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Singularizações do social mediante o sensível

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O acontecimento se dá no encontro. Nos casos que relato a seguir, estou dizendo de um corpo (o meu) que se depara com outro corpo ou corpos na singularidade de uma situação. Uma cena que emerge desse lugar.  Não é um tipo de uma ocorrência, diz Deleuze sobre o acontecimento. É uma síntese disjuntiva mundo-linguagem.

Interesso-me pelos signos sensíveis do cotidiano – que têm sido parte de iluminações avulsas, epifanias do momento, engendradores de acontecimentos.

No caso, quero falar de algumas ocasiões em que sou tomado pela percepção de uma singularização do social,  a partir do acontecimento proporcionado pelos signos sensíveis do cotidiano. Um agenciamentos que se inscrevem nos corpos num dado momento e que revelam mudanças na esfera econômica principalmente.

Talvez você possa considerar estranho ou mesmo difícil que a imediaticidade do acontecimento, no âmbito do sensível, possa diagramar algo de natureza analítica: a compreensão de uma mudança em curso na sociedade. Que os corpos exibem como marcas, em que eles estão comprometidos. A expressão não existe fora dos seus termos – no caso, a imanência concreta da vida cotidiana.

Não se trata também de tomar essa percepção sensível como mera ilustração de outro conhecimento – o inteligível – este sim, consistente e verdadeiro. Uma modalidade de aesthesis que tem sua autonomia – isso o que eu desejo mostrar. Citarei não aquelas percepções que vão se reiterando até formar uma camada facilmente identificável. Por exemplo, a cada dia eu via meninos pobres e negros vivendo nas ruas, o que não ocorria nos anos de 1960. Antes, era muito raro ver bandos de meninos e meninas nessa condição, pois eles tinham suas casas. Quando foi que isso – não ter mais uma casa – ocorreu? Quando foi que as famílias dos mais pobres e vulneráveis se desfizeram?

Porém, tudo isso já estava assimilado pelo inteligível: era parte do noticiário, das constatações comuns, dos medos, das políticas policiais etc. Em vez disso, falo de algo da ordem do súbito ainda não explicado. O que é totalmente novo. Trata-se do acontecimento.

Como entender isso? Essa é uma prática de atenção no entorno – no ambiente. Naquilo que está mudando, antes de você conseguir explicar e inserir num quadro de significação. Como um animal pressente mudanças no seu meio – e reage a elas, seja se escondendo, seja fugindo. Nos casos que relato, se deu em mim uma experiência do pensamento ao modo de uma síntese disjuntiva. Uma subjetivação. Mas também a percepção de que algo estava em mudança.

O passo seguinte é a operação inteligível – ao modo da significação.Pois que se clama, no surpreender-se, por alguma modalidade de estabilização explicativa e/ou interpretativa.

Porém, ainda aqui, guarda-se o possível de que esta passagem possa contra-efetuar o acontecimento. Pois, de um modo, a percepção do novo é territorializada – e estabilizada – no quadro geral de uma compreensão, de uma explicação social. Interessa-me, antes de tudo – e esse é o exercício – que essa singularização do social seja não uma submissão do particular ao universal, mas sim a singularização do social.

São inúmeros os exemplos desses acontecimentos, que poderia listar aqui.

Escolhi aqueles em que uma percepção de uma virada nas configurações sociais estava em curso – em que algo novo surgia. E que interagem com o plano do inteligível, que não deixa de estar atuante no momento, como parte do transfundo ou que viria depois, como informação adicionada.

Final dos anos de 1970 ou princípio dos anos de 1980. Não me lembro muito bem. Morava na Serra (hoje Mangabeiras), que era um bairro de classe média, convivendo com duas grandes vilas populares (uma delas era uma favela em condições muito precárias), mas que foi sendo tomado pelos ricos, com a expulsão dos moradores pobres.  Estava saindo de casa, numa tarde após uma chuva breve e fina quando me deparo com uma família inteira largada na calçada.

O que era aquilo? Nunca tinha visto. Mesmo tendo vivido entre duas favelas – agora, elas não estavam mais ali já um bom tempo – essa cena/imagem era nova. Eles não pareciam vir de nenhuma favela. Havia um sentimento de que um saco de mantimento, por exemplo, de farinha de mandioca, carregado com tanto sofrimento e esmero, havia se rasgado e tudo estava espalhado no chão. Sim, somente com outra imagem posso falar daquela imagem.  Ainda uma imagem que explica outra imagem – posto que, como disse acima, a explicação busca também se impor em termos de significação. No entanto, eu fui de novo surpreendido.

Pressenti que algo estava em mudança no meu país. Talvez – e com certeza – isso era mais do que antigo: famílias que se vêm perdidas na grande cidade.  As favelas e vilas não haviam se formado a partir dessas levas que deixavam o interior? Porém, eu estava diante da cena, naquele momento, em que a desterritorialização de modos de vida ocorria ali, diante de mim. Mais do que isso: um mundo inteiro se viu roto e sozinho.

Final dos anos de 1980 ou início de 1990. Manhã de sábado próximo à rodoviária de Belo Horizonte, Lagoinha (bairro tradicional que foi afetado por sucessivas “melhorias” urbanas para dar passagem aos carros principalmente). No espaço vazio (que era para tornar visível a circulação de pessoas e ser uma paisagem “bonita” para quem trafega de veículos), vejo quatro ou cinco pessoas de pé, perfiladas uma ao lado da outra. Uma delas segurava um paletó e um par de sapatos pretos, bem engraxados. As outras expunham outros objetos de uso pessoal. Também nunca tinha visto tal cena em minha vida: pessoas vendendo seus pertences pessoais. Não eram miseráveis. Havia uma dignidade ferida no ar.

Estávamos na era da globalização – um dos mais violentos processos de desterritorialização capitalista. O Brasil entregue às multinacionais, às privatizações. O desemprego se alastrava. Depois, fui saber que aquilo gerou uma feira, que visitei mais tarde, já no início dos anos 2000: Esquina dos Aflitos. Estava em busca daquela imagem que me tocou a primeira vez, para falar dessa nova condição social. Montamos uma cena curta homônima.

Outra percepção me traria essa singularização da percepção do desemprego no país e da globalização, nos anos de 1990. No ponto de ônibus, num dia de semana, um homem jovem de terno vendia pastas de couro (imitação) ao preço de 10,00 (dez reais), dando de brinde uma frigideira que vinha dentro. Absurdo, constatei: nenhum fabricante/comerciante desse país conseguirá produzir um produto desse tipo a tal preço. Fiquei sabendo depois: vinha da China. As aberturas aos mercados internacionais surtiam os efeitos. Mas a imagem que mais me tocou foi a do rapaz, de terno, que poderia estar trabalhando em alguma empresa, com aparência de educação completada, vendendo pastas da China com frigideiras dentro!

Entretanto, tudo isso já é uma passagem para a interpretação segura e estável. O acontecimento era a dança daquele corpo vestido de terno e gravata, interagindo com as pessoas que esperavam no ponto de ônibus, abrindo as pastas, mostrando as frigideiras, a um preço muito baixo. Pois ele era a imagem projetada pela publicidade dos bancos: o homem branco e jovem, magro, com movimentos amplos, como expressão do sucesso e dos novos tempos. Agora ele estava ali, desempregado, implorando nas ruas a sua sobrevivência. O que os bancos fizeram com o sucesso-propaganda? Continuava uma imagem tentando cobrir o cotidiano daquela dança já quase macabra.

De outra vez, o processo de desterritorialização promovido pelo Capital parecia ter produzido uma sociedade sem oposições e resistências. A era de Reagan e de Thatcher.  Na Espanha, Felipe Gonzalez implementava esse projeto que buscava vencer todas as arestas ao capital, destruindo a espinha dorsal do capitalismo. No Brasil, Fernando Henrique Cardoso seguia o modelo, submetendo-se ao Consenso de Washington. O socialismo havia ruído na maior parte do mundo, mostrando uma face de gangster e a incapacidade de promover proteção social e liberdade.

O que eu vi? Estava dentro de um ônibus, quando me surpreendo por uma imensa fila de pessoas andando a pé. A maioria de chinelos tipo havaianas, com alguns tons de amarelo e bandeiras vermelhas. Sem saber do que se tratava, tendo por transfundo a desterritorialização levada ao extremo, com a vitória do neoliberalismo, aquilo emergiu com sua lentidão em meio ao tráfego. Um povo pobre, camponês, reunido, marchando silenciosamente pelas ruas da cidade!

Eu chorei, chorei muito dentro do ônibus. Porque a imagem era bela, porque era um rito deslizando como o leito de um rio. Porque eram camponeses, porque nesse mundo não havia lugar para eles. Que coisa!

Era o Movimento dos Sem Terra! Mas eu não sabia disso. Somente depois fui informado. O sensível me assaltou antes. Qual a singularização em curso? O capitalismo em sua face mais aguda esperava que os miseráveis ficassem mesmo à margem, que hora seriam varridos por uma máquina qualquer. No máximo, objeto de assistencialismo, ou de alguma forma de integração compensatória ao admirável mundo novo promovido pela globalização e fim do socialismo. Mas não, surgiria uma das maiores formas de luta e de movimento social desse país. Que se tiraria o sono dos governos e dos grandes proprietários de terra. Os pobres, os abandonados, que individualmente ficariam à espera do nada, se organizaram e passaram a invadir fazendas improdutivas. O que eu vi foi um mais do que uma manifestação, foi um rito.

A rua é um campo de experimentação que pode proporcionar uma singularização do social mediante uma aesthesis. Ou seja, por onde o sensível nos surpreende.  Pelo caráter disjuntivo que marca o acontecimento, me faz pensar. O desafio é continuar pela brecha aberta pelas singularizações do inesperado. Nesses exemplos, eu acabo fazendo ligações com as mudanças na economia e na vida econômica. Mas não é nisso que reside a força do que me tomou nas ruas. Há afetos primeiros que não consigo explicar – e não devo. Pois é por esse meio que algo se faz anunciar. Que está se processando na vida cotidiana dos corpos e nos agenciamentos dos quais fazem parte.

 

Por Luiz Carlos Garrocho

Um aprendiz do sensível. Professor, pesquisador e diretor de teatro. Filósofo.

Uma resposta em “Singularizações do social mediante o sensível”

Que texto maravilhoso. Da linguagem que molda o sensível ao sensível que molda a linguagem, e por fim a desconexão explosiva (monstruosa?) entre sensação e expressão.

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