. Só conhece a militarização dos conflitos. Como se estivéssemos numa guerra onde o inimigo fosse coeso, estruturado hierarquicamente, armado etc. Os governantes não conseguem entender o fracasso dessa polícia militarizada? Ou vão continuar ignorando as mortes, violações de direitos e agressões absurdas?
A maior parte das ações da Polícia Militar são confrontativas, incitando o jovem despossuído e humilhado pelo cotidiano a reagir com bravura, a recobrar seu valor e sentido de viver. Percebe-se que a Polícia Militar encontra-se completamente despreparada e não sabe ir muito além da escalada da violência. As pessoas presenciam os atos de pura covardia da Polícia Militar quando ataca, por exemplo, um manifestante indefeso. Os exemplos e as denúncias são inúmeros. Não sou a favor das depredações e da violência por parte dos manifestantes, mas de modo algum a ação da polícia tem sido correta. Pelo contrário, em grande parte a ação é errática, confusa, incitando o ódio.
Uma pauta urgente: a desmilitarização da polícia!
4. Por fim, o caminho de volta. De novo a onda da multidão pela noite, seguindo pelas vias sem veículos, tendo helicópteros sobrevoando, até chegar ao centro da cidade. Nesse trajeto pude constatar a ignorância de nossos urbanistas, aliados ao capital que retira das cidades todo o sentido de apropriação dos tempos e espaços: uma paisagem somente para as vias de transporte. Nenhum telefone público, nenhum contato humano ou social mais próximo. Foi importante percorrer a pé e à noite esse caminho para ver o que fizeram com a cidade. Desmontaram e retiraram toda uma vida de pequenos comércios, bares etc. para gerar um imenso vazio.
Há uma coisa que me inquietava na caminhada de ida. As pessoas tinham pressa em chegar. Mas eu me perguntava o todo tempo: chegar aonde e para fazer o quê? Protestar diante de quem, se concordaram em manter a barreira? A volta não foi diferente. A ocupação difusa da Praça Sete, com a Polícia Militar confrontando, jogando bombas e dizendo que “devolvia a praça ao povo” não deixa dúvidas de que a tática tem que mudar e as ideias e coordenadas devem ser mais bem compartilhadas.
É necessário manter e ampliar a multiplicação virótica dessa nova realidade. E ao mesmo tempo reafirmar o desejo e e produzir os meios de ocupar criativamente a vida das cidades. Caso contrário, estaremos deixando que a expressão dominante, como linha de frente da ação, seja o confronto com as polícias e as depredações. O que será convertido em espetáculo para a ampla maioria, além da generalizada criminalização da juventude de periferia, como pude constar na marcha do dia 26.06.2013.
O sociólogo Rudá Ricci aponta para os esgotamento breve dessa via, se não houver uma reorientação. Sugere caminhos que possam gerar a produção de novas ideias e práticas políticas (com ênfase nos encontros, discussões etc.). Célio Turino, por sua vez, fala da importância das Assembleias Populares. Pois, ” continuar saindo às ruas em revolta difusa só abrirá espaço para manipuladores. Daí a necessidade de um caminho que canalize toda essa energia em um programa mínimo”.
O que não significa “reduzir as expressões das ruas à pura negatividade, como um caos niilista”, como observa Bruno Cava. Pois, como ele diz , ” se me indigna a gestão policial dos territórios dos pobres, é porque conheço outras formas de auto-organização, formas políticas e culturais muito mais cooperativas, alegres e democráticas”.
As avaliações e propostas não são excludentes entre si. Elas apontam para a necessidade de reinvenção da política e da importância da apropriação dos tempos e espaços do viver nas nossas cidades.
Portanto, temos que achar uma linha que não seja unificante, que incorpore a multiplicidade e a lição dos protestos de rua, mas que também não leve a uma dispersão infinita. A imagem que a Pós-Tv mostrou, das pessoas vagando indecisas na Praça Sete depois da marcha, em busca de um sentido participativo, à mercê de bandidos infiltrados, de atos isolados de quebradeira e de truculência policial, impõe a necessidade de reorientação.
Mais referências –
– Nota do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa –
– Nota Pública do Copac: se querem achar culpados, culpem a Fifa!
– Kairós Junino – Bruno Cava
– Assembleias conselhos populares, já! – Célio Turino
– Hora de mudar o formato das mobilizações – Rudá Ricci.
– BH nas ruas: resumo da manifestação do dia 267.06.2013
– Comando da Polícia Militar não fala da verdade. Por Luiz Carlos Garrocho
– A tomada das ruas no Brasil: que reivindicação é esta? Por Luiz Carlos Garrocho