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O Estado se exprime pelos vazios

Lefebvre disse que o Estado se expressa, na cidade, pelos vazios. Não necessariamente por meio de “espaços não cheios”, como Sérgio Martins, tradutor de A revolução urbana, me lembrou. Pois os espaços urbanos tomados por uma infinidade de  carros  e viadutos, assim como de pessoas transitando apressadas de um lado para o outro, também seriam vazios. Num e noutro caso, uma negação ou exclusão de práticas sociais e de convívio.

Aliás, eu não curto muito a expressão “vazios” para esses casos. Compreendo a denúncia de Lefebvre. Porém, prefiro guardar o “vazio” para um agenciamento de outra ordem. Prefiro chamá-los de “lugares da ausência”, ou para pensar com o antropólogo Marc Augé, de “não-lugares”. Uma negação do lugar como prática social:

“o não-lugar é o contrário da utopia: ele existe e não abriga nenhuma sociedade orgânica”.

Os dois conceitos não dizem a mesma coisa, mas se conectam.  Eles expressam essa ausência. No caso em tela, os “lugares da ausência” que o Estado produz através do urbanismo, visando os interesses do capital.

No entanto, a cidade resiste – diz Lefebvre. Inventam-se meios e formas de vida. E que muitas vezes trazem o reverso da vida expropriada. Aliás, quase sempre em reverso, pois que não temos um começo idílico. Desde o início, a expropriação em curso. Ou, seguindo Gilles Deleuze, desterritorializações e as consequentes reterritorializações. A migração do interior para as cidades, as favelas e vilas, a destruição e posterior deslocamento, o surgimento de grupos e indivíduos com vínculos mais frágeis, a política de higienização e por aí vai. E os que migraram para as cidades? Foram outras tantas desterritorializações sofridas no campo.

A imagem em tela flagra essa produção do espaço pelos vazios. Espaços para nada e para ninguém. Apesar de alguém sempre encontrar algum uso, às vezes solitário e esquecido.

O urbanismo surge como solução. Para quem? Para o Estado – que se sobrepõe a tudo e a todos para, ao planificar, viabilizar novos recursos para o capital. Mas que solução é essa? Lefebvre entrega o jogo:

“O que ele [o urbanismo] mascara? A situação. O que ele encobre? Operações. O que ele bloqueia? Um horizonte, uma via, a do conhecimento e da prática urbanos. Ele acompanha um declínio, o da cidade espontânea e da cidade histórica. Ele implica a intervenção de um poder mais que a de um conhecimento. Se alcança uma coerência e impõe uma lógica, trata-se da coerência e da lógica do estado, ou seja, do vazio. O Estado só sabe separar, dispersar, abrir amplos vazios – as praças, as avenidas – à sua imagem, a da força e da coação. […] O urbanismo impede que o pensamento se torne reflexão sobre o possível, reflexão sobre o futuro.”

Quando pequeno, convivi com os lugares ainda não preenchidos por edificações: os terrenos baldios. Mas aqueles não cumpriam a função de negação do lugar. Pelo contrário, eram constantemente ocupados. Porém, o que nós, meninos, não sabíamos: aqueles terrenos dotados toda invenção (o futebol de várzea, os circos que ali ancoravam, os encontros dos bandos, os barracos ali instalados…) já eram investimentos futuros. Apenas uma questão de tempo.

Um dos exemplos mais críticos, dessa expressão de vazios, é a região baixa da Lagoinha, em Belo Horizonte. Ali, no começo da Rua Bonfim e outras, havia todo um conjunto de casas antigas, hotéis de terceira classe, oficinas, bares, prostíbulos. A antiga vida boêmia da cidade espraiava-se, desde a Rua Guaicuru e adjacências, por ali. E logo adiante, o cemitério do Bom Fim. Pois nos anos 80 houve a primeira reforma urbanística da região. Lógico, que eu me dou conta. Um dia, fiz um passeio de bicicleta pela manhã e vi as casas sendo demolidas, dando passagem para um alargamento das vias e novos viadutos.

Depois, nos anos 90, a segunda reforma e que ficou. Veio, assim, uma nova “solução urbanística”: surgem os amplos espaços para nada, uma praça que não é praça, um largo que só é feito para evitar a aproximação das moradias e das pessoas. Comemoravam-se os 100 anos de Belo Horizonte. E isso tudo em meio a “consultas à comunidade”. Ou seja, enquanto o “humanismo” conversava, o “planejamento urbano” decidia ao seu próprio modo.

As práticas sociais anteriores já se encontravam modificadas. Há uma transição para os que não estabelecem mais vínculos com a produtividade econômica, os que não conseguem sequer o “passaporte da cidadania”. Estes se multiplicam, cada vez mais, na cidade gentrificada. Reformou-se o Mercado antigo da Lagoinha. Prometeu-se transformá-lo num espaço de cultura e convívio. Hoje, é quase só abandono, apenas com atividades ligadas à Secretaria do Abastecimento e da Saúde. O alimento e a saúde, assim como a moradia, sobrepõe-se ao habitat e às expressões da vida. O simbólico e sua política vivencial, ficam de fora. Não são necessidades as artes, a cultura e o convívio mediado. Pois as pessoas somente existem como objetos de uma ação do Estado. Chama-se isso de “política social”.

Os carros passam ao largo. Quem vem pela Antônio Carlos, no seu carro ou transporte público vê de longe o imenso vazio – a cidade “higienizada”. Pode colocar uma música e assim terá uma bela paisagem. Que não serve a ninguém.

Os “lugares da ausência” estão se multiplicando, seja pelas vias, seja pelas rotas de trânsito, seja pela desterritorialização de modos de vida ou, ainda, pelos monumentos de nada e para nada que o Estado produz na cidade.

Referências –

– LEFEBVRE, Henri.  A revolução urbana. Tradução de Sérgio Marins. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

____________. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.

– Augé, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.

A sociedade urbana de Henri Lefebvre – Por Fábio Raddi Uchôa

 

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

4 respostas em “O Estado se exprime pelos vazios”

Não existe mais pontos de encontros na cidade que não sejam pelo consumo direto: bares, shopping, lojas. Não vivencio o encontro pelos parques, nas calçadas…

Aqui em Fortaleza a gestão (aliás, palavra essa tão operada nessa lógica de estado neo liberal) vem a tornar as ruas cada vez mais lugar de dessertificação da vida. Apenas muros altos, carros que passam como naves rassantes, pouca ou nenhuma sombra de árvore. No lugar, apenas propaganda de mais moradias verticais contendo paraísos de diversão em seu interior, um aquário espetacular que abriga a forma de pensar que turismo é uma imagem pronta, sem pessoas, com artifícios e nada mais.

Fiz um vídeo para pensar um pouco isso, se puder assistir, talvez seja um caminho, ou parte dele: https://vimeo.com/39536053

Victor,

Agradecido pela informação e pelo vídeo.
Sim, as nossas cidades vão virando esses não-lugares, como diz Marc Augé.
Abraços

muito bom! lembrei-me de uma outra fala do h. lefebvre, sobre o que chama de “zona crítica”. resulta numa não compreensão das contradições da “sociedade urbana”, pois se carrega um conjunto de entendimentos, representações, etc, de um período que não é mais. seria isso “o contemporâneo”? a fratura entre o que foi e que ainda pode ser? entre um já existido lugar e seu espelho, esse “não lugar”, espaço das ausências?
essa entrevista com ele é muito boa – https://www.youtube.com/watch?v=z4klH4Hz3yg

um abraço!!

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