“O eterno retorno é potência de afirmar, mas ele afirma tudo do múltiplo, tudo do diferente, tudo do acaso, salvo o que os subordina ao Uno, ao Mesmo, à necessidade, salvo o Uno, o Mesmo e o Necessário. Do Uno, diz-se que ele subordinou o múltiplo uma vez por todas. E não é a face da morte? Mas não é a outra face, a de fazer desaparecer uma vez por todas tudo o que opera uma vez por todas? Se o eterno retorno está em relação essencial com a morte, é porque promove e implica “uma vez por todas” a morte do que é uno. Se ele está em relação essencial com o futuro, é porque o futuro é o desdobramento e a explicação do múltiplo, do diferente, do fortuito por si mesmos e “para todas as vezes. A repetição no eterno retorno exclui duas determinações: o Mesmo ou a identidade de um conceito subordinante e o negativo da condição que remeteria o repetido ao Mesmo e asseguraria a subordinação. A repetição no eterno retorno exclui ao mesmo tempo o devir-igual ou o devir semelhante ao conceito e a condição por deficiência de um tal devir. Ela concerne, ao contrário, aos sistemas excessivos que ligam o diferente ao diferente, o múltiplo ao múltiplo, o fortuito ao fortuito, num conjunto de afirmações sempre co-extensivas às questões levantadas e às decisões tomadas. Diz-se que o homem não sabe brincar: é que, mesmo quando ele se dá um acaso ou uma multiplicidade, ele concebe suas afirmações como destinadas a limitá-lo, suas decisões como destinadas a conjurar-lhe o efeito, suas reproduções como destinadas a fazer retornar o mesmo sob uma hipótese de lucro. Precisamente, é o mau jogo, aquele em que arriscamos a perder tanto quanto a ganhar, porque não afirmamos todo o acaso: o caráter preestabelecido da regra que fragmenta tem como correlato a condição por deficiência no jogador, que não sabe qual fragmento sairá. O sistema do futuro, ao contrário, deve ser chamado jogo divino, porque a regra não preexiste, porque o jogo já incide sobre suas próprias regras, porque a criança-jogadora só pode ganhar – sendo todo o acaso afirmado cada vez e para todas as vezes. Não afirmações restritivas ou limitativas, mas co-extensivas às questões levantadas e às decisões das quais emanam: tal jogo acarreta a repetição do lance necessariamente vencedor, pois ele só o é à força de abarcar todas as combinações e as regras possíveis no sistema de seu próprio retorno. Sobre este jogo da diferença e da repetição, enquanto feito pelo instinto de morte, ninguém foi mais longe do que Borges em toda sua obra insólita: “Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma infusão periódica do caos no cosmo, não conviria que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não apenas numa única? Não é evidentemente absurdo que o acaso dite a morte de alguém, mas que não estejam sujeitas ao acaso as circunstâncias desta morte: a reserva, a publicidade, a demora de uma hora ou de um século?… Na realidade, o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios necessitem de um tempo infinito; basta, com efeito, que o tempo seja infinitamente subdivisível… Em todas as ficções, cada vez que diversas soluções se apresentam, o homem adota uma e elimina as outras; na ficção do quase inextricável Ts’ui Pên, ele as adota todas ¾ simultaneamente. Ele cria, assim, diversos futuros, diversos tempos que proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, por exemplo, detém um segredo; um desconhecido bate a sua porta; Fang decide matá-lo. Naturalmente, há vários desfechos possíveis: Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang; todos os dois podem escapar, todos os dois podem morrer etc. Na obra Ts’ui Pên, todos os desfechos se produzem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações”.
Gilles Deleuze. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal Editora, 1988.
Mais Referências:
Resenha de Nuno Nabais sobre Diferença e Repetição: Rizomando