Categorias
Ativismo e Análise Política Geral

56 anos do golpe militar de 1964

Imagem do Coronavírus

A entrevista coletiva do Ministro da Saúde, em meio ao avanço da pandemia do Corona Vírus no Brasil, no dia que antecede os 56 anos do golpe militar de 1964 foi sintomática. Cercado por ministros, coordenado agora por um militar, o ministro da saúde não teve liberdade para conduzir a reunião com a imprensa e as mídias.

Tudo montado com o objetivo de conter o ministro, que procura se ater às orientações técnicas e científicas, inclusive da Organização Mundial da Saúde, para desgosto do presidente que se pauta por um desgoverno e, mais do que isso, por necropolítica e pulsão de morte, exigindo a toda hora que o ministro se curve e abra mão do isolamento social, necessário segundo líderes e cientistas mundiais, para conter o vírus e evitar mais mortes.

Que o ministro fosse exclusivamente “técnico” e não “político”. Já o ministro não se demite, e o governo teme demití-lo agora, apesar dos reclames do presidente. Além do que o ministério segue dividido, num arranjo de forças que oscila entre isolar o presidente psicopata (e é de uma psicopatia social de que realmente se trata) e manter o controle sobre um governo já esfacelado e anti-popular.

No formato arranjado, disseram que após a fala do ministro, somente oito perguntas seriam respondidas. Entretanto, quando um dos jornalistas presentes questionou as atitudes do presidente, com ostensiva desobediência ao padrão de isolamento social, saindo às ruas, conclamando população para manifestações contra essa orientação, todo o “gabinete da crise” se levantou e saiu.

A pergunta: por que os militares estão se atolando num governo psicopata, liderado por um incompetente, que se recusa a governar, que vive de ataques à imprensa e à honra das pessoas que dele discordam, para dizer somente isso?

Há quem diga que nunca deixaram a ideia de tutelar a nação. E parece que o atual presidente foi a mão na luva, desde que ruiu o pacto da Nova República, que buscou aliar reconstrução democrática e social. Para que os militares exercessem essa tutela diretamente, sem necessitar de um golpe, voltando ao poder pela onda de um capitão eleito pelo voto.

Nessa linha de raciocínio, ainda teriam a chance – e as comemorações do que chamam de “movimento de 1964” – de refazer a narrativa sobre o golpe. Há interesses, somente para dar um exemplo, na expansão dos colégios militares, configurando uma espécie de “revolução conservadora”, aliando-se aos evangélicos mais radicais e intolerantes, que poderiam fazer, por outra mão, o esteio de uma capilaridade popular em meio a uma paisagem de miséria. Uma espécie de “controle social” que, se falhar, teriam que usar de uma repressão violenta.

Enveredaram pela necropolítica do presidente que se chama Jair Bolsonaro. Curioso que um ex-capitão indisciplinado, espertalhão mas ignorante seja o líder dessa turma Já não se sabe quem controla quem. O presidente diz que ele é quem manda. Alguns militares mostram, com a calma e a frieza que lhes convêm nessa hora, que são eles que estão no controle e que já se preparam para se perpetuarem no poder sobre meios outros ou não.

Estranha que o capitalismo brasileiro – se é que existe essa figura – necessite dos militares para se manter. E mais ainda, que os militares se prestem a esse papel, substituindo os civis em suas funções.

Os governos do regime militar eram sombrios e frios. Promoviam os mercados e a inovação tecnológica enquanto prendiam, torturavam e matavam. Atrás dos seus óculos escuros – impressionante, como era um signo dos ditadores latino-americanos, de Pinochet a Médici e Geisel – comandavam com mão de ferro. Agora, o que eles têm é um psicopata populista, senão aliado pelo menos admirador de milicianos e assassinos. Não mais dos assassinos dos porões do regime militar, mas daqueles que nas franjas do Estado, controlam o narcotráfico e as forças que dominam o crime nas periferias.

O presidente que trouxe os militares ao poder vive falando palavrões, com uma maioria de ministros igualmente indecente (como o patrão) e incompetente, seguindo desastre por desastre, apostando as fichas no único que seria “competente” para eles, como o ministro da economia e seu plano neo-liberal que tem conquistado a classe política conservadora, o baixo clero político e empresários. E, é claro, temendo o ministro mais “técnico e científico”, o único em meio a uma bancarrota de ignorantes de toda espécie, que pela hora os conduz em meio à pandemia e aos mortos que se anunciam. Mas que, por sua vez, nunca deixou de ser político – e isso dobra as fichas do jogo atual.

Necropolítica e indecência andam juntas agora.

De todo jeito, o Coronavírus opera mudanças drásticas no mundo, que não será mais o mesmo. Agora, não é apenas negro e pobre quem corre o risco de morrer. E isso é um pavor. Já não podem mais as classes abastadas e brancas fazerem vista grossa ao descalabro social – pois para manter a epidemia sobre controle ou vencê-la, é necessário investimento social e estatal. A penúria da falta de investimentos sociais básicos (saneamento, educação e saúde) a que estão submetidas as periferias, agora não já se pode mais ignorar – ou o vírus explode com toda a sociedade brasileira!

Mais uma vez e em meio agora a tudo isso – a essa pandemia mundial – os militares relembram 1964, instalados cada vez mais nesse governo indecente, que buscam desesperadamente controlar ou apenas amenizar. Aguardemos, os que sobreviverem, ao desgoverno atual e à pandemia do vírus, se eles conseguirão manter a tutela sobre a nação. Que forças o conduzirão em meio aos desastres políticos, sociais e ambientais.

O vírus que se expande mundialmente mostra que não vai deixar fácil assim. Novas forças sociais e políticas, em meio ao desastre das vidas humanas, parecem que estão se refazendo e se recriando.

De todo jeito, os tempos de 1964 já não são os mesmos. Patético que os militares tentem, junto com uma ultradireita anti-iluminista, ressuscitar esse cadáver, fazê-lo andar e marchar. Daí a indecência farsesca de alguns de seus atuais protagonistas, de suas atitudes públicas e as alianças a que estão dispostos. Mais ainda quando se propaguem defensores da moral que julgam ser característica da maioria da nação brasileira.

Na data dos 56 anos do golpe militar, deve-se lembrar mais uma vez que o Brasil não julgou e não condenou os agentes do Estado pelos crimes cometidos nos regimes militares. Isso facilitou que eles se recusassem a esclarecer sobre muitas mortes, sobre os desaparecidos e, em alguns casos, passassem a criar uma fabulação que justificassem as mortes. Até hoje há quem afirme que Herzog não foi assassinado, mas sim que tenha se enforcado na prisão, contra todas as provas e depoimentos. E que, acobertados por isso, quisessem voltar e, mais uma vez, pautar os caminhos da política. Seria injusto afirmar que todas as Forças Armadas professem essa ideia, entretanto parece ser o que predomina no Exército, ainda hoje.

A que custo conseguirão refazer a narrativa do golpe e instaurar perenemente um governo militar-evangélico-conservador, é o que veremos. Estão se tornando parte de um desgoverno que se realiza numa necropolítica e se comporta publicamente pela indecência, a despeito de seu propalado moralismo. Pode, entretanto, ser um desastre. Essa não é uma guerra que possam vencer. Resistências florescerão, sempre – pois nunca se sabe o que pode um corpo. Além disso, o coronavírus desfaz, a cada dia, o mundo em que esse ideário veio se formando.

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.